Bertolt Brecht


São raras as vezes em que a popularidade de um artista se confunde com a grandiosidade de seu trabalho. Não que a grandiosidade de um trabalho artístico esteja atrelada (ou deva estar necessariamente presa) a um circuito fechado de profundos entendedores e apreciadores. Aliás, talvez esta separação tenha sido o grande agravante ou pelo menos parte dele, quando o assunto é o grande declínio sofrido pelas artes na sociedade contemporânea. Mas, o desenvolvimento dessa ideia pode servir para outro debate que poderemos produzir por aqui; por enquanto, serve-nos de base para verificar o amplo campo de influências que a obra de um artista produziu aos de seu tempo e aos que vieram depois dele e ainda para visualizar sua popularidade.

Bertolt Brecht colocou seu trabalho a serviço de uma ideologia – não a comum, mas a de interrogação sobre o mundo e a ordem predominante. Terão acusado de arte panfletária e vazia esteticamente? Sim. Muitas vezes. O fato é que sua obra é um grito pungente sobre aquilo que não se deve calar. Que o artista calado, preso à sua ordem estética, é mero burocrata de um mundo igualmente burocrata. Sua obra alcança dois importantes rumos: o da poesia e o do teatro. Neste último gênero levou toda uma vida no desenvolvimento do que veio chamar de teatro épico, síntese do experimentalismo de nomes como Erwin Piscator e Vselvolod Emilevitch Meyerhold, do que foi conceituado por Viktor Chklovski como estranhamento e de elementos do teatro chinês.

Bertolt Brecht, Paris, 1937. Foto: Josef Breitenbach


Nesse sentido, pode-se dizer que sua arte é produto de uma bricolagem conceitual com o efeito de fuga do comum. Algo que parece se aplicar ao modelo de vida criado pelo próprio Brecht. Basta olhar rapidamente de onde ele veio, de qual contexto, para compreender melhor isso que vimos dizendo. Nasceu na Baviera, fez medicina e trabalhou como enfermeiro num hospital de Munique durante a Primeira Guerra Mundial. Até aí tudo bem. Mas, as credenciais de seus pais estão na direção contrária de sua formação: o pai era diretor de uma fábrica de papel, católico ortodoxo e autoritário, a mãe, protestante e parece que mais autoritária ainda, por ter conseguido fazer o batismo do pequeno Brecht no seu dogma.

Se sua obra foi denúncia, foi também negação dessa formação, desenvolvida num embate com o mundo e em contato com outras formas de pensamento de seu tempo. Suas primeiras peças, Baal e Tambores na noite não terão alcançado o limite que outros trabalhos mais tarde vieram alcançar, mas possibilitou que Brecht se aproximasse de importantes nomes que o levaram a costurar os conceitos de sua nova proposta teatral. E em Berlim, alcança o reconhecimento que lhe faltou antes. A chegada do nazismo que cobriu com o manto negro toda a Europa, levou Brecht a um nomadismo: foi para Áustria, depois Suíça, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Inglaterra, Rússia e Estados Unidos. Esse nomadismo não foi dado em silêncio; cada exílio terá servido de ponto para que sua arte fosse sendo mostrada e aperfeiçoada, de modo que, ao chegar a América já havia passado por meio mundo.

Não foi apenas a prática da dramaturgia o que Brecht revolucionou. Foi também a teoria, numa produção sistemática de ensaios que enfatizavam o teatro não como mero entretenimento, mas arma produtora de conscientização e politização, isto é, o teatro como sentido social. Ainda, no território das  influências, sua obra se mostra na base de algumas propostas modernistas que a olho nu julgamos totalmente alheia a esse aspecto político e social, conforme observa Fredric Jamenson em Método Brecht: há, para o teórico, em Brecht as renovações estéticas propostas por James Joyce em Ulysses, o cubo-futurismo de Maiakóvski, o construtivismo no cinema de Sergei Eisenstein e a bricolagem de Picasso.

Além dos trabalhos acima citados é conveniente destacar outros títulos de Brecht essenciais para um contato mais amplo com sua obra e seu método: Ópera dos três vinténs, Mãe coragem e seus filhos e A resistível ascensão de Arturo Ui. Já a produção poética de Brecht principia de quando ainda era um estudante de medicina. Injustamente não terá tido o mesmo destaque de seu teatro – ou parece que não é dada a sorte ao autor de triunfar em mais de um gênero que terá produzido.

Fugindo da série de poemas ocasionais – comum a todo escritor – aos poemas musicados para servir de canções para suas peças, aos poemas gravados, as anedotas, a poesia de Brecht foi elaborada pela mobilidade da vida de seu autor, dotada do mesmo ativismo com que moldou seu teatro, empenhada e apoiada numa escrita inventiva, inteligente e autossuficiente, constituindo, destarte, num território discursivo particular em sua obra. Para ficar a par dessa sua outra face, é de extrema valia a coletânea Poemas 1913-1956. Perceberá o leitor que não apenas no teatro, mas o conjunto da obra brechtiana foi um adendo contra o que ele chamou de convenções confortáveis da classe média – como a de contentar-se com sua vidinha um tanto burguesa sem olhar que ao lado a coisa não era tão bem assim. Isto é, munido de um marxismo comprometido, era um crime fechar os olhos para o mal produzido pelo modo de vida capitalista. Eco que terá surtido efeito até onde poderia ter sido abafado: nos Estados Unidos, país em que Brecht colaborou com trabalhos de companheiros de exílio, como Fritz Lang e Hanns Eisler num filme em Hollywood cujo roteiro teve sua participação, Os carrascos também morrem – título baseado no assassinato do número dois líder da SS, Reinhard Heydrich.

No território da poesia, em 1947, Brecht foi acusado pelo então Comitê de Atividades Antiamericanas –  movido pela paranoia pós-guerra que investigou uma ampla quantidade de artistas e entidade que forneceu um modelo de caça às bruxas do senador Joseph McCarthy na década de 1950 – por escrever “uma série de poemas muito revolucionários”. Essa história, entretanto, será uma peça à parte para outro texto. Que fique claro aqui é o perfil de homem de seu tempo e à frente dele, que é o que foi Brecht – de seu tempo, porque soube a partir do que fora produzido angariar a criação de uma nova forma para a arte da representação e à frente dele porque muito do que sua obra evocou ainda é visceral para o nosso tempo. 

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