Bastardos do Sol, de Urbano Tavares Rodrigues
Por Pedro Belo Clara
O escritor alentejano, nascido em 1923, é um
dos nomes mais recentes do universo das letras lusitanas a se despedir do mundo
que o viu nascer. Perece o homem, permanece o legado. Por isso, o artigo de
hoje é um humilde louvor póstumo ao nome e à obra do autor em causa.
Bastardos
do Sol foi, efectivamente, o primeiro romance que
Urbano publicou, no ido ano de 1959. E, para primeira incursão num género que,
até à data, havia sido posto de parte, o resultado obtido é digno de figurar
num patamar bem próximo dos marcos de proa da literatura portuguesa do século
XX – tal como o seu autor, diga-se, que muito justamente, ainda em vida,
alcançou um destacado lugar de mérito entre os seus semelhantes.
Dotado de uma personalidade ímpar, Urbano foi
um homem gentil que nunca deixou de assumir as suas ideias e convicções perante
o turbulento mundo social que o rodeava. Dono de um invejável currículo,
destacou-se, além de escritor, como crítico e professor. Mas a prova de que as
conquistas de um homem em nada devem olvidar as suas origens reside neste seu
primeiro (e breve) romance, evocativo do Alentejo que o viu nascer.
É natural que aqui se recorde o trabalho de
Manuel da Fonseca, seu contemporâneo, e destacada figura do Neo-Realismo
português. Afinal, ambos nasceram nessa região de Portugal e ambos, ao longo de
suas carreiras literárias, nunca deixaram de se lhe referir. Contudo, a
diferença entre estes dois talentosos autores é expressa: Fonseca optou por
retratar abertamente a realidade nua e crua de um Alentejo desterrado e
entregue ao abandono, foco de desolação, fome e pobreza extrema (assim era, no
fundo, a realidade da região nas décadas de 1940, 50 e 60). Urbano, por seu lado,
escolheu denunciar tais realidades colocando-as mormente em pano de fundo. Ou
seja: não abdicou de as retratar; apenas optou por fazê-lo de uma forma mais
indirecta (de modo geral, repito e sublinho, pois em outros trabalhos tal
intenção surge bem mais esbatida).
O romance em causa conta a história de dois
irmãos (Arménio e Irisalva) que após a morte dos pais herdam a casa onde ao
tempo da narrativa vivem. Ambos, tipicamente alentejanos, desenvolvem uma
relação tensa e de atrito constante, roçando mesmo os limites do ódio. A causa encontra-se
num passado recente, recalcado e, como tal, nunca abertamente resolvido. A
partir daí, o leitor irá recolher as informações necessárias ao esclarecimento
total do motivo, ao mesmo tempo a que assiste, em surdina, ao evoluir da
narrativa rumo ao seu clímax: a decisão que Irisalva, no limite da sanidade, é
forçada a tomar.
Como se constata, o enfoque principal do
romance é a história e a relação entre os dois irmãos: Irisalva, a jovem mulher
desejosa de casar para abandonar a casa que reparte com o irmão, e Arménio, o
viril veterinário que é personagem honesta e de proporções quase grotescas (a
encarnação, por isso, daqueles homens rudes, mas sérios, que amiúde povoavam as
áridas planícies alentejanas: “Traziam dentro do peito, como ele, a balança dos
próprios gestos”). Só muito tenuemente é que certas referências evocam os
acentuados contrastes sociais de então, traduzíveis na presença do cântico dos
bêbados (“Só a cantar eles não tinham vergonha de dizer o que lhes ia na alma”),
de certos vagabundos cujos efeitos dos desvairados comportamentos se fazem
ecoar pelas noites e das rixas entre “malteses” (homens que percorriam as
herdades em busca de trabalho nas terras) resolvidas “à facada”. Ainda assim,
não se restringe e, como tal, evita expor os casos desse povo “ulcerado e despeitado”,
“triste e parado” que “tudo cantava”, “até a fome e a morte”.
O intuito do autor não parece ser a denúncia
concreta de uma realidade decrépita, mas o subtil retrato de certas evidências
com recurso a elementos habilmente introduzidos no discurso a que recorre.
Esse, inclusive, é um dos maiores trunfos deste trabalho. A escrita, assim,
mais que gramaticalmente rica, é extremamente regional, o que torna a obra
compacta e, em parte, fechada, mas detentora de uma harmonia muitíssimo bem
conseguida. Sobeja, portanto, a sensação de que o próprio narrador, pelos
vocábulos escolhidos, não é alguém externo à narrativa, mas antes interno,
embora não intervenha na mesma. Bem que o estimado leitor a poderia ter
escutado directamente da boca de um habitante nativo de uma dessas aldeias perdidas
no mapa, como aquela em que o romance se desenrola… Tal é a sensação que Urbano
na sua escrita imprime. Essa aproximação, provavelmente intencional, é
concretizada com uma mestria ímpar que catapultou o autor para o seu merecido
patamar de destaque.
O regionalismo deste romance aproxima Urbano
não só de Manuel da Fonseca ou até de Aquilino Ribeiro (embora neste caso seja
outra a região em causa), mas de nomes internacionalmente reconhecidos como John
Steinbeck, William Faulkner, Eudora Welty ou Flannary O’Connor. É claro que, à
mercê de tais características, como afirmou o autor e crítico francês Claude
Michel Cluny, tradutor da obra de Urbano Tavares Rodrigues para a língua de
Satre e Camus, este trabalho, sendo detentor de uma poesia mais de intenção do
que de palavra, é “dificilmente traduzível”, embora apresente uma “maturidade
extrema”. E por tão poucas palavras se compõe uma justa súmula da essência mais
primordial da obra em questão.
Urbano fora um escritor dotado de uma
inteligência rica, depurada com fino recorte de estilo. Em Bastardos do Sol, ver-se-á bem legível esse traço tão
característico. Embora, pelos principais aspectos antes mencionados, possa não
constituir a mais simples abordagem à temática e obra do autor (certos livros
de contos poderão ser mais indicados para essa exploração inicial), existe em
suas linhas uma clara proposta do desfasamento entre a sociedade de valores
tradicionais e a liberdade de escolha de cada um, contemplada pela necessária
abertura das mentalidades. Após a leitura do romance, todo o leitor interessado
compreenderá como tal contenda se reflecte nos irmãos que o protagonizam, cada
um assumindo lados distintos na barricada. Por isso mesmo, que outro valor
maior se poderá retirar do belíssimo trabalho do autor de Os Insubmissos que essa urgência evolutiva, essa necessidade, quase
ânsia, da clara madrugada dos novos tempos? Eis o primeiro de muitos valiosos
contributos efectivados e compassivamente legados pelo escritor que se assumiu
um pacífico activista da participação social intervencionista…
“(…) horas a fio à espera, o sol a escaldar,
mulheres velhas, e novas também, mas já sem idade, os chapéus pretos e
esburacados enterrados pela cabeça abaixo, as mãos crispadas nas taleiguinhas
ou nas alcofas vazias. Safara, terra de desigualdade! Que sol! Que caras de
fome! E os velhinhos à falca, entre as fêmeas, minguados, raquíticos, cosidos
de rugas!”
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