A Papoila e o Monge, de José Tolentino Mendonça (Parte III)

Por Pedro Belo Clara



Nesta terceira e última parte do artigo de análise à obra em questão, elaborar-se-á a abordagem aos remanescentes volumes que a compõem. Embora estes ocupem quatro distintos lugares num total de seis possíveis, a sua aparentemente simples elaboração e o reduzido número de haikus que os perfazem permitem um visionar dos mesmos de forma mais directa, eficaz e concisa.

O primeiro do grupo, terceiro no total dos volumes, ostenta a epígrafe “Guia para perder-se nos montes”. Composto por dezassete haikus, encerra um conjunto de reflexões (carácter, como o leitor se recorda, transversal aos anteriores capítulos da obra) e de retractos capazes de imortalizar momentos dignos de memória, embora sejam detentores de uma beleza que nem sempre aparenta ser conseguida na sua total plenitude.

Contudo, que o leitor não cometa o mais comum dos erros ao abordar este volume em particular: uma interpretação desviada. Pois o título do mesmo sugere algo completamente diferente do seu conteúdo. Não afirmo que ambos (título e conteúdo) não se complementam, mas que a leitura da epígrafe coloca o imaginário de todo o leitor num patamar distinto daquele a que os haikus remetem. Terá sido intencional? Somente o poeta em causa poderá esclarecer. Seja como for, sublinha-se a recomendação de sempre: a mais prudente forma de abordar uma obra adopta-se a partir do não tecimento de prévias concepções sobre o conteúdo que lhe assiste. Isto porque, neste caso em particular, será fácil ao leitor, através do visionamento do título do volume, considerar que o mesmo encerrará poemas sobre uma viagem pelas montanhas, uma espécie de relicário de imagens captadas durante uma deambulação por tais cenários. Nada mais falso.




Apesar de tudo, é verdade que o vocabulário escolhido e pela mão do artista organizado parece por vezes deter a semente de certas curiosidades sobre a paisagem que o “eu-poético” contempla, habilmente dispostas na forma de uma simples anotação. O volume marca, inclusive, uma mudança no tom que tinha vindo a ser impresso na obra em geral. A partir deste ponto, a leitura tornar-se-á substancialmente mais fluida, renegando as pausas de que os anteriores trabalhos faziam seu apanágio (o que apenas privilegiava a meditação nos mesmos).  

Existe, portanto, um apelo à visualização e aos demais sentidos numa poesia que se poderá considerar “de pormenor”, sem proscrever totalmente a ponderação exigida pelas palavras. Mas todas estas intenções e demais características são compostas em linhas de simplicidade literária. Há uma ténue fronteira entre “simples” e “banal”. Tolentino, neste capítulo, consegue, em esforço final, apresentar um trabalho pautado por uma sucessão de luzes e de sombras, sem olvidar o poder tranquilizante das palavras desenhadas por mãos que compõem quadros. Os seguintes haikus são um mero exemplo de tal esmero:

O que buscamos
uns nos outros
é sempre a noite

A chuva de flores cobre o pico solitário
o vazio perfuma
um coração livre

O volume que lhe sucede é um dos mais breves volumes de toda a obra em análise, composto por apenas doze haikus. “Amanhecer na primeira cidade” é, principalmente, um prolongar do exercício da “poesia do concreto” que anteriormente fora referida. Para tal, opta por banir a veia filosófica antes vigente (sem que a mesma, contudo, se extinga completamente) e conceder total relevo à imagem. São, por isso, haikus incrustados em alva folha como gravuras desenhadas num quadro capaz de inspirar múltiplas reacções.

As palavras trazem consigo vestígios de momentos essencialmente presentes, mas propõem uma viagem por estados de alma ou pelos naturais sucedidos da existência humana. Através de retornos, sugeridos de forma sábia no retracto da deposição do Inverno em prol da Primavera ("A begónia refloriu/ e a perdiz reencontrou intacto/ o seu ninho"), e de despedidas, que marcam a fluida sucessão dos episódios de uma vida ("Por cima da grade vazia/ mesmo antes de se separarem/ os amigos sorriem"), sobeja a ideia do carácter transitório do mundo e seus elementos. Daí a lição derradeira: "Não aceites sem protesto/ a redução/ das estações".

Provavelmente inspirado em momentos captados durante a sua viagem ao Japão, aquela que, segundo Tolentino explica no início do livro, esteve na origem deste trabalho, permanece do volume a percepção do enfoque no pormenor. E daqui poder-se-ia extrapolar as demais envolvências do mesmo, visto ser essa a sua mais primordial base. Contudo, convém acrescentar que o pormenor retratado é-o de forma geral, e não específica. Os quadros propostos pelo autor, ainda que abundantes, não são detalhados, pelo que a poesia apresentada se revela depurada o quanto baste. Sem espaço para detalhes exacerbados, assume-se, portanto, concreta. E, como será expectável, em regra carente de metáfora. A escolha comporta o seu risco, é certo, nomeadamente se retomarmos o assunto da “poesia simples versus poesia banal”, mas o autor aparenta sempre assumi-lo sem problemas ou complexos de maior. E merecerá, por certo, o devido louvor por tal opção.

Um amarelo envolto em espinhos:
a porta entreaberta
da aurora

O volume que se segue, embora possa aparentar ser uma extensão do anterior (“Amanhecer na segunda cidade”), acaba por partir de uma raiz comum para se manifestar numa ramagem completamente díspar, senhora dos seus enobrecidos frutos. Existe, portanto, uma maior propensão para o nocturno, com imagens que cativam pelo seu traço de desolação e abandono.

A unidade nem sempre é notória… Os haikus, no seu todo, permitem saborear o que deles sobeja neste volume em particular: restos de sonhos e de estrelas prolongados por instantes que primam pelo apelo à reflexão (uma vez mais) e pela tonalidade das gravuras invocadas. Uma espécie de Inverno que termina sem que os cenários tenham, contudo, totalmente despertado para a vida que os anseia colorir. Ainda assim, melancólicos suspiros à parte, é um volume capaz de proporcionar ao leitor uma aprazível viagem poética.

Tudo é efémero:
ontem escutava a tua voz
hoje só o vento

O derradeiro volume da obra, de seu nome “Livro de peregrinações”, apresenta, ao longo dos vinte e três haikus que o compõem, diversas considerações e pensamentos acessórios em relação ao tema que designa. Contudo, para que o mesmo possa ser válido, adquirir a substância necessária à sua eloquente existência e atingir a profundidade a que se propõe, é crucial a elaboração de um personagem, à semelhança do que se sucede no segundo volume da obra (“Vida monástica”). Neste caso em concreto, surge o peregrino na vez do monge.

A personagem apresentada assume novamente um carácter multifacetado, visto que além de existir por si própria, envergando as vestes de um “eu-poético”, serve de objecto reflector à essência do autor e do próprio leitor. Uma vez que cada Homem é, à sua íntima maneira, um peregrino, a figura proposta é utilizada como um ponto de reunião de sentires e pensamentos comuns a todos nós.

Embora a unidade deste volume não seja sempre mantida (breves quadros poéticos e subtis reflexões, de quanto em vez, colorem o espaço de leitura), é perfeitamente legível a linha sugerida. O poeta, é um facto, não se estringe somente a louvar as peculiaridades daqueles que fazem do mundo o seu próprio lar, arriscando até considerações e conselhos aos que possuem uma infinda “sede de caminho”.

Encontramos um exemplo disso mesmo quando se propõe o relegar do pensamento para planos secundários de acção diária, em detrimento da gratidão ("Não interrogues o sentido / agradece o passo lento / (…)"). Caminhar exige abnegação e desprendimento, como forma de alcançar patamares mais elevados de consciência. Assim sendo, não será legítimo depreender que todo o peregrino não enceta uma jornada sem uma razão que a sustente?

Existe, de facto, uma busca: "Deve algures existir / a porção de verdade / que esteve ao nosso alcance e não vimos". Porém, sendo cada viagem um acto de solidão, ainda que em diversas ocasiões partilhada, o propósito urge ser alcançado individualmente. Mesmo que o fim de uma jornada pessoal não difira muito dos restantes términos. Ainda que as habituais dúvidas não cessem de latejar ("Em que lugar do mundo resplandece / o fulgor / do instante?"), a meta não é olvidada.

Entre o começo e o fim da dita jornada conta-se a história de uma só vida. E a mesma recheia-se de múltiplas experiências que em sabedoria se irão traduzir, quais doces frutos de tudo o que pelo caminho o peregrino pôde colher. Talvez, em retrospectiva, o intrépido viajante discorra: "Na orla do mundo o absoluto existe". E terá aí findado a razão da singular viagem? Cada um saberá o seu fim… Quando este chegar, cumprirá o caminhante o inevitável: "(…) / arderás o caminho / para que ninguém siga os teus passos". Não só pelo apelo de reclusão que o pode assomar, mas por esse percurso íntimo e pessoal necessitar de ser consumido para de novo renascer. Afinal, um outro peregrino terá a sua vez de caminhar. Quanto já nada sobejar na existência do viajante (que em nada difere do simples orvalho), quando todas as razões estiverem descobertas, todas as ânsias confortadas e todas as perguntas respondidas, a derradeira transcendência, enfim, anunciar-se-á: "Agora só resta / tornares-te / o poema".   

A obra em causa é um meritório esforço que Tolentino Mendonça empreende numa forma poética até então adormecida para as habituais intenções do autor. Inspira-se em Bashô, um mestre de haikus, mas, na verdade, em diversos momentos afasta-se da linha proposta pelo autor japonês. Não ao nível do estilo que o género exige, pois no primeiro artigo desta série ficou claro que tal seria abertamente rejeitado, mas ao nível da intenção e, ao mesmo tempo, na peculiar habilidade com que o autor capta o momento. Em determinados episódios, por exemplo, a beleza do haicai nem sempre surge exposta na sua amplitude mais esplendorosa. Muito por culpa, diga-se, da veia meditativa que Tolentino imprime a este trabalho. Essa dose de racionalismo, inevitavelmente, envenena amiúde o sentimento que poderia perfumar de forma ainda mais sublime os haikus propostos. Pois, de forma geral, muitos deles apresentam-se bastante bem conseguidos. Mas tal foi a opção tomada pelo autor, neste livro vincadamente assumida, e há naturalmente que respeitá-la.  

Para encerrar, importa reter um último sublinhado: o autor nunca antes se aventurou neste género poético e, para primeira tentativa, sem dúvida que o apetite do leitor adepto deste tipo de poesia se aguça e pede, inevitavelmente, uma dose de repetição. À semelhança da viagem que o inspirou, também o livro detém em si o dom de acompanhar o amigo leitor numa jornada pelas letras mais inspiradas. E só essa característica já o coloca no patamar daqueles livros capazes de proporcionar a cada um agradáveis momentos de poética degustação.  

Ligações a este post:
Leia a primeira parte deste texto de Pedro Belo aqui.
E a segunda parte aqui.

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog preservamos o grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A Jornada da Loucura (2010), Nova Era (2011) e Palavras de Luz (2012) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados nos blogues pessoais do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas) e O Manifesto (artigos políticos). 


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