A obsessão de Hemingway

Hemingway na cabine de seu iate Pilar. Dentre a série de arquivos do escritor ora digitalizados estão várias anotações feitas à bordo da embarcação.


Ernest Hemingway tinha o costume de acumular tudo em sua casa de Havana: fotos, periódicos, telegramas, cartas. Tudo. De acordo com Mary, sua quarta companheira, ele era incapaz de jogar algo fora. E, graças a esta obsessão do escritor tem sido possível digitalizar cerca de 2 500 documentos que estavam em sua residência – Finca La Vigía, uma granja que fica nos arredores de Havana, onde ele morou por largo tempo. O trabalho de digitalização dos arquivos está a cargo da Biblioteca e Museu John Kennedy, em Boston e ficará disponível on-line sempre.

O material oferece uma nova visão do dia-a-dia de Hemingway, diz o diretor do Museu, Tom Putman; “Da figura literária, dar-nos conta da humanidade do homem e assim oferece nuances para entender o escritor.”

As cópias digitais chegaram no ano passado a partir da Fundação Finca La Vigía – atualmente a responsável pelo material e à frente do projeto de digitalização; elas fazem parte de um segundo lote do grande arquivo do escritor na ilha de Cuba. A primeira leva data de 2008 e era composta mais por correspondências e a grande novidade era o rascunho de um final alternativo para Por quem os sinos dobram. Segundo os especialistas, agora, não há uma peça de igual valor, mas “se vê como Hemingway teve que abandonar Cuba” – diz Sandra Spanier, a editora geral do Projeto Hemingway Letters. “O valor está na textura da cotidianidade, a forma que completa uma imagem de Hemingway”.

Hemingway viveu em Finca La Vigía entre 1939 e 1960 – o período mais longo dos vários lugares onde o escritor viveu. E os seus 15 hectares de terra deve ter sido o lugar onde mais se sentiu em casa. Depois de 1960, ele viajou para a Espanha para só então voltar aos Estados Unidos e já em más condições de saúde. Após uma breve estadia em Nova York, mudou-se para Ketchum, Idaho, onde em julho de 1961, o alcoolismo leva o escritor a várias sequelas e em meados deste ano ele próprio dá cabo de sua vida.

Depois da invasão a Baía dos Porcos, em abril de 1961, quando as relações entre Estados Unidos e Cuba declinam, o presidente John Kennedy organiza em silêncio um encontro de Mary Hemingway com Fidel Castro. Na época, os dois fizeram um acordo pelo qual foi permitido que ela levasse parte dos papéis e pinturas do companheiro e em troca Cuba ficaria com o restante dos arquivos em Finca La Vigía.

Por longo tempo, esse material ficou de cômodo em cômodo da casa até ser transferido para o porão, único lugar onde a umidade ainda não era possível de corroer de uma vez por todas os papéis. Em 2005, Jenny Phillips, neta de Maxwell Perkins, o editor de longa data de Hemingway, assumiu a frente da Fundação Finca La Vigía e deu início a um largo processo de restauração dos documentos.

Grande parte não passa de folhas em branco do correio aéreo com papel timbrado com o endereço residencial de Hemingway; mas há cartas, telegramas e outros materiais. No meio de uma pasta dedicada apenas a cartões de Natal, uma carta do crítico Malcom Cowley em que, desprezando as convenções usuais de confidencialidade, diz ao escritor que foi convidado pelo The Herald Tribune para escrever sobre O velho e o mar e não deixa alguma dúvida sobre o que ele vai dizer: “O velho e o mar é muito maravilhoso – o velho homem é maravilhoso, o mar é também, e o peixe.”

Mas, a própria aleatoriedade deste material ora revelado – um telegrama de Archibald MacLeish parabenizando Hemingway em Por quem os sinos dobram se transforma numa receita de hambúrguer cuidadosamente digitada por Mary. E a leva de recados com congratulações pela honraria recebida em 1954, como o de Ingrid Bergman. Neste ano, o escritor foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.

Além disso, se pode ver pela primeira vez o telegrama em que Academia Sueca o comunica sobre o prêmio: “Em sua sessão de hoje, a Academia Sueca decidiu dar-lhe o Prêmio Nobel da Literatura. Por favor, notifique-nos se aceita o prêmio e se virá a Estocolmo no dia 10 de dezembro recolhê-lo”.

Estão aí também os vários passaportes de Hemingway que oferecem um cronograma fotográfico do escritor e sua inquietação e desejo de viajar. O mesmo se repete noutra parte das correspondências, como a carta em que descreve sua preocupação em como enviar seu Buick Roadmaster da Europa para Havana e depois para os Estados Unidos.

Há ainda os registros que ele mantinha a bordo do Pilar, seu amado iate de pesca e documentos outros como um documento da marinha cubana que o autoriza a usar algum aparelho de rádio experimental, depositando assim a confiança de que o escritor não oferecia perigo no atual contexto porque passava o país na época; ou uma licença  permitindo-lhe o porte legal de armas.

A impressão que se tem de Hemingway é de alguém extremamente disciplinado e bem organizado. Reforça essa ideia um caderno de antes da Guerra de quando ele era correspondente em Paris para The London Daily Express; aí aparece listado página a página nuances e expressões do vocabulário francês bem como afazeres do dia-a-dia.

No que se refere a obra sua, o destaque são 44 rascunhos com versões diferentes para um final de Adeus as armas.

A seguir deixamos um breve catálogo com os recortes que apresentamos durante este texto:

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