Por Alfredo Monte
Iniciado em 1912, antes de seus
companheiros mais célebres (
O processo e
O castelo),
O
desaparecido pertence à fase de “filhos” de Franz Kafka, que
inclui também
O veredicto e
A metamorfose. Em
todos, filhos são punidos e banidos pelos pais. A diferença é que, enquanto os
outros dois permanecem no âmbito da casa paterna, numa concentração
claustrofóbica, a história de Klaus Rossmann, enviado a uma América totalmente
recriada pela imaginação de Kafka (ou seja, uma Amerika), após ter sido
seduzido pela criada, já aciona o mecanismo de “lançar no mundo” o filho
pródigo, cuja maior realização ocorrerá em
O castelo.
Curiosamente, mesmo lançado no
mundo, Rossmann viverá a experiência do banimento repetidas vezes (pelo tio,
pelo camareiro-mor do hotel onde se emprega) e só encontrará guarida em
ambientes desabonadores, sórdidos e permeados pela sexualidade. O sexo é a
grande ameaça aos “esforços” dos personagens kafkianos e representa um ímã, um
visgo que os prende a uma situação degradada. O clímax do romance (que
permaneceu inacabado, como se tivesse chegado a um ponto insustentável) é a
submissão de Karl a Brunelda, uma mulher imensa, uma espécie de Grande
Prostituta, que transforma os homens em seus criados; uma Circe cômica,
portanto, que os mantém a todos numa Ogígia vaudevillesca, um apartamento
minúsculo e entulhado (espaço típico do universo kafkiano).
Entretanto, já a sedução pelo
criado apresenta essa advertência quanto ao lado dissolvente da sexualidade (“…apertou
a barriga nua contra o corpo dele, procurou com a mão de uma maneira tão
repulsiva entre as suas partes que Karl esticou a cabeça e o pescoço para fora
dos travesseiros; ela então empurrou algumas vezes sua barriga contra ele — ele
teve a sensação de que ela fosse parte de si mesmo, e talvez por esse motivo
foi tomado por uma terrível sensação de desamparo”).
Apesar desses aspectos sombrios, é
preciso dizer que
O desaparecido exercita a alta comédia; é um
livro muito engraçado. Aliás, é a obra longa de Kafka onde mais acontecem
coisas. Não é à toa que ele se inspirou no romance à Dickens. Pode-se dizer
igualmente que ele livra o romance das amarras da verossimilhança e instala uma
relação do personagem com o espaço que resgata a disponibilidade de Dom Quixote
e Sancho Pança ou Jacques, o fatalista, e seu amo, ou mesmo de Wilhelm Meister:
o mundo está à nossa frente e tudo pode nos acontecer.
É por isso que até a parte em que
Rossmann se rende à autoridade de Brunelda (e de seu amante Delamarche), após
ser banido pelas autoridades masculinas (e com o fracasso de outra autoridade
feminina, a cozinheira-mor, no sentido de mantê-lo na “trilha certa”,
seja lá o que for que isso signifique),
O desaparecido mantém
uma notável coesão (há ainda alguns capítulos fragmentários, inclusive o famoso
em que Rossmann, abdicando do seu nome, adere à trupe do Teatro Natural de Oklahama
— é isso aí, leitor, o nome vem errado mesmo —, um evento que parece se
confundir com o mundo todo).
O que diferencia
O desaparecido de Dom
Quixote, de Jacques, o fatalista ou de Wilhelm Meister (no
qual um rapaz também “cai no mundo” ao contrariar a vontade paterna) e dos
livros de Dickens, é que não há nexo de causalidade entre as aventuras do herói
ou entre suas descobertas psicológicas. Não há romance de formação, aqui, tudo
contribui para o absurdo (há um capítulo em que Karl vai visitar um amigo do
tio, entra numa hilária luta corporal com a filha dele, e ao pensar em
encontrá-la novamente: “se ao menos ele tivesse consigo a barra de ferro que
tio tinha lhe dado de presente para servir de peso para papéis! O quarto de
Klara podia ser uma toca bem perigosa”), para o divórcio entre a ação e um
possível significado.
A comédia pastelão de Kafka (há
cenas inesquecíveis que lembram as comédias do cinema mudo, como a perseguição
pela polícia, na chegada ao edifício de Brunelda) esconde em suas sobras o
filme de terror.
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