O manuscrito em que Virginia Woolf anuncia o seu suicídio
Parece uma prática muito mórbida e desumana até tratar a
nota de suicídio como uma peça de literatura, mesmo que o autor da referida
nota seja um escritor tão famoso quanto Virginia Woolf. Mas, por que isso? Há,
é verdade, variados ângulos das objeções éticas que rondam uma situação do
tipo, mas tocar no assunto está longe de ser algo indecente. A morte tem sido
em muitas vezes uma ocasião literária: a longa tradição das últimas palavras
varia de confissões no leito de morte para o gênero estranhamente teatral do
discurso antes da forca (ver Sócrates, Anne Boleyen ou John Brown). Como grandes
figuras inesquecíveis da história, as últimas palavras da vida de Virginia
Woolf reúnem elementos para compreender melhor o fato, seja o leitor leigo,
seja o leitor pesquisador sobre sua biografia.
Antes desse bilhete escrito em março de 1941 e deixado sobre a lareira de casa para seu companheiro Leonard, Virginia terá
produzido outras escritas em que prenunciava o gesto que tomaria com sua vida. Vejam,
como exemplo, suas últimas palavras no Smith College e em Yale. Esta correspondência
aqui exibida é, portanto, a terceira de suas cartas de suicídio. Por causa de
toda sorte de repúdio que a cultura ocidental decretou em torno da morte ou
mesmo a compreensão da morte como perda, fraqueza diante da vida, o suicídio é,
então ainda um tabu social pensado ora como trágico, mesmo quando ele é
maturado bastante antes do ato final. E em muitos casos, especialmente aqueles
que envolvem a doença mental, a morte torna-se algo mais ainda desnecessário ou
uma atitude extrema. Dentre estes muitos casos está o de Virginia Woolf que
antes de se afogar no rio Ouse lutou durante anos com o que provavelmente seria
chamado hoje de transtorno bipolar.
A nota de suicídio escrito para o marido Leonard é uma assombração
e belo documento, reunindo toda uma sinceridade sobre o tumulto em que sua vida
estava metida e a angústia da qual padecia a escritora. O texto ganha ainda
maior pulsão dramática porque não é uma despedida para o mundo em geral, mas
para um amigo de confiança e amante.
Meu querido,
Tenho
certeza de que vou enlouquecer de novo. Não podemos passar por mais uma
daquelas crises terríveis. E, dessa vez, não vou sarar. Começo a ouvir vozes e
não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece a melhor
coisa. Você me deu a maior felicidade possível. Você foi, sob todos os
aspectos, tudo o que alguém poderia ser. Acho que não existiam duas pessoas
mais felizes, antes de aparecer essa terrível doença. Não consigo mais lutar.
Sei que estou estragando sua vida, que, sem mim, você poderia trabalhar. E eu
sei que vai. Veja que nem consigo escrever direito. Não consigo ler. O que
quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você tem sido
extremamente paciente comigo e incrivelmente bom para mim. Quero dizer que—todo
mundo sabe disso. Se existisse alguém capaz de me salvar, seria você. Perdi
tudo, menos a certeza da sua bondade. Não posso continuar estragando sua vida.
Não creio
que tenham existido duas pessoas mais felizes do que nós.
V.
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De Cartas
extraordinárias organizada por Shaun Usher (Companhia das Letras, 2014), tradução de Hildegard Feist.
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