Por Alfredo Monte
“Uma escolha fluida, a escolha da
fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato
inegável…”
— Em “As crianças ficam”, de Alice
Munro
Ninguém pode se queixar, desta
vez, de que o Nobel tenha contemplado um autor “obscuro”, de algum país
praticamente desconhecido, e do qual não há traduções circulando. No
Brasil, por exemplo, foram publicados até agora quatro títulos de Alice
Munro: Ódio, amizade, namoro, amor, casamento; Fugitiva;
Felicidade demais e O amor de uma boa mulher,1
este último editado em 2013, embora mais antigo que os demais: foi lançado
originalmente em 1998.
São oito histórias que demonstram
como é indiscutível a escolha de um dos nomes mais extraordinários da
literatura contemporânea. Quem não conheça o universo dessa canadense
octogenária poderá estranhar, ao começar a leitura do conto-título, que abre o
volume, o andamento do relato: em 1951, três meninos (Bud Salter, Jimmy Box,
Cece Ferns) encontram um carro emborcado no rio, com o cadáver do Dr. Willens,
optometrista local. Antes de espalhar a notícia, cada um vai para sua casa, e
conhecemos as diferenças entre as suas famílias, em sua dinâmica interna e
quanto à reputação delas na região (pois todos se conhecem, se vigiam, sabem
aparentemente de tudo o que há para saber uns sobre os outros)2;
logo a seguir, conhecemos Enid, uma moça que teima em ser diferente (segue o
caminho da santidade, comenta desdenhosamente sua mãe: “Mas às vezes é um
trabalho dos diabos, […] esse negócio de ser mãe de uma santa”), abdicando do
casamento e de carreiras mais prósperas, para ser cuidadora de doentes
terminais. Assim, ela entra no lar dos Quinn para, ao longo da deterioração
física da sua paciente, se dar conta também de sua perversidade e
malevolência: “A Sra. Quinn era um caso mais difícil. Se ela se partisse
em pedacinhos, lá dentro só se encontraria uma forma lúgubre de malícia, só
podridão”. Ou será a visão fanática e puritana da própria Enid, a “boa mulher”,
que a levará depois a uma decisão perigosa e masoquista?3
Estamos na mesma história, aquela
dos meninos? Sim, como o leitor paciente descobrirá. Um dos encantos de Alice
Munro é a maneira como vai montando pequenos porém intrincados quebra-cabeças
narrativos, e esse é um dos melhores exemplos de sua arte. É assim com cada
texto de O amor de uma boa mulher. São todos, sem exceção, do mais
alto nível. Será, portanto, uma questão essencialmente de preferência pessoal
eu indicar como destaques duas narrativas em primeira pessoa: “Antes da
mudança” e “A ilha de Cortes”.
No primeiro, após ter um filho
clandestino (de uma relação com um professor de teologia)4, a
narradora volta a viver com o distante e desconcertante pai (“Meu pai chama o
filho desse sobrinho pelo nome do sobrinho. Faz isso com todo mundo. Refere-se
às lojas e aos negócios na cidadezinha pelo nome do dono anterior ou mesmo de
um antecessor. Isso é mais do que um simples lapso de memória: está mais
próximo da arrogância. Ele se põe acima da necessidade de conhecer o que se
passou. Da necessidade de registrar as mudanças. Ou as pessoas”), descobrindo
que ele é o aborteiro local. Para completar o quadro, há uma das figuras
rústicas e insondáveis, tão comuns nesse “wonderland” às avessas que nossa
Alice desentoca, a Sra. Barrie, a empregada da casa. Estamos na fronteira entre
Tchekhov e Stephen King.
Já no segundo, temos mais um
segredo oculto por detrás do decoro e das conveniências: uma vizinha toda
empertigada se intromete na vida de um jovem casal até que, depois de ter
“empregado” a narradora para cuidar do marido inválido (o qual, através do manuseio
de antigos recortes de jornais, fornece a ele os indícios de um crime, ocorrido
na ilha do título)5, passa a uma atitude de hostilidade que beira o
desvario:
“‘Ah, ela se acha tão esperta. Não
consegue nem manter dois quartos limpos. Quando varre o chão, tudo que faz é
empurrar a poeira para um canto’.
Quando comprei minha primeira
vassoura, esqueci de comprar uma pá de lixo e, durante algum tempo, fiz mesmo
aquilo. Mas ela só poderia saber se tivesse entrado em nossos quartos com outra
chave enquanto eu estava na rua. O que, evidentemente, foi o que ela fez.
‘Ela é uma falsa, você sabe.
Bastou olhar para ele e vi que era uma falsa. E mentirosa. Não é boa da cabeça.
Ficava lá sentada e dizia que estava escrevendo cartas, mas escrevia as mesmas
coisas uma porção de vezes. E não eram cartas, eram as mesmas coisas várias
vezes. Tem um parafuso a menos’.
Com isso entendi que ela havia
desamassado as páginas jogadas na minha lata de lixo.”
São enredos primorosos no
descortínio de mentalidades que vão se entrechocando na passagem das gerações,
do rural para o urbano, dos costumes petrificados para a liquidez da
modernidade, criando um palimpsesto cronológico que casa perfeitamente com o
andamento enviesado da narrativa. E sempre um apetite vigoroso pela intriga,
por ambientes e personagens que, com maestria, ganham a nitidez de lugares onde
vivemos e de pessoas que conhecemos.
Outro ponto alto é “As
crianças ficam”, no qual a protagonista, Pauline, em férias com a família
(filhas, marido e os pais deste último), foge com o diretor da montagem amadora
de uma peça na qual ela desempenha o papel de Eurídice (aquela que Orfeu tenta
resgatar da morte):6
“Os pensamentos que lhe vinham
sobre Jeffrey absolutamente não eram pensamentos — e sim algo mais parecido com
alterações em seu corpo. Isso podia acontecer quando estava sentada na praia […],
quando torcia as fraldas depois de lavadas ou quando ela e Brian visitavam os
pais dele. No meio de partidas de Monopólio, de Scrabble e de buraco. Ela
continuava a falar, ouvir, trabalhar e vigiar as crianças enquanto alguma
recordação de sua vida secreta a perturbava como uma explosão radiante. Era
então invadida por uma sensação de calor que ocupava todos os seus vazios e a
reconfortava. Mas não durava muito, o alívio se dissipava e ela se sentia como um
avarento que vê seus ganhos repentinos desaparecerem, e não imagina que a sorte
possa voltar a alcançá-lo.”
Nesse, como e em outros momentos
da obra de Alice Munro, ela me pareceu bem próxima dos romances admiráveis de
Anne Tyler. Os laços afetivos em ambas são fortes e concretos, mas elas também
apresentam o seu lado inquietante — o fato de que essas relações são, no fundo,
uma alternativa escolhida entre outras: “Havia um outro tipo de vida que ela
poderia ter tido — o que não era o mesmo que dizer que teria preferido assim”,
lemos num dos melhores contos de Ódio, amizade, namoro, amor, casamento (2001),
coletânea que a apresentou ao leitor brasileiro.
Em “O sonho de mamãe”, que
fecha O amor de uma boa mulher, somos apresentados a uma família de
mulheres que recebe em casa a viúva do irmão (morto na guerra), que logo terá
uma criança — a narradora da história (mesmo que, no campo dos acontecimentos
aí narrados, ela seja apenas um bebê):
“Minha mãe — Jill — está de pé
junto à mesa da sala de jantar banhada pela luz intensa do final da tarde. A
casa está cheia de pessoas convidadas a irem lá após o serviço fúnebre na
igreja. Estão bebendo chá ou café enquanto tentam segurar os diminutos
sanduíches ou fatias de pão de banana, bolo de nozes e bolo inglês. As tortas
de creme ou de passas, com sua massa farelenta, precisam ser comidas com um
garfo de sobremesa e os pratinhos de porcelana com desenhos de violetas
pintados pela sogra de Jill quando noiva. Jill pega tudo com os dedos. Migalhas
de massa caíram, uma passa caiu, e o veludo verde do vestido ficou manchado. É
um vestido quente demais para aquele dia, e absolutamente não é um vestido para
mulheres grávidas e sim um tipo de túnica larga feita para os recitais, quando
ela toca violino em público. A bainha está levantada na frente por minha causa.
Mas é a única coisa suficientemente folgada e apresentável que ela tem para
usar nas cerimônias fúnebres do marido.”
Mais uma vez pensamos: a mágica
não pode se repetir indefinidamente, ela não será capaz de criar mais um
momento incrível que parece conter a vida inteira (gerações, passagem do tempo,
conflitos e recalques entre membros de uma família e de uma comunidade, ou
seja, a vida de todo dia que vivemos). E, presto!, novamente
ficamos estupefatos com o número de ilusionismo. Se isso não é gênio (pelo
menos na área da ficção), não sei o que mais poderá ser.
Notas
1 The Love of a God Woman,
que citarei utilizando a tradução de Jorio Dauster. Os títulos originais dos
contos, além daquele que dá título à coletânea, são — pela ordem: “Jakarta”, “Cortes
Island”; “Save the reaper”; “The children stay”; “Before the chance” e “My
mother’s dream”.
2 O que já é indicado na passagem
que indica o prazer que é para os meninos perambular pelo local onde encontram
o corpo: “Outra mudança nas conversas que tinham por lá era o fato de
praticamente pararem de usar nomes. Já não costumavam empregar muito seus nomes
verdadeiros e nem mesmo os apelidos dados pelas famílias, tal como Bud. Mas, na
escola, quase todo mundo ganhava outro nome, alguns dos quais relacionados à
aparência ou à maneira de falar da pessoa, como Quatro Olhos ou Pato Rouco.
Outros, como Cu Ralado e Fode Galinha, derivavam de acontecimentos reais ou
imaginários na vida de quem recebia o apelido ou na de seus irmãos, pais e
tios, pois tais nomes eram transmitidos de geração em geração. Mas tudo isso
era deixado de lado quando se encontravam no mato ou nos remansos do rio. Se
precisavam chamar a atenção de um companheiro, tudo que diziam era ‘Ei!’. Até
mesmo o uso de nomes que os adultos não deviam ouvir, por serem ofensivos e
obscenos, prejudicaria a sensação que tinham naquelas ocasiões de absoluta
familiaridade com a aparência, os hábitos, a família e a história pessoal de
cada um.
E nem por isso se imaginavam como
amigos. Nunca teriam designado alguém como seu melhor amigo ou segundo melhor
amigo, nem alterado as hierarquias de tempos em tempos, como as meninas faziam.
Pelo menos uma dúzia de outros garotos poderia substituir qualquer um daqueles
três, sendo aceitos da mesma forma.”
3 “Seria possível alguém inventar
alguma coisa tão pormenorizada e diabólica? A resposta é sim. A mente de um
enfermo, de um moribundo, podia ficar repleta de coisas sujas e organizá-las de
forma muito convincente. A mente da própria Enid, quando ela dormia naquele
aposente, se enchera das invenções mais nojentas, de sujeira pura.”
4 Que é, supostamente, o
interlocutor da narrativa, um recurso bastante eficiente, já que ao mesmo tempo
que mostra a cumplicidade “moderninha” e antitacanha do casal, mostra também,
progressivamente, o seu avesso, o apego dele às convenções: “Fiquei pasma com
esses argumentos, que não pareciam consistentes com as ideias da pessoa que eu
tinha amado. Os livros que havíamos lido, os filmes que havíamos visto, as
coisas sobre as quais tínhamos conversado — perguntei se nada disso tinha
importância para você. Você disse que sim, mas a vida era mesmo dura […] Senti
desprezo. Senti desprezo quando vi você se enfiando por baixo do carro, as abas
do casaco adejando em volta do seu traseiro. Você tateava na neve em busca do
anel, e ficou muito aliviado quando o encontrou.”
A certa altura, ela
pergunta: “Quem é esse ‘nós’ de que venho falando?”
5 O primeiro indício sobre os
eventos da ilha é fornecido numa das conversas “fiadas” que a Sra. Gorrie insiste
em manter com sua vizinha mais jovem e indefesa quanto à sua índole invasiva: “‘Mesmo
quando eu vivi longe da civilização, sempre gostei de…’ Minha necessidade de
bocejar ou gritar se acalmou por um instante. Onde ela teria morado para dizer
que era longe da civilização? E quando?
‘Ah, lá para o norte da costa’,
ela respondeu. ‘Também já fui recém-casada faz muito tempo. Vivi lá durante
anos. Union Bay. Mas isso nem era tão longe de tudo. Ilha de Cortes.’
Perguntei onde era essa ilha e ela
disse: ‘Ah, lá onde Judas perdeu as botas.’
‘Deve ter sido interessante’,
comentei.
‘Ah, muito interessante… Se você
acha ursos interessantes. Se acha pumas interessantes…’”
Como outros contos da autora, aqui
há uma jovem escritora. E o alter ego negativo sempre capitula diante da
domesticidade, abdicando dessa incursão pelo imaginativo, por falta de talento
e absorção pelo casamento (isso a irmana a algumas estratégias da obra de Doris
Lessing, que também utiliza esse recurso de um alter ego negativo, é só
lembrar — entre outros casos — de Martha Quest, da série Os filhos da
violência, fugindo de um casamento medíocre, optando pelo ativismo
político e depois se tornando para o resto da vida uma espécie de governanta
sempre à mão na casa de A cidade de quatro portas, o volume final
da série).
Com relação à reverberação de um
lugar distante, um ponto geográfico marcado por certo exotismo, dentro dos
acontecimentos da narração, esse conto faz par com o anterior, “Jacarta”,
no qual um dos maridos morre (ou na verdade não morreu, apenas deu um jeito de
se evadir?) na cidade do título.
6 E parece que mais do que “entrar
na personagem”, como se diz, ela aprecia “sair da sua vida”, tornando-se a
observadora de fora, muito presente nos contos de Alice Munro (pelo menos, nos
que eu li). Durante os intervalos de ensaio, quando sai para comprar
refrigerantes e café para o grupo: “Apreciava a curta caminhada pelas ruas
vazias, sentia como se tivesse se tornando um ser urbano, alguém apartado e
solitário, que vivia no fulgor de um sonho importante.”
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