Balanço final, de Simone de Beauvoir
Por Rafael Kafka
Simone de Beauvoir em seu apartamento em Paris, 1985. Foto: Gérard Gastaud |
Simone de
Beauvoir se apaixonou tanto pelas palavras que fez questão de registrar todo o
mistério transparente da existência (sua outra paixão) em livros repletos de
vigor e vida. As suas memórias arrastam-se desde a mais tenra juventude com
suas Memórias de uma moça bem comportada, passando por A força da idade e A
força das coisas até chegar a Balanço final. Além desses, há A cerimônia do
adeus em que a autora se preocupa mais em relatar os últimos anos de vida de
seu companheiro de toda vida, Jean-Paul Sartre.
Mesmo em
seus romances, Simone coloca diversas passagens de sua vida pessoal. O exemplo
mais claro disso fica por conta de A convidada, livro no qual ela aborda o
triângulo amoroso vivido entre ela, Sartre e sua aluna Olga. Em seu ensaio O
segundo sexo, o segundo tomo é todo dedicado à experiência vivida pelas
mulheres, citando um sem número de fatos concernentes à situação concreta de
pessoas que viveram o problema da servidão feminina.
O pressuposto
do existencialismo, filosofia apregoada por Sartre e compartilhada por Simone,
é o retorno fenomenológico às coisas em si. Neste sentido, a intencionalidade é
o fio condutor de sentido dado pelo ser humano à realidade que o circunda. Por
conta disso, as obras existencialistas valorizam demais a experiência concreta
e as obras são cheias de uma espécie de um realismo sem aquela descrição
exaustiva do realismo do século XIX, porém. Os romances de muitos autores
existencialistas são influenciados por técnicas narrativas que valorizam o
fluir contínuo dos fatos, pois a existência em sua opacidade é um contínuo
vir-a-ser, uma sequência de fatos ininterrupta.
Simone,
apaixonada pelo aspecto ambíguo da existência, tornou-se uma autora de memórias
muito fecunda, explorando em seus textos vários subgêneros de narrativa. É
possível ler em suas páginas relatos de viagens, críticas de arte, debates
políticos, resenhas de livros seus que estavam a ser produzidos em dado momento
de sua vida, além de histórias ligadas a sua vida amorosa. Percebemos em seus
livros uma certa discrição quanto à vida íntima envolvendo outras pessoas. Não
há relatos, por exemplo, de aventuras sexuais, e muito do que se sabe sobre o
amor livre vivido por ela e por Sartre vem de estudos biográficos feitos por
terceiros, correspondências e diários íntimos. Nos romances, como o já citado A
convidada e no gigantesco clássico Os mandarins, temos relatos bem detalhados
de aventuras de Simone como a tida como Bost ou de longos romances como o
mantido com Nelson Algren.
Apesar
dessa reserva, ler as memórias de Simone nos permite ter um contato muito
profundo com sua constante formação intelectual e pessoal. Vemos o nascimento e
crescimento de seu espírito aventureiro e viajante e de como o feminismo para
ela se tornou uma missão. Balanço final é a síntese de tudo o que foi vivido
por ela em sua rica existência.
Ateia, o
envelhecimento passou a preocupar Simone como o surgimento cada vez mais
iminente de um aniquilamento de seu ser. Ainda assim, idosa e sem crença em um
ser superior, não percebemos em suas linhas um tom melancólico, saudosista ou
derrotista. Simone segue engajada em causas políticas das mais variadas e em
constante atividade intelectual, sem contar em suas tradicionais viagens.
Logo no
começo de Balanço Final, Simone explica que não usará no presente livro a ordem
cronológica de seus textos anteriores. A sua preocupação era passar ao leitor
uma visão plena de sua existência a qual era impossível de se passar, na visão
da autora, em uma ordem cronológica dos fatos. Neste sentido, no decorrer do
livro temos uma série de linhas de tempo que são cortadas para relatar em
separado e modo bem analítico fatos que ocorreram em épocas bem próximas. O
objetivo de mostrar uma visão bem concreta do período vivido por ela é
conseguido, apesar de em alguns momentos a leitura se tornar cansativa.
São bem
interessantes as reflexões de Simone no começo do livro sobre o ato de leitura.
Sartre expôs em O que é a Literatura? como
há um pacto entre leitor e escritor no ato de leitura de uma obra: a
intencionalidade do leitor é que o faz ver na obra um universo que o prende e,
após se ver engajado na leitura, ele empresta o seu universo subjetivo
(emoções, sentimentos, ideias, etc.) para dar à história o seu colorido.
Simone
analisa diversas mídias como o cinema, a televisão, o teatro, para mostrar que
mesmo em tempos de imagens em movimento intenso a literatura seguirá viva por
conta da magia desse pacto que ela cria com seu leitor.
O livro é
dividido em diversos tópicos. A autora fala em separado de suas viagens, da
morte de pessoas próximas, de filmes vistos, de peças assistidas, de eventos
dos quais participou e de esperanças perdidas e ressurgidas. O livro torna-se
de leitura lenta demais em certos pontos, como quando ela uma viagem ao
interior da França feita por ela. Há certos detalhes como a arquitetura de
igrejas e de outros pontos turísticos que podem se tornar extremamente maçantes
para quem se acostumou com o seu ritmo intenso dos romances e das outras
autobiografias, quando os fatos eram o mais importante. Ainda assim, ficamos
impressionados com o nível de erudição de Simone de Beuavoir nesses momentos.
As viagens
têm quase sempre uma conotação muito política. Elas nos permitem ter uma noção
bem clara do que era viver a Guerra Fria defendendo claramente uma posição
politicamente. Simone era partidária do socialismo utópico e via nele a
esperança de a classe trabalhadora viver dignamente. Vários focos de socialismo
surgiram com o passar do tempo, mas quase todos foram dominados pela ditadura e
censura violenta a todos os cidadãos. Chega a ser tocante ver Simone relatando
sua decepção com os países que melhor encarnaram a esperança socialista: a
União Soviética e Cuba.
O clima em
diversas passagens do livro nos leva a ter uma noção muito clara de conflitos
que duram há séculos, como a questão palestina em Israel. E ficamos tentados a
ver que tais situações continuarão por algum tempo sem uma solução concreta.
O
engajamento de Simone pode ser observado em sua constante participação em
movimentos como o de maio de 1968 e nas marchas pela libertação das mulheres.
Por sinal, é em Balanço Final que pela primeira vez ela assume-se feminista.
Fala de certas posições suas defendidas em seu imenso ensaio feminista as quais
revisaria hoje em dia, em especial a da iminência da libertação da mulher:
Simone entende que a luta ainda deve perdurar muito para somente então termos
certeza de que a igualdade dos gêneros passou a se dar realmente.
Creio que o
trecho mais significante do livro seja o referente ao Tribunal Russel. Tal
tribunal foi uma versão para a guerra do Vietnam daquilo que foi feito em
Nuremberg para avaliar os crimes cometidos pelo nazismo. Porém, nesse caso há
algo que torna a missão mais corajosa: o nazismo já estava destruído enquanto
sistema político quando ocorreu o tribunal de Nuremberg. Desta feita, o inimigo
estava bem vivo e era a maior potência do mundo: os Estados Unidos. Uma série
de intelectuais encabeçada por Bertrand Russel, Jean-Paul Sartre e Simone de
Beauvoir avaliou durante várias reuniões os ocorridos na guerra do Vietnam e,
ao fim, declaram que os Estados Unidos cometeram um ato de genocídio atroz.
Apesar de
sua função simbólica, esse tribunal ajudou, e segue a ajudar, como uma grande
potência imperialista foi capaz, e segue sendo, de aniquilar quaisquer
obstáculos que sejam entraves em seus interesses políticos. Desafiar tal
potência em um tribunal que visa mostrar como nada tem de nobre em destruir uma
pequena nação é um ato de coragem incomensurável.
Balanço
final não é o livro que mais gostei de Simone. Fica mais interessante depois da
metade e em diversos pontos a leitura se arrasta. O formato do mesmo lembra
demais As Palavras de Sartre, um ensaio autobiográfico no qual o autor analisa
a sua situação de criança. Todavia, o texto de Sartre por ser menor sai mais
fluído e limpo. O de Simone fica em alguns momentos repletos de detalhes que
poderiam facilmente serem suprimidos.
Apesar
disso impressiona vê-la no alto de seus sessenta anos com uma atividade intensa
e um espírito jovem. Ambos apaixonantes. O livro acaba sendo uma bela forma de
síntese de toda uma vida dedicada ao pensamento crítico e ao engajamento
político com um pensamento de esquerda e libertário.
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