Ao lado de Clarice
Por Cesar Kiraly
Ilustração: Catarina Sobral |
§ olhava para os braços brancos e
percebia perfeitamente a forma dos dedos um pouco mais brutos, mas bem
recebidos. se Freud havia se encantado com o bloco mágico; a sensibilidade de
todos os seus capilares - um por um sob invocação dos nomes próprios - era mais
do que qualquer tábula rasa, mais do que qualquer placa de gesso. na coxa,
pontas bem roxas de quinas, sobrepostas a rodelas já amarelas. era isso a vida,
uma topada. distraída soubera a dor como um preço baixo pela vida mais intensa.
era isso a sorte, poder ver cada um dos lances sem dados no corpo. doce
evidência constante de saber da vida um - traço.
§ se um camarada se joga de um
penhasco, sabendo que terá vontade de se segurar, e quando cai, tem vontade de
se segurar, a coisa não parece grande coisa. a mesma coisa, não é surpresa ter
vontade de respirar quando se coloca a cabeça debaixo d'água. qualquer cético
poderia ter dito a Descartes que ele teria vontade de crer no 'eu penso' quando
começasse a duvidar de tudo. o cético não duvida de tudo, ele sabe que pode
duvidar de tudo, mas não em qualquer circunstância: não duvidará do 'eu
respiro' sob água, não duvidará do 'eu me seguro' sob queda e não o fará ao 'eu
penso' imerso em dúvidas acerca da identidade. o estranho é alardear: - amigos,
amigos, tive vontade de respirar, logo o 'eu respiro' existe. o que Descartes
fez de grande não foi inventar o 'eu penso', pois esse é efeito do meio, mas
perceber que o 'eu penso' é uma imagem do pensamento.
§ não sabendo como, melancólico,
referir-se àquele tempo, resolveu concatenar meia dúzia de imagens curtas, a
elas tão somente agregado o valor de não serem boas ou más. a determinação do
rosto naquele tempo é bastante simples. pelo frio, ele era usado lanhado, os
lábios um pouco rachados, os cabelos muito lisos caindo na testa, o corpo muito
teso, pelos movimentos constantes. a rapidez secretaria um suor fumegante pelos
seus poros a encontrarem correnteza em suas têmporas. uma máscara, por vezes,
abafava-lhe o hálito a repor ao mundo apenas seus olhos, que o tempo escurecia
à coisas pequenas e negras.
§ da mesma forma que o
experimento não suplanta a experiência, a probabilidade matemática não suplanta
a chance.
§ pelo horror que sentia das
novelas, imaginou que se escrevesse uma, começaria se referindo a um ponto
suspenso. neste, o narrador contaria uma história de alguém melancólico, que,
para fugir das novelas, estaria embrenhado em complicações lógicas: - pararia,
como por espanto, reconheceria a homenagem que estaria a prestar ao gênero que
tanto detestara: - as meta-narrativas seriam o monumento ao soldado
[desconhecido] sem nome: - algo pesado e bonito típico das coisas que morrem
uma morte de mentira.
§ ao mesmo tempo em que o fazia.
lembrava de sonhos estranhos. neles, os acontecimentos se ligavam como em um
romance policial. pensou como seria saboroso saber escrever daquela forma como
sonhara; os acontecimentos não passariam. a escrita poderia ser ilimitada.
amarrada apenas pela lógica que desenvolvera. uma proveniente da filosofia. mas
franqueada apenas aos mais atentos. naquele dia. era a algum escritor
contemporâneo que se dedicava. meio sem gênero. oscilante entre o ensaio, o
romance policial e a meta-narrativa. sentiria vergonha de sonhar tão baixo.
§ todo esse tempo vago se devia
ao fato de ser carteiro concursado e trabalhar duro apenas alguns dias na
semana. era pequeno e de um tom vermelho sobre pele como de lagartixa. óculos
muito fundos. estudante noturno de filosofia. um ombro mais alto do que o
outro, como que feito para as malas, ou por elas feito, como os arqueiros a
seus esqueletos. é comum se dizer que nenhum carteiro é um carteiro ordinário.
essa verdade se aplicava a ele. a não ordinariedade de sua trajetória se devia
a desde sempre se ter imaginado entre pacotes. algo no ‘extravio’ lhe falava à
alma.
§ o refestelamento contente era
inevitável, ao se ver em garrafais letras no corpo da jukebox: ‘favor não bater
na máquina’. se tremebunda à voz mais alta a pobre; ora, estávamos, em definitivo,
numa era de candura.
§ não há formas de altruísmo mais
corajosas do que a beleza e o bom gosto. donde o egoísmo profundo da rudeza.
§ na triste manhã - se alguém
desse crase a vontade - o rebater do sino despertador - até o fim - porque é
isso que nos confunde - donde deveríamos restar pacíficos - se fala do fim -
para o fim - com o fim - não é metafísico dos finos - mas padre de ovelhas -
amansador de brios - pastor de olvidos - se a indignação não pressupusesse
inatividade - não teríamos um mundo de irritados homens - mas de radicais
livres - que me livrem de me indignar com os indignados - que me cometam -. ai
de quem brinca `.
§ por que todos os gatos são
maoístas? - pensavam os dois de mãos dadas mas encostados à parte alta do
palanque, vendo aquele mar de pessoas de vermelho e bandeiras, sem ter que ver
nada com aquilo tudo.
§ sandálias soltas nos pés, calça
jeans e camisa sem botões. algo como costeletas aos lados da cabeça. cabelos um
pouco compridos para dizê-los curtos, mas um tanto faltosos para dizê-los
fartos. um lanche calórico e os cotovelos apinhados de psoríase. só. seria eu
amanhã? dentro em fosso? capaz, jamais estaria tão mal vestido.
§ envolta em cabeleiras de chama,
ela buscaria os meus olhos imersos em olhar cego - atravessando-a, impiedoso,
para se fazer cúmplice das janelas, imundas.
§ o que me pertence / de per si /
não é incólume / ileso / mas se transfigura em coisa minha / a mim me participa
/ depois da queda / por vezes ela já estaria lá / sim / a queda / a
reconheceria então como queda minha / noutras / se escorregam das minhas mãos /
ou se quedam naquele instante breve em que deixadas na mancha / no risco as
tenho solitárias / ponho-as em casa / ai do mundo / simpatia perdida / a
reserva de cordialidade percebida se dá entre aqueles com fogo e aqueles sem
vida / não se preocupem objetos caídos / perdidos / nas minhas mãos o mundo se
regenera dos martírios / mantenho uma magreza atroz / que é para ser capaz de
me esgueirar certeiro / no farpado dos lugares proibidos / se as plantas dos
pés se fazem plantas / sei ver nas panturrilhas relaxadas / o eco do
tesamento dos calcanhares pelos saltos
suspendidos.
§ uma grega pronta a ser degolada
por se apaixonar por estrangeiro / disposta ao apedrejamento / por que porta
cabelos tão compridos em cachoeira? / por que cruza as pernas com o pulso entre
elas e logo toca o queixo com a outra? / falaria alguma língua que eu também /
sabe, senhorita toda vestida de negro, não é sempre, não, não é sempre / um
melancólico disposto a viver / se eu te fosse aproveitava essa brisa de vida
dentro de mim / ela faz maravilhas / muito mais do que a morte nos cheios de
ventos / as suas canelas / não por serem finas / mas por serem ironicamente já
minhas / marcadas em negativo pelos meus dedos nelas prensados / ambas as mãos.
§ ficaria mesmo assim com o
primeiro pedaço? rememorou toda a cantoria em muitas vozes. o escuro
parcialmente interrompido pelas velas que iluminavam o bolo de Clarice. seria
ainda ele o primeiro a comer a peculiar mistura de abacaxi e creme, se
confundisse Bioy Casares com Boris Karloff? não havia outra questão, mas apenas
essa, a compartilhar o espaço com o lenço em seu bolso de linho, umedecido pelo
calor de Janeiro no peito.
§ mas não seria, na verdade,
escrever como [...], mas por alguma coisa de seus escritos tomada sem cuidado,
na rápida passagem de folhas, a percepção de não se tratarem propriamente de ficção
ou ensaio, e notar que na transposição de idéias, poderiam ser coladas provas
de nada como bilhetes e recortes de jornal. mas não teríamos uma grande
desgraça para cobrir, mas um relato dos dias. a tentação de colecionar citações
também seria evitada. não, não é passar por [...] ou [...], e sim entender que
o gênero é sempre menor do que a variação que o abole.
§ - quase não o reconheci, com
essa barba, apenas pude perceber quem era depois que disse o meu nome - o
barbeiro falou espantado - sim, estive uns dias sem muito o que fazer, e pensei
que era o caso de deixar o cabelo crescer e também a barba, assim eles fariam
alguma coisa por mim - respondeu Lúcio - donde se iniciou uma sequência: corto
o cabelo como? - do mesmo jeito - quer que eu faça a barba? - acha que poderia
apenas aparar? - vai continuar com ela? - não, deixo só mais uma semana - então
não compensa, vai pagar para nada - então não faz - o poeta deu a última
palavra. depois de cortar, o barbeiro posiciona a tesoura na perpendicular em frente
aos olhos de Lúcio: - e essas sobrancelhas? - desempenha com o instrumento
cortante, as voltas dadas pela projeção infinita de rebeldia acima dos olhos,
que tanto lhe haviam incomodado. - o que é que tem? - o poeta interroga. - não
quer que as apare? - Lúcio respira e pensa que poderia dizer, somente, que
gosta delas assim; então, como era de seu feitio, involuntariamente enfeita a
realidade: - uma vez uma senhora me maquiava para uma festa - sem querer se
colocou como Aschenbach, no Morte em Veneza - até que chegou ao mesmo lugar em
que está e me fez a mesma pergunta. ora, eu respondi que se ela me arrumasse as
sobrancelhas, estaria perdida minha bruma de genialidade - o poeta duramente
procurou os olhos do interlocutor ao espelho. o barbeiro sorriu e disse que um
outro cliente se negava a cortar, para não perder o respeito da neta.
§ - eu não sou como todo mundo -
.
§ seus sapatos estavam muito bem
lustrados e estalavam contra o calçamento de pedra embriagado pela hipnose de
suas pernas propositalmente moles. ele queria ser ao mesmo tempo leve e
gracioso e divertido e leviano. o animismo das calçadas lhe servia para direcionar
a reinvenção demiúrgica dos movimentos do corpo. para ele, todas as vezes em
que o antianatômico se dava no mundo, com objeto ou pessoa, numa fratura ou
numa dança, a experiência se mostrava como a imagem que era. Clarice caminhava
ao seu lado, linda, abriu a cigarreira, donde ele a surpreende com fogo; e após
sentir o perfume da primeira resposta de fumaça, diz: - é sério isso?
mentolado? - recuperou a imagem presenciada, há tempos, dela gotejando a
essência gota à gota, um a um, naqueles que repousariam para serem acordados em
chamas. - acho que a essência é algo que é pingado ao embebimento em cada um de
nós, em cada uma das coisas; aquelas tidas por sem essência, na verdade, só
estariam secas. a diferença, e isso não seria bom ou mau, seria a capacidade de
reter esta umidade. - então este aqui é um danado de um ente profundo, para o
bem ou para o mal - suspirou Clarice.
§ a fênix não pode ressurgir
depois de se fazer cinza por um cigarro por ela própria fumado.
§ Lúcio sabia bem que o prazer de
desejar a própria morte era bem estranho, mas bastante simples de ser
entendido. para ele as contradições eram como pontos luminosos para todo o
mundo.
***
Cesar Kiraly é professor de
Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e do
IUPERJ. Além disso é autor de livros de poesia e de ensaios. Edita, com Pedro
Fernandes, o caderno-revista de poesia 7faces.
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