Álbum de família, de John Wells
Álbum de família. Os termos assim dispostos levam, pela
circunstância do escrito, a outra obra conhecida de parte dos brasileiros,
escrita por Nelson Rodrigues, o mestre se não na compreensão, na construção pela vida da literatura daquilo
que há de mais escondido no desejo humano. As semelhanças, entretanto, param aí
na nomeação das obras; ao menos, a perversão sexual não está de um todo
explícita como na obra lembrada. O que não significa dizer que ela aí não esteja. Paira nas muitas das
situações que chegam à superfície da narrativa – como é caso na relação entre
cunhados, na relação entre irmãos advinda desta relação e no envolvimento de um cara mais
velho com sua própria sobrinha, relações sobre as quais não devemos destrinçar
mais adiante para não transformar este texto num minério de spoilers.
O que vigora, entretanto, de uma ponta a outra da trama é
apenas uma única coisa: uma certa amargura, produto de primeira de um conjunto
de relações complexas e sustentadas pelo fio tênue da mentira. A começar por
Violet, magnificamente interpretada por Meryl Streep, demonstrando toda a
capacidade e versatilidade da atriz (essa sua personagem, apesar de inscrita no
rol da comédia, tem muito mais do drama que do outro gênero), uma personagem
com um pé na tradição – “No meu tempo, a família ficava unida”, diz ela a certa
altura – cujas relações eram outras, ou pelo menos tinham outro sentido, e
outro pé na ruína dessa tradição. Ela própria carrega consigo um casamento
desde há muito à beira da falência, suportado à base de toda sorte de
drogas, dos remédios que toma em altas dosagens para o tratamento de um câncer
de boca, aos por puro esporte, ao álcool.
Álbum de família
marca o encontro da chamada grande geração, aquela que aparece logo no fim dos
anos 1960 com a prosperidade do pós-Guerra, e a geração moderna e
contemporânea. É, portanto, um filme sobre a crise de valores da tradição, o fim de um modelo social e o
aparecimento de outra ordem cuja tradição apresenta-se reinventada como
subproduto da geração da qual Violet faz parte. Presa a um tempo que não existe
mais, ela é apenas um tipo que repete as memórias já ultrapassadas – “No meu
tempo...” – sempre com a mesma imagem melhorada do que de fato talvez fosse (e
aí está o segredo que paira o triângulo Violet-Beverly-cunhada demonstrando
essa farsa).
É o desaparecimento do marido, um professor universitário já
aposentado e poeta fã de T. S. Eliot, primeiro marco de crise da grande
geração, que dará início ao desenvolvimento da narrativa: a chegada do cunhado
de Violet e sua família e das três outras filhas – duas delas saíram de casa depois de casadas e
a outra por opção própria, em busca de uma independência. Todos juntos para
acompanhar as investigações do confirmado suicídio de Beverly, o marido de
Violet, e o funeral, o reencontro é motivo suficiente para, ora trazer à tona a
história de distanciamento entre o casal centro da família, ora para tratar de
um passado que assombra uma das filhas, ora para um acerto de contas entre
todos os membros, afinal todos têm seus segredos a confessar, ora ainda para
esclarecer os rumos um tanto diverso tomado por cada um dos da família.
O enredo complexo, mas bem elaborado a ponto de não deixar
ninguém em dúvidas sobre as relações em que estão metidas cada uma das
personagens, foi baseado na peça de teatro vencedora do Pulitzer, August: Osage County, de Tracy Letts (mesmo título, portanto, do filme). O
filme é uma leitura muito bem acurada sobre a reviravolta das relações na
contemporaneidade, sobretudo, uma investigação acerca dos carunchos que têm, ao
longo dos séculos, corroído a instituição símbolo da burguesia – a família.
Evidente que há questões novas, mas se nós formos ver de perto os dilemas
colocados em cena em Álbum de família
eles ainda são os mesmos que atacaram os romancistas do realismo (pensem aqui
em títulos como Madame Bovary, de
Flaubert, O primo Basílio, de Eça
Queiroz ou mesmo Dom Casmurro, de
Machado de Assis). Ou não está no adultério a base de toda má sorte enraizada e
alastrada para todas as relações matrimoniais na narrativa de John Wells?
Sem esquecer o momento histórico pelo qual atravessa a
sociedade estadunidense, o filme de Wells é também uma leitura muito
apropriada, sobre sua decadência. Lembrou-me isso diante do que significa Violet,
a última das matriarcas, a que não tem mais o domínio e nem incidência sobre
suas crias e aos poucos perde o próprio domínio sobre si. É muito válido nesse
contexto, o isolamento a que esta submetida e a atitude de fazer da casa um
reduto da noite ao fechar portas e vedar janelas com travas e telas. A casa de
Violet ainda tem em sua superfície todo o espírito pungente dos áureos tempos,
mas por dentro tudo se desfaz; nada parece mais ter um sentido. Nesse ínterim,
vale lembrar, como exemplo, da partilha dos móveis da casa entre as filhas,
depois da morte de Beverly, e recusa, de uma maneira ou de outra, dos bens,
como coisa sem valia alguma.
Se nos detivermos no lugar onde se passa a narrativa – médio
oeste dos Estados Unidos, o lugar mais quente, ou o inferno do país, a parte erguida à
luta de sangue entre brancos e índios – notaremos que a família, metonímia do
país desbravado, é também um elemento pelo qual se apresenta mais uma peça do
grande quebra-cabeças de formação da nação estadunidense. É significativo aqui a chegada
da descendente indígena, muito de emigrante mexicana, no centro dessa família,
contratada por Beverly para cuidar de Violet e a implicância constante da patroa com ela. Implicâncias
à parte, a cena em que Violet, abandonada, só tem refugio nos braços da
empregada parece ser um indicativo de que, se ainda o estadunidense não
aprendeu a conviver com as diferenças deve, de imediato, preparar-se para essa
nova configuração social. A dispersão da família parece soar aqui como uma
farsa da unidade identitária então forjada pelos os dos Estados Unidos.
Álbum de família é
também uma narrativa sobre a crise dos afetos. Quase não há qualquer gesto do
gênero ao longo do filme, salvo algumas cenas do princípio de relacionamento entre
os irmãos. Fica demonstrado, dessa maneira, que o individualismo e o
distanciamento praticado em larga escala pelos sujeitos não é uma invenção da
modernidade, mas um aperfeiçoamento dos tempos de outrora, afinal o afeto só se
manifesta na geração de Violet no silêncio do gabinete depois da perda da
pessoa amada.
Tudo isso só prova da extrema validade que é ver e poder
discutir sobre esta narrativa. Suscitaria, outras muitas questões se nos
prolongássemos; firma como sendo um dos filmes que merecem entrar para a lista
do que deve ser visto em 2014 ou depois.
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