A Papoila e o Monge, de José Tolentino Mendonça (Parte II)
Por Pedro Belo Clara
Retomando
a análise da obra apresentada na anterior publicação desta coluna – o mais
recente trabalho poético de José Tolentino Mendonça –, focaremos agora a nossa
atenção no segundo volume (de seis, recordo) que compõe este livro.
Neste
capítulo, o mais longo de todos os que constituem a obra, encontram-se reunidos
quarenta e nove haikus sob a epígrafe “Vida Monástica”. A ligação do autor ao
catolicismo é evidente e por diversas ocasiões foi referida em anteriores textos
por minha mão assinados. Assim, o retorno do autor a estes temas não deve
constituir um motivo de surpresa. O divino é uma constante na temática de
Tolentino, que amiúde o apresenta sob uma só forma informe que assume a maior
multiplicidade de formas possíveis, sublinhando desse modo a Sua inquestionável
omnipresença. Daqui se poderá assumir a intenção do autor em transmitir a
seguinte mensagem: não existe um só caminho até Deus, uma vez que Ele se
encontra em toda a parte e assume todas as formas. O Homem e Deus são, assim,
dois elementos completamente indissociáveis – daí a naturalidade com que o
autor transpõe o divino para a realidade humana e o insere, com todo o
esplendor da sua luz excelsa, nos problemas e nas questões existenciais do
Homem moderno.
Contudo,
Tolentino, neste volume, nem sempre vai tão longe assim. Registando o carácter
reflexivo que fora já apanágio do volume que a este se antecede, apesar de este
aqui se notar menos vincado, ao longo dos haikus apresentados é possível
identificar as notas que compõem um quase hino em honra daqueles que optaram pela
via em causa. As reflexões compostas sob o ponto de vista de quem vive este
singular tipo de vida, bem como os cenários a ela inerentes e as incidências da
opção tomada, surgem, assim, ao jeito de uma serena contemplação, mas tomam
sempre como foco o detalhe físico e metafísico da vida monástica que de solidão
se rodeia.
Este
estilo de vida exige, indubitavelmente, um protagonista: o monge. O autor
retrata amiúde esta figura num estado quase transcendente que se traduz numa
assumida alienação do ser, ser esse que desprovido de perguntas "sem pressa
existe". Mas a conquista não é inócua. Deve-se, de sobremaneira, à sua pessoal
entrega à causa em que crê, sem esquecer o praticamente constante estado de
contemplação em que o monge vive, só e despojado: "Os que se assemelham a nada/ assemelham-se/ a Deus". O monge não cessa, assim, de ser um digno reflexo do
divino.
Esta
figura humana que reza "troncos secos, gravetos/ cercas e barro vermelho" recorda-nos como o encontro com o absoluto se opera e concretiza na pobreza, na
humildade e no despojo do ser. O autor apela ao peregrino que existe em cada
Homem e ao seu lado mais veemente missionário, mas não deixa de sublinhar a
ideia de que múltiplos são os caminhos até Deus. Apenas por louvar uma via,
Tolentino não a considera exclusiva.
A
existência do monge, ainda que solitária e propícia à meditação ("Por pátios e
jardins silenciosos/ se chega ao lugar/ da contemplação"), é impregnada de
leveza por tão pobre ser, praticamente insignificante. Mas essa aparente
fragilidade somente constitui uma força inimaginável, qual semente que da terra
irrompe e de pronto se transforma na mais frondosa das árvores. Recordo, portanto,
que é por nada ser que se assemelha o monge à própria essência de Deus. Tanto
assim é que o próprio, o Divino, de um sopro consegue extinguir o seu indício
tão materialmente frágil, mas de infindas fortificações etéreas: "Deus apaga/
o nosso rasto/ como se apagasse uma vela".
O papel do monge deverá ser interpretado e
aceite como o de uma “personagem-tipo”. Afinal, também ele não deixa de ser
humano e, como tal, de estar sujeito às emocionais incidências que comummente afligem
a sua condição: "A brisa arrasta pelo pátio/ restos/ de uma antiga dor". É
aqui que surge a peculiar dualidade que lhe é inerente (tal como a todo o
Homem, obviamente): em si, a matéria que o compõe busca o etéreo que é
igualmente uma parte de si mesmo. Contudo, esta busca aparentemente exterior é,
na realidade, uma busca exclusivamente interior. Deus está "vazio/ de todas/
as suas obras" e "A verdadeira ciência da santidade/ é viver/ sem porquê". A
aceitação, por isso, é um mero caminho para alcançar esse íntimo e ardente
intento, até que, por fim, se efective o mais ansiado desejo: "Ver Deus em toda
a parte/ como se ele estivesse ali/ e eu aqui".
É
claro que este volume, ressuscitando uma ideia antes explanada, é uma espécie
de canto serenamente contido (o silêncio é sacro e não será alvo de
perturbações), dedicado a todos aqueles que fazem das suas vidas um acto de
oração. O autor sublinha, como quem eleva, o abandono que requer este tipo de
vida e a dádiva que pauta cada dia que o monge passa em "total piedade/ sem
nada pedir", ainda que numa espécie de clausura "tudo pareça igual". É, aliás,
na entrega e na dádiva que a escolha ganha superior sentido e toda a hipotética
agrura que ao monge advém como consequência da solidão, do abandono e da
abnegação, se justifica, sendo tais actos praticados com a menor influência
possível de um ego ávido em julgar e condenar ("(…)/ não aproximes do fogo/
um coração de neve").
O seguinte haiku, por sinal belíssimo, parece
confirmar a ideia que da entrega se constrói a dádiva: "O meu desejo na
primavera:/ que mesmo as flores selvagens/ venham florir à minha porta". As
flores menos domesticadas, chamemos-lhes assim, não deixam de possuir a sua
beleza, e o monge sabe que nessa singular rudeza mora a hipótese de crescimento
da própria flor. É um jardim que terá indubitavelmente de auxiliar no seu
tratamento, como se a própria consciência lhe implorasse a aceitação do
desafio. Eis, então, o efeito da dádiva concedida: "Depois de uma tarde a
tratar do jardim/ a nossa vida/ importa menos". Mas, apesar de toda a
altruística postura, muito naturalmente a dúvida e a descrença nunca assumem no
seu ser uma posição veramente distante: "Um a um/ esqueci os motivos/ por que
vim". O "monge duvida", mas, como em "Deus tudo é Deus", o suspiro somente surge
como um reforço da fé que cultiva. É um teste à crença, não o prelúdio da
capitulação.
O
derradeiro poema do volume, que vem esclarecer o título de toda a obra, encerra
um subtil ensinamento que serve de mote a muitas outras ideias e intenções
impregnadas não só neste volume em concreto como também em certas passagens do
livro em geral. Nele, é escrito o seguinte: "O verão/ ensina a mesma prece/ à
papoila e ao monge". Ora, daqui sobressai a ideia de que o monge, pela vida que
escolheu ("(…) / uma forma de nudez/ que não se envergonha de si"), acaba por
se fundir nos próprios elementos que o circundam. Não existe distinção. Mais do
que ser Homem, ele é flor por viver, talvez, num estado igual ao das plantas –
contemplativo, sereno, passivo. Mas, mais do que isso, papoila e monge são uma
coisa só. Entendem a mesma linguagem e recebem o mesmo ensinamento. São uma
coisa só.
Para
se tornar possível a compreensão deste nível, é necessário recordar o estado de
contemplação em que o monge vive. Desde já, não existe distinção; não subsiste
uma valorização ou decréscimo. Homem e flor são iguais no cenário que os
recebe. A ideia emerge e solidifica-se através do reforçar do carácter de
comunhão que pelo monge é praticado. O segredo da sua transcendência reside na
renúncia, no irrevogável abandono do “eu” ("Sem abandono/ seríamos chama fora
do fogo/ água fora do mar"). Tal acto é absolutamente inexorável e
indissociável da condição monástica em que vive. Estará, assim, oculto no
abandono da personalidade a desejada Unidade? No poema que encerra o volume as
direcções que guiarão o leitor à formulação da sua própria conclusão surgem
levemente definidas. Bastará ler e reflectir sobre o que abertamente esses
versos não dizem, mas permitem antever.
É
provável que num primeiro percepcionar as intenções deste volume desiludam um
pouco o leitor… É natural, por isso, que, ao lê-lo, sinta uma certa despertença
em relação ao tema e que o considere, até, como um objecto que pouco ou nada
lhe poderá acrescentar. Afinal, o autor foca-se num segmento bastante restrito
e, como tal, específico, pelo que, a menos que o leitor tenha a condição de um monge, as ideias no volume colocadas não terão
o efeito pretendido. Mas é do particular que Tolentino pretende atingir o geral.
Apesar deste capítulo pretender homenagear todos os homens e mulheres que se
entregam a tais crenças e causas, vale o mesmo pelos retratos que nele são
construídos com uma habilidade bem treinada. Isto, é claro, além das reflexões
subtis que oferece (embora neste caso o principal enfoque nem seja sua pertença
exclusiva).
Em
cada palavra impressa mora um instante merecedor de ser saboreado por quem o
ler. E, pairando sobre o cenário geral, a eterna figura do divino, a superior
figura que, mesmo ausente dos versos, sempre se encontra presente. Sobeja,
assim, a imagem de um “Deus Pai” benévolo e justo, sem julgamento ou condenação
pronta, mas que existe ao jeito de uma estrela que brilha no alto da noite
escura. Além de toda a palavra e significado secundário, “Vida Monástica” traz
o precioso conforto dessa ideia tida por inquestionável certeza.
Em Deus tudo se assemelha:
a tua prece e o canto
da rã
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog preservamos o grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A Jornada da Loucura (2010), Nova Era (2011) e Palavras de Luz (2012) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados nos blogues pessoais do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas) e O Manifesto (artigos políticos).
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