a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe
Estruturado em vinte e dois capítulos, cada um com títulos,
alguns como se fossem sentenças – “a brancura é um estágio para a desintegração
final”, “o amor é uma estupidez intermitente mas universal”, “o tempo não é
linear”, “deus é uma cobiça que temos dentro de nós” – este é o quarto romance
de valter hugo mãe (até aqui ainda em minúsculas com breves incursões pelas maiúsculas).
Diria, para efeito, que este é também o mais acabado e o melhor romance do
escritor português, embora cada um de seus trabalhos no gênero tenham rumos
diferenciados a ponto de que um julgamento dessa natureza possa ser percebido
apenas como uma comparação errônea de sua obra, possibilidade que logo descarto
por saber que na diferença também é possível estabelecer paralelas. Este
julgamento, portanto, guia-se apenas pela via de destacá-lo do conjunto de sua
obra, uma vez que, temos atestado essa teimosia do escritor em se fazer
diferente a cada texto e, obter dentro desse desafio, sempre, o melhor
resultado, consolidando o seu nome entre as melhores promessas da escrita em língua
portuguesa contemporânea.
a máquina de fazer espanhóis
é um livro escrito no ritmo de um fluxo verbal que muito me lembrou outros
desbocados narradores da literatura – o de Dom
Casmurro, de Machado de Assis e para estar alinhado ao contexto de produção
da narrativa, o de Leite Derramado,
de Chico Buarque. Com a diferença de que, o primeiro é um ranzinza afundado num
mar de suspeitas que arrisca por todos os acontecimentos num fio bambo,
arriscando afundar também a linha (se houver) entre o acontecido e o
fantasiado. Já o do romance de Chico Buarque, acrescenta ao humor bolorento,
algumas ácidas gotas de vícios culturais acumulados em quantos anos da história
nacional. Atrevo-me a dizer que o senhor silva do livro de mãe é um tanto
polido, se tomarmos o padrão português, o que não quer dizer que seja uma
personagem poço de polidez. Se assim fosse, pobre dos leitores para suportar
uma mentira literária, que os homens de tinta de papel devem estar sempre
carregados do que há de pior da raça humana para que surtam efeito na consolidação
da trama. Nem para mais, nem para menos. O que ele não perde, entretanto, é de
nutrir-se com uma série de acontecimentos que respondem pela sua história
individual e coletiva no Portugal em que vive.
Ou por que não pensá-lo como metonímia do seu próprio país –
asilado depois de perder a única pessoa que mais amou e em simultâneo conseguir
ainda a consolidação do afastamento dos filhos por quem terá lutado toda uma
vida. Seu discurso, portanto, não é produto de alguém que esteja situado no
centro do poder, mas é nascido de uma voz periférica, como tem preferido ser,
até aqui, os seres de valter hugo. É que talvez a vida dos que são o centro não
tenha nada mais que o falsete de ser uma monótona e burocrática repetição de
gestos, sem problemas verdadeiramente humanos ou merecedores da atenção de
alguém. É ele mais um – “somos todos silvas neste país, quase todos. crescemos
por aí como mato, é o que é, como as silvas, somos silvestres, disse eu” – tal como
o Severino de João Cabral de Melo Neto ou o José de Carlos Drummond de Andrade ou
ainda o Sr. José de José Saramago. Todos marcados pela quase obrigação de serem
os mesmos, em suas solidões, sem quaisquer afetos, mas situados no limite da
dignidade. Sua voz é aquela nascida dos de voz única, ou dos silenciados.
É também espécie de refugo humano, produto dessa estranha
máquina a que demos o nome de capital e que deixa sucumbir a todos depois que lhes
sugam toda força de trabalho com que alimenta sua engrenagem; refugo que é
matéria ainda para outras formas de uso do capital – sendo matéria para
enriquecimento de outras instituições e ou de outras pessoas que vivem à custo
daquilo que um velho levou toda uma vida para construir, como é patente o caso
de dona marta, enganada por jovem garoto que finge-lhe amores quando na verdade
o que quer é ter os bens dela para si.
Ainda assim, o sr. silva é dono de uma
vitalidade espiritual muito própria. Depois de se convencer do abandono a que
foi submetido se tornará no que há de melhor no espaço onde está asilado,
reinaugurando nos amigos que constrói aí, outros sopros de vida, ainda que o asilo
seja um lugar situado com vistas para a morte – o asilo é porto de passagem. Perto
do fim, silva não é dono de quaisquer crenças e desenvolve pela religião (uma das
formas institucionalizadas do poder aí colocadas na ponta navalha) representada
pela figura em gesso de uma Nossa Senhora de Fátima com que implica do princípio
ao fim da narrativa. Vale observar nesse jogo de implicâncias as representações
dessa imagem no contexto português e no romance – neste, ela passa a substituir
a imagem comum do próprio silva nos porta-retratos, naquele, a imagem é de artifício
utilizado para docilização dos corpos em nome da ordem social: “olhei para a
figura de nossa senhora de fátima e falei mudo, tenho pena de ti, metida à
cabeceira dos tristes nos lugares mais tristes de todos e agora vem assistir-me,
eu que nada tenho para te mostrar que valha o empenho de manteres
incessantemente esses olhos azuis abertos, essas mãos postas no ar. talvez devesse
despedaçar aquela estatueta. libertá-la da obrigação de estar ali com
solenidades sagradas que, sem dúvida, cansariam o melhor dos espíritos”.
Nesse jogo verbal, há espaço ainda para fazer aparecer na
trama alguns outros elementos do imaginário literário português, quando o sr.
silva dá com a figura do esteves, personagem do poema “Tabacaria”, de Fernando
Pessoa; e a uma série de acontecimentos do passado recente e da história portuguesa,
como a Ditadura Militar e o Abril de 1974. antónio silva é trânsito entre o tempo
em que se lutou muito para ser-se livre e o tempo em que vive preso em nome
dessa mesma liberdade pela qual lutou. Como se a vida fosse assim um depósito
de enganos e mesmo desencantado com a possibilidade de sua plenitude, sua tarefa
enquanto criatura é a de apaziguar espíritos – as cartas falsificadas que
redige para marta, é um exemplo claro disso.
O romance de mãe é uma interrogação sobre a vida, quando
esta está suspensa por um fio muito tênue ou quando os ventos da morte sopram
de vários lados. É também um grito de indignação que vem por uma memória digna
o suficiente para vociferar sobre uma máquina sucateada a ponto de apenas
produzir invalidades. Em termos, a
máquina de fazer espanhóis renova ainda uma perspectiva ibérica que tem
servido de fonte à grande literatura produzida em Portugal desde sempre. Nesse sentido
é sintomática a entrada para a narrativa do espanhol que servirá de contraponto
à personagem principal do romance, mas com igual gosto para crítica – não à
Espanha, observe, mas a Portugal. É também este um romance sobre a degradação
da tradição em detrimento de modelo de vida pelo qual ainda não se alcançou a
plenitude a tanto desejada. Sobre este livro diria ainda muito mais, mas tomando
do trocadilho de um dos títulos dos capítulos “o que couber aí é pequeno”, que a máquina de fazer espanhóis é um grande
romance e merece ser reconhecido como tal.
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