Tatuagem, de Hilton Lacerda
É preciso dizer antes de tudo que Tatuagem é a grande surpresa de 2013. Não que o diretor Hilton
Lacerda não seja peça de se fiar; ele mesmo já realizou outras três produções tão
boas quanto essa – Baile perfumado, Amarelo manga, Febre de rato. Mas, e muita gente há de concordar comigo, o filme
que tem sido o mais premiado do ano, com suas peculiaridades e aposta na inovação,
alcança uma singularidade na produção artística de Hilton.
Mas, o que faz Tatuagem
ser a grande surpresa está naquilo que antecede a sua visão: as leituras
repetitivas da crítica dita conceituada, desmanchando-se em elogios à produção –
e aqui é possível que também essas notas entrem nesse rol – não nos convencem;
ao menos à primeira vista e principalmente se depois de ler qualquer uma delas
formos ver o trailer, esse instrumento que não é apenas a sinopse da narrativa
como tem a missão de capturar o telespectador para ver o filme. E há algumas situações
que a sinopse ultrapassa o filme, ou quem nunca não terá caído nesse curto
artefato de persuasão para se deparar com um filme insuportável?
O trailer do filme de Hilton não consegue ser assim; é falso com ele mesmo porque dificilmente alguém vai cair na história em que se misturam a sisudez de um
quartel e a liberação extravagante de um grupo de teatro. E talvez o diretor
tenha acertado justamente aí – há os que se sentem motivados a ver qual o
futuro de uma narrativa sem grandes efeitos mirabolantes. Mas há algo ainda que
ultrapassa essa curiosidade de cinéfilo: o boca-boca, seja por quem viu o
filme, seja mesmo pela crítica repetitiva. E é preciso ter muito culhão para
confiar o produto final ao telespectador e fazer dele seu principal elemento no
processo de construção de um imaginário em torno do filme. Pois bem, Hilton tem de sobra.
Porque não é apenas essa confiança depositada no seu
trabalho e o alcance que ele tem ao telespectador; é também – e isso é um
elemento repetitivo no conjunto de notas que tenho escrito sobre bons filmes –
sua capacidade de tornar importante uma narrativa aparentemente simplória. Tatuagem tem como centro da ação o
barracão Chão de Estrelas, espaço situado na periferia do Recife e onde aspirantes
à cena artística estão sempre reunidos e-ou em contato, seja para construir
coletivamente suas expressões, seja para compartilhar seus trabalhos
individuais. Paralelo a este espaço marginal, a narrativa se situa ainda numa
zona militar que cumpre aí duas funções: servir de paradoxo ao espaço
principal e servir de projeção do período histórico em que se dão as ações da
narrativa.
Do grupo do Chão de Estrelas, o narrador privilegia o grupo
do qual fazem parte Clécio – vivido por Irandhir Santos, que está num momento
alto de sua carreira como ator –, Paulete, personagem que todos os que virem esse
filme dificilmente se esquecerão de seu despojamento em cena, entre outros,
como a ex-mulher de Clécio e seu filho. Do segundo grupo destaque para Fininha –
personagem encarnado pelo Jesuíta Barbosa que apareceu noutro filme oposto a
este, Cine Holiúde, e poucos encontrarão
alguma semelhança nos papeis desempenhados por ele.
De certo modo Fininha é um elo, o que aproxima os dois espaços,
porque sendo militar e se tornando frequentador do Chão de Estrelas depois de
ser levado ao espaço para deixar ao cunhado Paulete uma encomenda da irmã,
será esta uma personagem situada no que chamaríamos entrelugar, imagem, aliás,
que quer ser o vigor do trailer pouco encantador sobre o qual comentava no início
desse texto. O envolvimento sexual de Fininha com Clécio dá o tônus amoroso da
narrativa que não poupará as cenas de transa explícita entre os dois homens –
demarcando, em definitivo, que esta não é uma narrativa de centro, mas de
periferia, mas sem está reduzida a isto (embora corra o risco de ser rotulada
desta maneira e assim ficar reconhecida sempre). Não está reduzida a isto
porque Tatuagem não se preocupa em
tratar o grupo Chão de Estrelas como este universo que aqui vimos chamando de
periferia. Do contrário, Hilton compreende que é este o centro da atenção na
narrativa e faz do grupo o centro de sua preocupação, de modo que as cenas aí sobrepõe-se,
por exemplo, as tomadas no quartel ou na casa de Fininha no interior de
Pernambuco.
O interesse de Tatuagem,
portanto, não está em elaborar modelos capitais de relação homoerótica – como tem
sido grande parte dos filmes de temática gay em circulação no mercado cinematográfico;
também o filme de Hilton não é um filme do gênero. Aliás, não é de interesse a elaboração
de nenhum motivo, senão o de celebração da transgressão. Isso será melhor
compreendido se nos detivermos ao contexto histórico no qual as ações estão
situadas. Já quase no declínio da ditadura – a ponto de ficarmos o tempo
inteiro nos questionando, “sim, isto se passa na ditadura, e cadê o braço
potente da censura que não vem calar de vez essas noites de pouca vergonha ou
dispersar esse grupo de subversores?”; bem, mas ela está lá. Quando o grupo
ganha espaço na mídia (esse outro braço opressor), não tardará a intervenção da
censura e o fim do Chão de Estrelas. Ou seja, a ditadura não está como mero
pano de fundo ou o grupo está protegido por uma redoma narrativa que o proíba de
contato com a realidade em que estão inseridos.
Mas, não dá para rotular que este seja um filme político; a
matéria, evidente, nele está, porque não é possível fazer divisórias e apontar
onde está o princípio de uma coisa e o fim de outra, mas produzir rótulos não é
ver que o principal interesse de Tatuagem
está em registrar a irreverência como estratégia de subversão do poder; está
também em diluir naturalmente fronteiras, que elas, por serem convenções culturais,
estão aí para isso. É, sobretudo, uma denúncia à hipocrisia, sem dizer isso,
apenas sendo a denúncia. É um filme sobre as descobertas; afinal, o Chão de
Estrelas, como lugar de experimentação artística é também um lugar de experimentação
de si no mundo – ou não serão estes dois lugares o que alcançará a personagem
Fininha em duas situações conclusivas, a da paixão por Clécio e do prazer
carnal que nutre por ele e aquele instante do seu último retorno ao interior
para findar o namoro que mantinha com uma garota e sentença por ele dita para a
mãe e a avó depois do nascimento do sobrinho anencéfalo de que o pecado não existe?
Não há o que dizer de negativo desse filme; se assim fosse possível, não haveria de ser uma grande surpresa. Apenas dizer que é uma produção que está no rol das melhores de 2013, desde já.
Não há o que dizer de negativo desse filme; se assim fosse possível, não haveria de ser uma grande surpresa. Apenas dizer que é uma produção que está no rol das melhores de 2013, desde já.
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