Sobre o ser sozinho e sobre ler Clarice Lispector
Por Rafael Kafka
O aniversário de Clarice Lispector foi dia 10 de dezembro.
Somente hoje consigo me sentar no computador para começar um texto sobre ela.
Os motivos do atraso são dois: a falta de inspiração e a falta de tema. Por
algum motivo desconhecido, ando sem ideias quentes para pôr no papel, fato esse
que me preocupa demais, mesmo que dure apenas uns poucos dias. Para que o
leitor tenha uma noção do problema, eu estava sem tema até agora há pouco. Tudo
se resolveu somente quando uma frase veio a minha cabeça: “existem diversas
vantagens em estar sozinho”.
Todos os leitores atentos da obra de Clarice sabem que
seus personagens são verdadeiros amantes da solidão. Por mais que ela os incomode,
eles dedicam-se em seus muitos momentos sozinhos a sentir e a entender por meio
de seus pensamentos fragmentados o que ocorre com eles e ao seu redor. Os
romances de Clarice Lispector quebram a lógica narrativa descrita como
romanesca por Walter Benjamin para explorarem ao máximo todos os ingredientes
que compõem a grande gama de coisas que é a idiossincrasia de um único ser
humano.
Neste sentido, mesmo ser algo desta brilhante autora há
alguns meses, penso demais em seus escritos como uma forma de me entender.
Ando, como os personagens dos romances e contos lispectorianos, dando mais
atenção a mim mesmo e aos meus conflitos diariamente. Sempre me forçando a
ficar um pouco que seja sozinho, sem contato humano ao meu redor que não seja
eu.
Mas isso é bem difícil... Mais do que parece.
Nos tempos em que vivemos, é fácil demais se enganar, se
desviar de um foco para darmo-nos a desculpa de que estamos cumprindo uma
tarefa que tem como intuito melhorar nossa saúde ou nosso bem-estar. Os dois
maiores exemplos eu diria que são exercícios físicos e exercícios de ficar só
comigo mesmo. São coisas que nós nos iludimos com tosca má-fé de que fazemos
constantemente, porém não fazemos. Como adoro falar de mim mesmo, me utilizarei
de minha experiência pessoal para melhor exemplificar o que quero dizer.
Em 2012 eu estava trabalhando demais e jurava que fazia
muitos exercícios físicos. Até que comecei a sentir alguns picos de pressão e
descobri que estava com meus triglicerídeos altos. Fiquei surpreso quando a
médica disse que eu estava levando um estilo de vida sedentário mesmo indo e
voltando do trabalho diariamente andando, o que me dava algo em torno de 30
minutos de caminhada por dia. Pouca coisa mudou desde então: sigo sendo
sedentário, infelizmente. Contudo, parei de me enganar, o que para todos
(aprendi com os alcoólicos anônimos) é o primeiro passo para a redenção. Hoje
sei que não faço muitos exercícios físicos e tento mudar essa minha rotina com
caminhadas três vezes por semana, mas que nem sempre ocorrem três vezes por
semana.
Ouvi, meses após essa consulta, uma professora relatando o
mesmo estupor: ser sedentária mesmo trabalhando muito e indo ao trabalho por
meio de seus pés. Percebi então que por ignorância ou por preguiça nos
enganamos demais nas minúcias de nossas vidas.
Outro fator interessante de ser mencionado aqui é o “estar
sozinho”. Suponha, caro leitor, a seguinte cena: você está em sua casa, sozinho
fisicamente, mas online em algum chat puxando conversas com seus colegas,
dizendo que está dando um tempo para si mesmo. Você está realmente sozinho? A
meu ver, não. Apesar do ser humano precisar de um contato mais profundo do que
o meramente virtual, estar em contato por um servidor ou site de relacionamentos
ainda não é estar sozinho. Como eu li numa edição da revista Vida Simples é muito fácil se desviar do
caminho do que se curtir um pouco, entender-se, ver-se com os olhos calmos de
alguém que resolveu se desconectar por alguns instantes e parar o tempo ao
menos na imaginação.
Tal exercício é pessimamente feio hoje em dia. As pessoas
entediam-se facilmente de si mesmas e logo pegam os seus celulares para
postarem coisas sobre sua solidão, sua tristeza etc. O apelo ao outro é sempre
feito. Eis uma das minhas maiores preocupações filosóficas nos dias atuais: o
ficar sozinho ao menos uma hora por dia, sem ninguém ao redor. Mesmo que para
isso seja preciso colocar uma música e ignorar os corpos ao redor. Ou
simplesmente me perder em meus pensamentos e ilusões.
Esse tipo de reflexão começou a ser feito por mim quando da
leitura de O lustre, último romance dela lido por mim.
Percebi em minhas leituras haver um fio condutor nas personagens de Clarice:
personagens sedentas em descobrir o mundo, encantadas em sentir o nada de ser
que é a realidade objetiva. As personagens da autora são do tipo que adora
flanar por cidades grandes, ver rostos desconhecidos, mas gostam mesmo é de
conversar consigo mesmas, de se sentir, de se entender. Personagens que no meio
de uma multidão calam-se para melhor sentir e ouvir o que se passa ao redor.
A atitude dessas personagens simples e do povo, e que por
isso mesmo revelam de modo pujante toda a complexidade do ato de existir,
toca-me profundamente e me fez pensar na necessidade de ficar mais comigo mesmo
e de como é difícil a atitude em questão. Além disso, o olhar curioso delas me
faz pensar em quão perturbadora é a realidade e que o único modo de dominar
nossas existências é realmente mantendo os olhos bem abertos, por mais que isso
cause tristeza, angústias etc.
Falando em angústia, as personagens de Lispector são pura
angústia. Pura liberdade. São seres que vêm ao mundo, chocam-se com ele e
brincam com seu choque. São seres revoltados com a falta de sentido e que fazem
dessa falta de sentido o seu sentido maior. São seres que experimentam o prazer
e o sentimento como quem prova um vinho, pois da vida só levaremos isso: o que
apreendemos e aprendemos de todo o processo.
Por conta dos elementos que aqui cito, das personagens e dos
enredos banais repletos de situações existenciais complexas, eu considero a
obra de Clarice libertadora. Mas também perturbadora. O modo como Virginia em O lustre se despe a cada instante de seu
antigo eu, como sua liberdade se metamorfoseia em outros motivos a cada
instante, como suas vontades são alteradas sem mais a qualquer momento, causou
em mim profunda angústia, pois tenho noção de que, enquanto seres humanos, nós não
somos estáticos. E nossa liberdade, por conta disso, pode nos trair a cada
instante. O que parecia absoluto ontem, hoje é apenas poeira.
Contudo, o convite de mergulhar em nós mesmos, de nos
entendermos, de procurarmos nos sentir, de ficarmos sós conosco nos dá maior
força para lidar com a angústia e sentir a liberdade como algo poético, vivo e
encorajador. Apesar dos finais de Clarice não serem quase nunca felizes, como
imaginamos de acordo com nosso padrão novelesco, sempre saio de suas leituras
renovado, pensando em como eu era e sou após a leitura de seus textos.
Claro que ela não é a única a me causar tal efeito. Outros
ídolos meus tantas vezes citados nos meus textos também me causam isso.
Todavia, certos autores – e Clarice se encaixa nesse rol – parecem gostar de
brincar com as sensações causadas na percepção do leitor, com seu estado de
confusão.
As construções realisticamente mágicas de Clarice favorecem
uma catarse desconstrutora do eu. Por meio de seus romances, o leitor pode
entrar em contato profundo com seu ser e com seu nada ser, romper limites e
sair renovado no modo de como se vê. Não sei se era esse o efeito esperado por
ela, mas ela consegue isso. Ao menos em mim. Ler Clarice me ensinou a
importância tanto de manter os olhos bem abertos para me enxergar melhor, como
a de ficar sozinho comigo mesmo esperando o momento certo para acertar as
contas com meu próprio eu.
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