O segundo sexo, de Simone de Beauvoir
Por Rafael Kafka
Simone de
Beauvoir ficou mais conhecida em sua vida pessoal pelo incrível relacionamento
de amor livre que manteve com Jean-Paul Sartre durante 50 anos, sendo
interrompido apenas com a morte do mentor do existencialismo ateu em 1980. Em
sua vida de escritora, ficou popular devido às autobiografias escritas contando
relatos ligados a todas as fases de sua longa vida: Memórias de uma moça bem
comportada, A força da idade, A força das coisas e Balanço final perpassam toda
a vida pessoal, profissional, política e acadêmica de Simone mostrando a força
de uma mulher livre, querendo romper os limites de sua formação católica e
burguesa a qual sempre tentou frear os ímpetos de Simone, mas nunca conseguiu.
A vida de
Simone está muito presente em seus textos. Além das autobiografias citadas
acima, vemos elementos autobiográficos em diversas obras suas sob a forma de
romances: A convidada e Os mandarins são os textos mais significativos no
sentido de mostrar como a arte e a vida estavam fortemente ligadas nas obras
desta importante autora francesa. Não seria diferente com o seu principal
livro.
O segundo
sexo nasceu, podemos dizer, na vida juvenil de Simone de Beuavoir: uma jovem
educada de modo burguês preparando-se para o casamento, destino maior para a
mulher de ocidental de um século atrás. A autora conseguiu romper os grilhões
de sua formação moral e tornou-se uma pessoa muito amiga de homens e de
mulheres de espírito livre,vindo a criar um profundo romance filosófico ainda
na universidade com Sartre, o qual tornou-se, além de companheiro, o seu mentor
intelectual.
O grande
ensaio filosófico nasceu após a Segunda Guerra Mundial, período no qual uma
grande obra filosófica veio ao mundo: O ser e o nada, de Sartre, no qual ele
afirmava que o homem é condenado a ser livre. Mesmo com todos os grilhões
existentes, ser humano tem o poder de escolha e esta escolha está diretamente
ligada a sua intencionalidade, substrato humano formado de modo vivo e
impreciso por toda a história de vida do indivíduo e que justifica as suas
escolhas e o caminho tomado por si. Tudo pode ser resumido no conceito de
homem-em-situação, o meio utilizado pelo filósofo existencialista para estudar
como o contexto existencial de um sujeito interfere, de modo não-determinista,
em suas escolhas pessoais.
Volume 1 de uma das edições de O segundo sexo sempre editado pela Editora Nova Fronteira. |
Simone
aplicou a lógica de Sartre ao universo feminino. Em seu ensaio, ela buscou
explorar a situação da mulher em nossos dias a partir da situação da mulher na
história. No primeiro volume do ensaio, dedicado aos estudos dos mitos sobre a
mulher, a autora mostra como no tempo dos nômades as mulheres, ao lado das
crianças, eram vistas como peso morto devido à sua fragilidade no momento de
busca por alimentos. Depois, quando as sociedades humanas tornaram-se
sedentárias, enquanto os homens, com melhor porte físico, iam à caça, as
mulheres ficavam em casa cuidando dos trabalhos mais básicos. A História se
movimentou, mas esse papel da mulher pouco foi modificado. O fator diferencial
mais importante se deu no momento em que surgiu o capitalismo: a mulher
torna-se o ser por meio do qual o homem buscará perpetuar seu nome. Os filhos
gerados pela mulher, quando homens, são herdeiros da propriedade do pai
garantindo, deste modo, a permanência do nome familiar. Já as moças nascidas serão
responsáveis por casamentos os quais têm como objetivo o crescimento da fortuna
do patriarca. É nesse momento que surge o modelo de sociedade patriarcal, na
qual o homem tem toda a liberdade do mundo para agir, porém a mulher, mesmo
sendo livre, torna-se um ser-em-si, uma coisa com destino e sentido
pré-determinado pelo outro, pelo homem.
O segundo
volume do livro é voltado a falar da experiência feminina. O livro perde um
pouco de seu caráter científico, mas ganha em vida. É nele que Simone tece críticas
mais ácidas à sociedade patriarcal e demonstra de modo bastante minucioso as
microvilosidades da opressão sofrida por parte das mulheres.
Como dito
acima, o destino feminino é moldado pelo casamento. Tal relação amorosa se
justifica na sociedade patriarcal pelo fato de que o homem, mesmo sendo um ser
livre, precisa de uma companhia para dar-lhe suporte em sua casa e na
continuidade de seu nome e legado na vida. Ela traz efeitos bem atrozes para a
mulher: enquanto o homem tem diante de si uma liberdade de caminho bem
aproveitada em estudos, trabalho, camaradagens, conquistas sexuais e amorosas
fugidias, a mulher tem apenas o casamento como caminho.
A
sexualidade feminina sofre uma série de sequelas por conta disso. É proibido a
uma mulher ter amantes que não sejam maridos, namorados, príncipes encantados.
O adultério feminino sofre muito mais represálias do que o masculino e uma
mulher que busca afirmar-se enquanto ser livre é vista de modo discriminatório.
Além disso, coisas como a menstruação adquirem um aspecto horrendo, bem como a
primeira vez sexual. Ambas indicam o fim da liberdade feminina se aproximando:
indicam que após a vida da adolescência, a garota terá de se casar, virar
companheira, se ver resumida a isso.
A sua
existência se resumirá a ter filhos, a cuidar da casa, a se ocupar de projetos
que não são seus. Os filhos crescem e se tornam autônomos em sua liberdade, se
forem homens, ou em sua desgraça, se forem mulheres e assim como a mãe viveram
condicionadas a serem coisas. As tarefas domésticas logo são desfeitas pelo
tempo: a casa varrida logo fica suja novamente, a comida feita logo é digerida
e a roupa limpa logo suja-se de novo. Enquanto isso, o seu esposo cria
projetos, vive uma vida autônoma, para-si.
Podemos
imaginar facilmente como é frustrante tal tipo de vida e como a ocorrência de
problemas psicológicos e psiquiátricos deve ser comum. No decorrer do livro,
Simone mostra uma série de estudos feitos na época do lançamento do ensaio
mostrando como as mulheres sofriam em seus ambientes doméstico. Mesmo as
mulheres casada com escritores célebres, como Liev Tolstói e Victor Hugo,
viam-se enclausuradas em um ritmo de vida horrível, tedioso, ao passo que seus
esposos escreviam obras primas e conquistavam fama e respeito ao redor do mundo.
Para se
entender melhor tais crises é importante o entendimento de um conceito
interessante desenvolvido por Sartre no já citado O ser e o nada. Má-fé. Tal
conceito se refere à tentativa do ser humano de anular sua liberdade, de se
auto-coisificar. Claro que essa é uma explicação a grosso modo e seriam páginas
e mais páginas para explicar tal sentido, mas podemo sintetizar a má-fé como
uma tentativa do indivíduo de fugir de sua liberdade. Ser livre para o
existencialismo é ser angustiado, pois o ser humano possui diante de si toda a
responsabilidade de seus atos e de sua vida. Muitos fogem dessa liberdade
criando desculpas ou fugas da realidade buscando aliviar o peso da angústia em
sua vida.
A mulher
presa na estrutura antropológica patriarcal prefere criar aventuras fugazes com
amigas, diários íntimos marcados pelos sonhos acordados, coquetismo para
explorar ao máximo à devoção dos homens ao seu aparato físico, usurpação das
glórias do companheiro como suas (daí surgindo ditados como o “atrás de todo homem
tem uma grande mulher”, mostrando como na falta de glórias pessoais a mulher
busca se persuadir de que o homem só obtém sucesso por conta de sua presença
inspiradora), etc. A mulher chafurda na má-fé e na loucura por não ter para
onde correr, por se sentir esmagada na luta entre o seu ser-para-si que quer a
liberdade vivida plenamente e o ser-em-si criado pelo mundo machista que
insiste em reduzir toda uma existência a um propósito: ser o complemento do
homem.
Falei até
agora nesta resenha apenas da mulher. Porém, é importante salientarmos, ao
menos um pouco, a figura masculina. Muitas pessoas as quais se rotulam
feministas aparentam julgar que somente mulheres são vítimas da opressão social
vivida pelo patriarcalismo. Apesar de elas serem as maiores vítimas, sofrendo
com uma série de males físicos e morais uma verdadeira crucificação encarnada,
o homem também sofre com essa pressão toda. Mas de modo diferente, mais
atenuado. Assim como ela, ele encontra-se preso em uma máscara: ela é frágil,
ele viril. Ela é intuitiva, misteriosa, faladora, poética. Ele é prático, frio,
objetivo, carnal. Ela é fraca e pronto. Ele não pode ser fraco, caso contrário
será alvo de críticas ferrenhas de seus camaradas e parentes. O homem está
preso em seu próprio ardil.
Como
falamos acima, a mulher é quem mais sofre com todo o contexto descrito no
livro. Porém, se o homem se apercebesse do quanto a sua opressão o torna também
oprimido, seria mais fácil para uma mudança de costumes a qual possibilitaria
que todo ser humano, independente de seu gênero fosse plenamente livre.
Contudo, o que ainda vemos hoje, são juízos de valores que avaliam de modo
diferente, por exemplo, o adultério: a mulher que trai é um ser imundo, uma
“vadia”, ao passo que o homem adúltero é um ser macho, um “garanhão possante”.
Também percebemos por conta de todo esse patriarcalismo uma série de absurdos
que se mostram em cenas de estupro quando a vítima é acusada de ser a culpada
pelo crime. O estuprador, para os olhos patriarcais, foi alguém fisgado pelos
ardis femininos: um olhar atrevido, uma roupa curta, uma cruzada de pernas,
etc. Uma sociedade patriarcal tolhe o direito de ser livre de qualquer ser
humano, mas em especial a mulher. O homem, sendo forte, ainda tem grandes
opções de viver: pode ser engenheiro, professor, advogado. A mulher apenas
agora começa a ter as mesmas opções, porém ainda deve lidar com situações
embaraçosas nas quais o companheiro exige dela atenção maior do que a dada para
os estudos. O homem pós-moderno do século XXI apresenta uma série de novas
neurosas, como as já demonstradas por Simone em seu livro, e insiste, cada vez
mais, para que a mulher seja sua, no sentido mais frio do pronome possessivo.
Preso em
sua máscara de virilidade, o homem insiste em ter a posse da mulher. Em
marcá-la, seja pela violência de relações ardentes, seja pela marca da primeira
vez. O homem, assim como a mulher, é um ser o qual deveria ter mais contato com
o pensamento feminista, pois ele nada tem a ver com aquela imagem de mulheres
bizarras e sem beleza que circula na mente de pensadores reacionários.
O
feminismo, ao menos na concepção existencial de Simone de Beauvoir usa a lógica
de que todo ser humano é condenado a ser livre. A mulher, como ser humano, é
embarcada por essa lógica. A liberdade a qual ela é condenada permite que ela
se relacione com quem quiser, escolha a profissão que quiser, saia com quem
quiser, beije quem quiser, durma com quem quiser, viva com quem quiser, escolha
o que quiser. A mulher luta ainda por essa liberdade a qual ainda é negada por
seres que negam a profundidade do pensamento feminista utilizando discursos
reificados e ilógicos defendendo ardorosamente a certeza de que mulher deve
ficar na cozinha e de que mulher com mais de um homem não é mulher decente.
O mais lamentável
de tudo isso é que não apenas homens defendem tais arbitrariedades. Mulheres
também riem de movimentos feministas dando a tais movimentos rótulos
pejorativos. Mas as mesmas mulheres as quais tão perniciosamente pisoteiam na
luta feminista são as mesmas que gostam de trabalhar de carteira assinada, de
votar, de saírem quando quiserem de casa, de poderem estudar e ter uma
carreira, de poderem ir a uma festa e flertar descompromissadamente com
qualquer cara, etc. A mesma mulher que tão mal avalia o feminismo em seu
Facebook não tem a noção de que só faz aquilo porque há muito tempo mulheres e
homens feministas (sim, eles existem!) lutam pelo direito de expressão feminina
na forma de sufrágio, marchas e educação formal no mesmo nível da de um homem.
Simone
descreveu bem as amarras nas quais a mulher encontrava-se e encontra-se ainda
presa. Foi alvo de críticas pesadas por conta de suas defesas para com o
aborto, a pílula anticoncepcional e a sexualidade livre das mulheres. Tanto
seus livros literários, quanto suas autobiografias, novelas e este belo ensaio,
quanto a sua militância são provas de que para Simone o feminismo era tão
somente a preocupação da mulher em ser mulher plena: livre. Como qualquer
homem.
Mas este
“como qualquer homem” deve ser posto entre parênteses: afinal nós homens também
estamos presos nas amarras de nosso meio social patriarcal. Ao ler este livro,
pude me redescobrir e rever muitos erros de mulheres em meu passado. Pude
entender como minhas neuroses por tentar fazer parte de um padrão viril me
influenciaram negativamente no sentido de querer extrair da mulher o seu amor à
força. Como qualquer homem de meu tempo, preciso lutar diariamente com a
máscara da virilidade e ter certeza de que sendo homem ou sendo mulher há oito
bilhões de pessoas no mundo, todas livres, mesmo em sua opressão diária, todas
capazes de ver o mundo sem que tal visão seja condicionada de modo determinista
pelo seu gênero. Hoje eu sei que ser livre é estar acima de uma imagem
masculina e feminina.
Termino
esta resenha em forma de crônica por necessidade. O segundo sexo é um livro
perturbador pois mostra que imagem nenhuma pode e deve coisificar o ser humano.
Mostra também que as mais belas mulheres são aquelas que não aceitam tão
somente ser o que os outros planejaram há milênios, e sim o que elas querem
ser.
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