Madrugada suja, de Miguel Sousa Tavares
Por Pedro Fernandes
Pela leva de títulos editados no Brasil e pela recepção grandiosa
de sua obra – há títulos incluídos no rol dos mais vendidos – o escritor
português Miguel Sousa Tavares é o tipo de figura que dispensa apresentações
mais bem elaboradas. Antes de Madrugada
suja, que é seu último trabalho editado por aqui, a Companhia das Letras colocou em mãos dos leitores brasileiros pelo menos outros cinco títulos: Equador, o mais conhecido de todos,
motivo de seriado para TV e seriado também exibido por aqui, Rio das flores, No teu deserto, além dos infantis Ismael e Chopin e O segredo
do rio.
Madrugada suja
está longe de ser um texto capaz de incutir alguma revolução estética no
interior do campo da linguagem e desconfio que o interesse de Miguel Sousa
tenha aí seu lugar; tenho mesmo a sensação que o que prevalece na obra do
escritor português é sua capacidade de inventar histórias, constituindo-se,
portanto, na escassa figura de um sujeito fabulador, livre do desejo de fazer
da língua artifício para a fabricação de uma obra igualmente artificiosa. Há pecado
nisso, é verdade. Nesta arte de narrar, nem tudo são fabulações. Mas, nada que
o condene.
Miguel Sousa Tavares se filia a uma corrente de importantes novelistas
portugueses, na tradição talvez, para citar dois nomes fixos no cânone, de um Camilo Castelo Branco ou ou um Almeida Garrett, igualmente
acusados de escritores fáceis ou com a obra enfiada demais no comércio da escrita,
mas esses dois têm sobrevivido ao tempo e logo às acusações pela capacidade que os
une, a de serem interessantes fabuladores. Talvez seja fácil acusá-los de tudo, mas não como
narradores pobres na capacidade de elaboração e urdidura dos dramas pela ficção. Os que tiverem
lido uma obra de cada um dos nomes antes enumerado compreenderão o que estou a
dizer.
E, do ponto de vista da trama, Madrugada suja é uma novela muito bem construída; embora o
fechamento de determinadas situações elaboradas pelo escritor soem um tanto previsíveis,
não se pode dizer que seu enredo apresenta falhas no sentido de andamento do
tempo da ação, fechada esta numa rapidez insegura ou mesmo ficando a desejar explicações
da parte do leitor. Os passos da narrativa são, diria, friamente calculados e cada
situação se dá no tempo devido de maturação, não tolhendo o leitor com
prolongamentos desnecessários e nem fazendo com que o previsível destrua a sua
curiosidade pelo desfecho. A facilitação da narrativa é, portanto, um tanto
aparente, já que o novelista se ensaia numa construção multíplice, querendo alcançar,
por exemplo, a desenvoltura criativa de um José Cardoso Pires, mesmo estando os
dois nomes situados em pontas diferentes da linha criativa.
Com forte tom cinematográfico, Madrugada suja abre com uma cena (posso chamar assim) que classificaríamos como a
principal ou mote para o desenvolvimento de toda a trama; espécie de pulmão,
onde todas as outras partes da narrativa estarão sempre a ela retornando para
tomar fôlego, respirar e garantir assim a existência da própria novela: quatro
estudantes menores de idade, no alto de uma tradicional festa comum às cidades universitárias
em Portugal – como no Porto, Coimbra ou Évora, onde estes jovens vivem – a
Festa da Queima de Fitas, se envolvem numa pesada brincadeira regada a álcool e
sexo a ponto de cometerem, pelo excesso, um abuso aos limites do corpo, e levarem
à única menina integrante do grupo a uma situação trágica.
Quase desconhecidos entre si – apenas um do grupo é
conhecido de vistas do outro – esse acontecimento, mesmo à distância, será o responsável
para, no futuro que é o presente, tempo em que está situada a narrativa, recolocar
estas pessoas em contato, numa clara elaboração de que o passado não dorme e,
seja fruto do destino ou não, ele pode retornar para refazer determinados rumos
de nossas vidas; aliás, todos nessa novela estarão sujeitos a esse ir e vir do
tempo, mesmo aqueles a quem o leitor julga está um tanto distante dos fatos
ocorridos na madrugada de Évora.
Os envolvidos neste episódio-chave do livro são Zé Maria,
João Diogo, Filipe e Eva. Dado o ocorrido, o narrador privilegia acompanhar a
vida do último dos homens, constituindo-o, destarte, no protagonista da trama. Filipe
é um rapaz humilde, que é levado pelo acaso para a cena da tragédia, e é,
certamente, o que tem o melhor plano de vista para se olhar os
acontecimentos. Não apenas pela sua condição, quase sempre a de espectador, como
pela sua formação: filho de um vilarejo em vias de se findar, Medronhais da
Serra; filho suposto de um pai com forte ascendência marxista, que depois da morte
da mulher vai para uma área de assentamento rural inaugurada no Alentejo depois
do fim da Revolução de 1974; órfão, criado pelos avós, os últimos habitantes do
vilarejo onde nasceu e viveu até ir para Évora.
Se Filipe não é um herói problemático, apesar de reunir
todas as condições para sê-lo, as situações em que se vê envolvido – sua própria
condição – são suficientes para merecer a atenção da narrativa. Tanto que, o
narrador em terceira pessoa deixará a voz para ele, quem narra parte dos
acontecimentos; mas não se finda aí, noutra situação, tem lugar, por exemplo, a
voz do avô de Filipe, a voz de Eva, a voz da avó de Filipe e de seu suposto pai
constituindo-se, dessa maneira, numa estratégia narrativa de dar melhor veracidade
aos fatos narrados.
Entre o passado sombrio em Évora e o presente da narração, o romance de Miguel Sousa Tavares percorre a partir das vidas pessoais da família de Filipe, sua constituição
e seu esfacelamento, parte significativa da história portuguesa: o período do
regime salazarista e seu fim, a guerra colonial em África para onde é mandado o
suposto pai do protagonista, a estadia dos camponeses nas Unidades Coletivas de
Produção, o nascimento da democracia e da boa vida dos portugueses construída entre
a mentira do progresso e os jogos fajutos de corrupção financeira a demonstrar
o seu desmoronamento logo adiante etc. Compõe-se assim uma neutralidade como
posição do narrador, nem se colocando um defensor das coletividades socialistas
e nem das individualidades capitalistas – uma não se sustenta como modelo porque
é excessivamente democrática e disfarçada de democracia tem fortes laivos
individuais, a outra é excessivamente individualista e o que prevalece são os
interesses escusos, assumindo o coletivo mero fantoche na intricada rede de favores
financeiros.
Quando se detém nos tempos em que o suposto pai de Filipe
está na UCP, o romance de Miguel Sousa Tavares, por exemplo, dá vez a voz do caseiro (que está naquele
lugar antes de se tornar uma área de reforma agrária e portanto é quem não se
deixou tomar pelo apelo socialista do
movimento e tem pela sua situação um compósito de imagens que está entre o
tempo de latifúndio e o tempo atual da reforma agrária) como forma de observar
determinados detalhes que nem o de uma situação histórica nem de outra seriam
capazes de observar. Nesse caso, busca o escritor uma síntese entre o lugar do
oprimido e o do opressor como se partir dela fosse possível oferecer uma imagem
mais completa da situação histórica a que remete. No mesmo caso, para o tempo
presente, quando Filipe, numa espécie de salvador pátria, intervém ora no seu
passado a fim de esclarecer o que se deu na madrugada de Évora ora intervém na própria
conjuntura política que está em formação em Portugal.
Na montagem do enredo, o romancista propõe duas partes que
vindo uma após outra muito poderia vir uma sobre a outra, como se a primeira
fosse um recorte mimético ou espelhar da segunda: “Aldeia” marcado os capítulos
entre as zonas da madrugada e da noite e “Mundo” cujas divisórias seguem entre
o tempo da noite e do amanhecer. Alude-se uma transformação da aldeia em mundo,
seja pela decadência de Medronhais e da zona rural e o pungente tempo de
crescimento econômico e da zona urbana de Portugal; e o desfazer das obscuras
regiões da vida do protagonista e seu esclarecimento com um desfecho ao modo de
um ...e todos foram felizes para sempre
de contos de fadas.
Como uma novela em que os acontecimentos se dão um após
outro numa tentativa de iluminação de si próprios e do fato central (este
último mais para os envolvidos no acontecido do que para o leitor que está
sempre a par de tudo), é pertinente observar que o escritor não se deixa perder apenas pelas ações, mas invoca
quase que a todo tempo o pormenor, aquilo que se esconde do olhar corriqueiro,
mas que é decisivo na consolidação de determinadas nuances da história.
Nesse sentido,
é promissora a aberta crítica ao poder desenfreado do capital que, em nome do
bem-estar social e do novo modelo que tem sido vendido à banca rota com o
título de sustentabilidade, promove pelas vias mais sórdidas, o interesse de
uma minoria em cada vez mais aumentar seu poderio financeiro à
custa da massa trabalhadora. É pertinente a demonstração do funcionamento da
máquina corruptora que joga com a aparente ingenuidade e honestidade de Filipe,
agora arquiteto e responsável pela emissão de pareceres para construção ou não de
determinadas obras da engenharia civil.
Ao se meter em colocar a nu o esqueleto dessa fuselagem,
Miguel Sousa Tavares obriga seu herói a descobrir sua própria história e o desfecho
do acontecimento que abre a novela. A imagem de salvador da pátria é notada no
próprio interior da narrativa pela Eva, numa de suas falas já próximo ao fim do
enredo, “– Caramba, Filipe, não é fácil encontrar um D. Quixote como tu!
Primeiro, travas um projecto urbanístico aqui, depois travas um destino de
primeiro-ministro! Foste enviado pelo céu para espalhar a justiça entre os
homens?”, numa fala que pode se confundir com um tom zombeteiro e irônico do
próprio escritor.
Resta dizer, que Madruga
suja constrói-se como uma narrativa de acasos. E se ao fim, o leitor tem
uma história muito bem ajustada, a sua construção leva um tanto de paciência e necessidade
de se deixar enovelar pelo tom vertiginoso com que Miguel Sousa Tavares cria situações
e as cadencia para ter essa história que é um encantamento acerca dos
encontros e desencontros da existência humana.
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