Crônica de um leitor de O jogo da amarelinha (7)
Por Juan Cruz Ruíz
Julio Cortázar e Juan Carlos Onetti |
Agora se estabelece o tempo como um melro ou como um corvo
sobre O jogo da amarelinha e alguns
dizem, os que são como corvos, que se passou o arroz, enquanto que os que são como
melros (ou os que somos como melros)
atraímos a este tempo para que siga sendo o som da primeira vez que este livro começou
a dizer-nos o que nos parecia que queríamos escutar. Imprimiu-se certo dia como
este ano em Buenos Aires há meio século; outros livros saíram então e antes;
surpreende que seja o de Julio Cortázar precisamente aquele que recebe mais verificações
de pesquisa, como se o livro mesmo fosse responsável de sua velhice, ou como se
sua velhice fosse um acidente capital e não um mérito ou uma circunstância que
se acrescenta ao feito mesmo para que ele continue existindo.
Enfim. O certo é que desse livro já se falou tanto, e se
seguirá falando tanto, que nem sequer o eco que merece se escuta sem diminuir,
como se O jogo da amarelinha houvesse
que quitar sua desaparição final. Ignoro que passará dentro de vinte anos ou de
cem anos; os esquecidos é o que não há, dizia Borges, e sobre esta obra não será
esquecida, como não foi os poemas da juventude de Rilke ou sobre os sonetos de
Octavio Paz. O desdém não é esquecimento,
mas uma recriação da inveja a que os autores padecem desde sempre.
Num tesouro devido a Luis Rosales e a Félix Grande, um
número especial de Cuadernos
Hispanoamericanos dedicado a Cortázar e publicado em 1980, há uma charmosa
carta de Juan Carlos Onetti, que já não era uma criança nesse ano; nela, o
autor conta a Julio, tanto tempo depois o que o lhe pareceu O jogo da amarelinha. E como Onetti é tão
inapreensível, tão escasso em sua correspondência conhecida, e tão grande, me
pareceu que seu juízo podia ser um bom ponto final a esta série de crônicas de
um leitor desse romance que cobre zonas sagradas de tantas bibliotecas.
Diz assim o que concerne ao livro que comenta Onetti:
Passaram anos e
Cortázar, não sei se em Paris ou Buenos Aires, publicou um livro de contos,
vários livros, que me deslumbraram e seguem fazendo isso cada vez que os
releio. E são muitas vezes. Depois, sem aviso prévio, apareceu O jogo da
amarelinha. Aí Cortázar se deslocava e
colocava. Se deslocava da tradição romanesca de nossos países, aceita ou
roubada do que se escrevia na Espanha ou França.
Sua atitude resultou
escandalosa para muitas mães, rejeição que não o comoveu porque deliberadamente
se tratava de provocá-lo. E o autor se colocava, sem buscá-lo, sem buscar nada
mais ou menos que um entendimento consigo mesmo, à frente de uma juventude
ansiosa de separar de si tantas questões, de respirar um pouco mais de oxigênio,
de entregar-se com felicidade a zona lúdica e sem resposta satisfatória de sua
própria personalidade.”
E já diretamente ao amigo:
“Claro, Julio, que as mães
o seguem sendo – ainda que as vezes se desembarecem de algumas escassas vendas –
e a literatura nossa necessita de muitos e imprevisíveis ‘Jogos da
amarelinha.”
Aí está o livro cinquenta anos depois alertando às mães que
quiseram sepultá-lo. Agora O jogo da
amarelinha é parte do tempo.
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