As cartas do amor insondável entre Kafka e Felice
Franz Kafka e Felice Bauer, Budapeste, julho de 1917 |
Em 16 de junho de 1913, Franz Kafka confessou a Felice Bauer
que não era grande coisa. “A verdade e que não sou nada, nada do que se diz”,
lhe escreveu. Imediatamente depois lhe explicava que não conhecia nada tão desastroso
nas relações humanas como ele, e que tinha a impressão de que “não havia vivido
nada”. E a isso dizia: a) que era incapaz de pensar e b) que tampouco sabia escrever,
“nem sequer nada”. Pouco antes, depois de informar que estava doente, havia
perguntado: “Quererás refletir (...) e chegar a uma conclusão a respeito se
queres ser minha mulher?”
Tudo está em Cartas a
Felice, um título que reúne a correspondência entre Kafka e sua sempre namorada – a sempre
insondável e enigmática relação entre um escritor sempre atormentado com a
escrita e uma mulher um tanto compreensiva (ou apaixonada demais?) com tudo
isso. “Eu perderia minha solidão, que em sua maior parte é horrível, e te
ganharia, a quem amo mais que nenhum outro ser”, confessar-se-ia o próprio Kafka ainda mesma carta. “Em vez
disso, tu desperdiças tua vida com a que tenho levado até este momento, vida
com que te sentes satisfeita quase por completo”. E repetia: “Em lugar dista perda
depreciável, o que ganhas é um homem enfermo, débil, insociável, taciturno,
triste, rígido, quase desprovido de toda esperança, cuja talvez única virtude
consiste em te querer.”
Kafka conheceu Felice Bauer em 13 de agosto de 1912 na casa
da família de Max Brod, seguramente seu melhor amigo. No dia 20 de setembro lhe
escreveu pela primeira vez. Kafka tinha então 29 anos; Felice, 25. Ele
trabalhava numa empresa de seguros, vivia em Praga e estava a ponto de publicar
seu primeiro livro de contos, Contemplação.
Ela era executiva na Carl Lindström S.A., uma empresa dedica à fabricação e distribuição
de rádios gravadores e residia em Berlim. “Quando cheguei à casa dos Brod”,
apontou alguns dias depois em seu diário a propósito de Felice, “estava sentada
à mesa. Não senti a menor curiosidade por saber quem era, porque imediatamente
foi como se nos conhecêssemos de toda uma vida.”
Não tardaria muito em escreverem um ao outro com inusitada frequência,
quase que diariamente e, de tempo e tempo, várias vezes no mesmo dia. Em sua
sexta carta, de 27 de outubro, Kafka reconstruiu milimetricamente o dia que se
conheceram. Contudo, não voltaram a ver-se até 23 de março de 1913, quase nove
meses depois de seu primeiro encontro. Em maio, Kafka foi recebido pela família
de Felice e ele passou muito mal. Por fim, em junho, ele lhe pede que ela seja
sua esposa. Em 1 de abril, confessara: “Meu verdadeiro medo – não se pode dizer
nem ouvir nada pior – consiste em que jamais poderei te possuir.”
Cartas manuscritas de F. Kafka para Felice. |
As cartas ainda inéditas no Brasil somam mais de 800 páginas.
Quase 80% dessa produção foi escrita até os fins de 1914. A última é de 16 de
outubro de 1917. Foram cinco anos de uma relação estranha, quase sempre a
distância, plena de equívocos, de turbulências. Amavam-se loucamente, loucamente
temiam pelo que poderiam se deparar no futuro. Por vezes foram cúmplices e por
vezes inimigos.
Tudo quanto se passava pela cabeça de Kafka, todas as
manias, seu dia-a-dia, seus gostos literários e suas reflexões sobre a escrita,
seus complexos e medos, tudo está aí. Aparecem seus ciúmes por outros
escritores, sua obsessão pela magreza de seu corpo, suas batalhas contra a insônia
e sua adoração pelo sonho, sua enfermiça incapacidade de decidir, sua complexa relação
com as crianças, seu temor em casar-se, sua habilidade para escandir os
mecanismos do poder. Kafka não esconde de Felice a má química que tem com seu
pai deixa ver quanto lhe gosta metamorfosear-se em criança, lhe fala de seu
interesse por animais pequenos, os cães aparecem uma e outra vez, e suas
queixas pela insuportável vida de funcionário e pelo insuportável lugar que é
Praga. Nas cartas se revelam seu amor pelos bosques e sua predileção pelo
silêncio e o vazio.
No ensaio que Elias Canetti dedicou às Cartas a Felice, publicado no Brasil pela Companhia das Letras com
o título de A consciência das palavras está
resumido assim o significado desta fascinante obra: “Estas cartas contém uma inconcebível
dose de intimidade; são mais íntimas ainda do que seria a exposição detalhada
de uma felicidade. Não existe indecisão cuja descrição possa comparar-se, nem
personalidade que tenha se desnudado tão fielmente. Este intercâmbio epistolar
resulta quase insuportável para uma pessoa primitiva, a tal ponto se tem a impressão
de estar ante o exibicionismo de uma impotência espiritual; pois um se encontra
constantemente com tudo o que o caracteriza: indecisão, temeridade, frialdade
de sentimentos, minuciosidade na descrição de uma ausência de amor, um
desvelamento de tal proporção que só resta crer pela hiperprecisão com que tudo
é narrado. Mas tudo está formulado de tal forma que ao mesmo tempo se converte
em lei e conhecimento.”
Felice respondeu que “sim” à carta de junho de 1913, que
aceitava casara-se com ele, e imediatamente depois começaram os tormentos de Kafka.
Em setembro houve o compromisso e no mesmo mês ingressa num sanatório em Riva e
quer esquecer tudo. Ali conhece a “menina suíça” pela qual se apaixona durante
dez dias. Felice, por sua vez, envia ao final de outubro uma amiga sua, Grete
Bloch, para que seja uma espécie de mediadora e consiga salvar o que ainda
podia se salvar.
Todavia surgem mais complicações: Kafka começa a paquerar
Grete por correspondência, mas ao mesmo tempo vai recuperando pouco a pouco
Felice. Voltam a comprometer-se em junho de 1914, voltam a romper um mês depois
de um incômodo episodio num hotel em que Kafka identificado como um dos
envolvidos num processo e pelo qual o condenam. De novo a distância, idas e
vindas de cartas, breves encontros.
Entre três e treze de julho de 1916, Kafka e Felice
passam dez dias em Marienbad. No começo, os dois estiveram um tanto distantes,
mas logo “seguiram cinco dias felizes com ela, um, se diria, por cada um dos
seus cinco anos em comum”, escreve Canetti em seu ensaio. De novo pensam em
casar-se: quando terminar a guerra. Mas voltam a discutir. Todavia seu amor
reverdece, mas em outubro de 1917, a relação já estará extinta, e agora de vez.
No dia 30 de setembro, Kafka escreveu-lhe a carta mais triste, a penúltima de
todas, embora seja a que se assinala o verdadeiro final. “Minha barca é muito
frágil”, confessa. Toma como escudo sua enfermidade. Está tudo acabado. “Jamais
recuperarei a saúde”. Tudo está terminado.
* Versão livre para "El amor insondable de Kafka y Felice", de José Andrés Rojo, jornal El País.
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