A solidão imortal do vampiro (III)
Por Márcio de Lima Dantas
Cláudia (Kirsten Dunst) no filme Entrevista com um vampiro. a vampira-menina "Cláudia arrasta consigo o étimo do seu antropônimo. Falo da sua maldita condição de nunca poder ser a completude do outro. O étimo da palavra Cláudia quer dizer “coxa, manca, incompleta” – pessoa que não servirá de cara metade para ninguém. |
Lua quarto minguante: Cláudia, a mulher
como eterno joguete dos homens (o irremediável mal da “condição feminina” face
ao âmbito do masculino)
Como
sabemos, o vampiro permanece durante toda a eternidade com o corpo igual ao que
estava no dia em que foi transformado em imortal pela mordida e pelo sugar
daquele que lhe bebeu o sangue. Daí o fato de a personagem Cláudia (Kirsten
Dunst) permanecer com o corpo de menina, mesmo tendo a alma de uma mulher
extremamente intuitiva e maliciosa, sendo capaz de fazer uso de qualquer
expediente para conseguir o que deseja.
O engraçado é
que a vampira-menina Cláudia arrasta consigo o étimo do seu antropônimo. Falo
da sua maldita condição de nunca poder ser a completude do outro. O étimo da
palavra Cláudia quer dizer “coxa, manca, incompleta” – pessoa que não servirá
de cara metade para ninguém. Como a maioria das mulheres – pois foram
historicamente assim constituídas, condicionadas –, outorgará ao masculino o
sentido da sua felicidade, padecendo a vida inteira devido a esse evidente
fracasso, pois a quem delegou fazê-la feliz, Louis, este, coitado, não consegue
nem dar conta de si mesmo. Assim, empreendem uma aliança de suas errâncias,
numa cumplicidade que os faz buscar suas origens, como a tentar explicar o fato
de serem o que são. O homem pelo menos, quase sempre através do trabalho, lugar
no qual sublima grande parte da sua libido e das forças agressivas que repousam
na sua psicologia mais profunda, busca sentido para sua existência por meio de
disputas e batalhas, para aplacar suas vaidades.
É a velha
história da mulher querendo ser esperta e entrando pelo cano no final, pois
sucumbe à patifaria generalizada do mundo masculino, já que os homens são mais
ardilosos, mais fortes e bem mais capazes de usar toda e qualquer arma que
estiver à mão e, como desde que o mundo é mundo, mais cúmplices e camaradas
entre si. O fracasso irremediável de Cláudia era mais do que esperado. Somente
sendo muito ingênua para não prever o desfecho da história. Sem dúvida, Louis
se compadece dela, porém nada pode fazer diante da frieza e do pouco caso que
faz o grupo de vampiros do amor dessa menina-mulher para com seu amado-amigo,
mesmo porque dentro da ética vampiresca eles detêm um trunfo contra a
vampira-menina. Não foi ela que tentou matar um da mesma espécie, Lestat? Crime
imperdoável para uma confraria-gueto plena de vícios e ansiosamente buscando um
bode expiatório para se divertir, quebrando o tédio de não serem morituros.
Vale lembrar
que essa sequência é uma das mais dramáticas do filme. Cláudia conspira de
maneira maliciosa e traiçoeira contra seu rival (e pai...!) Lestat, não
hesitando, inclusive, em tentar eliminá-lo fisicamente. Paradoxalmente, aqui,
ocorre a sugestão de uma mente dita masculina: prática, funcional e pouco dada
a reflexões quando visa algo que lhe é conveniente. Deixa-se levar por seu
capricho, pouco importando os meios para alcançar o objetivo de ficar ao lado
do amado, quer é saber se consegue eliminar o que impede a exclusividade do
objeto amoroso.
Talvez a
situação de Cláudia seja a mais triste de todas. Sua ingenuidade face à
esperteza de vampiros antiquíssimos e tarimbados no jogo da vida leva-a
inexoravelmente à derrocada. Muitas mulheres são apenas um objeto nas tramas
masculinas. Mesmo tendo em Louis um pai-aliado-amante, este não consegue evitar
a fúria destrutiva dos demais parceiros. Aqui podemos retomar a interessante
noção de “consciência coletiva”, de Émile Durkheim, ao propor um comportamento
diferente das pessoas quando se encontram juntas, num grupo, para impetrar algo
que não fariam se estivessem sozinhas.
O caso de
Cláudia é dos mais interessantes e também dos mais complexos, visto que é formado
de muitas variantes, bifurcando-se em dois vetores básicos. Primeiro porque
propõe assassinar Lestat, amigo íntimo do seu amante Louis. Depois, quando gora
essa tentativa, pois o vampiro, é obvio, não pode morrer, é eterno, implora
numa sequência de grande dramaticidade para que Louis transforme sua amiga numa
vampira (mulher que perdera uma filha parecida com Cláudia, sendo assim, esta
permaneceria como uma “mãe”, já que sabia ela da ameaça de separação que recaía
sobre os dois; a mulher, por sua vez, teria preenchido o lugar da filha perdida
nas esquinas da vida). Amedrontada com o fato de vir a ficar sozinha, implora
que Louis pelo menos a deixe na companhia de alguém. Teme a solidão como um
irremediável mal, uma vez que não pode tolerar a si mesma se não for com alguém
do lado.
Sua situação
é extremamente trágica, pois parece ter a exata consciência da impossibilidade
de aceitar sua solitude, de aquietar-se no seu canto, de tentar superá-la por
seus próprios meios. Desespera-se, numa atitude de implorar ao homem que ama,
já prevendo que permanecerá sozinha devido às confusões interiores do seu amor.
Miséria afetiva pior não há: pede a pessoa que a abandona para lhe deixar um
substituto. Todavia, sucumbe no jogo pesado de interesses dos vampiros
masculinos mais antigos e mais experientes na arte de seduzir e trapacear. Na sequência,
é eliminada junto com sua amiga pelos raios de luz que adentram no poço no qual
foram trancafiadas pelo grupo de vampiros (ao que parece, havia uma secreta
inveja, cortavam ciúme, da amizade de Louis com Armand; de outra parte, a trupe
de vampiros queria puni-lo pelo fato de ele ser diferente deles; ora, o humano
não perdoa quando alguém é um ser dissonante, detendo um comportamento
diferente, sendo espécie de testemunha de vista contra aqueles que afinam seu
jeito de ser pelo mesmo diapasão). Ambas são reduzidas a pó. Esculturas de
cinzas, as duas, abraçadas, que o vento desfaz diante dos olhos culpados de
Louis. A luz do dia tratou de desfazer o sonho ingênuo de Cláudia, sonho, ao
que parece, que só podia sobreviver nas sombras da noite, em que os contornos
não são exatos.
Na verdade,
a personagem Cláudia não passava de uma menina pouco experimentada nas
infindáveis artimanhas do mundo vampiresco. Aprendiz de feiticeira, pagou com
sua vida ao querer participar de um mundo que não estava apta a ser atriz: jogo
de disputas, rancores e acertos de contas, no qual os homens jamais se furtam,
pois é sua própria natureza: produzir um rival para o permanente embate, mesmo
que seja pelo puro gosto de pelejar. Apesar de se vestir como dame, acabou por
encontrar gente mais esperta e maliciosa que ela. A forma como permaneceu
congelada – o corpo de uma criança feita de cinza – não passava do seu
conteúdo. Foi uma destruição sem inevitável, em que o vento da manhã soprou
funestamente a leveza da cinza. Forma desfeita perante o olhar compadecido e
extremamente melancólico do seu antigo companheiro de viagens e orfandade.
Louis não apenas porta o luto, mas mastiga a erva amarga da vingança.
O que fora
frouxo e covarde, o que riscara no seu imo os sulcos da dúvida agora é o outro
ser, pois não deixará por menos mais essa tragédia pessoal, resultado do
convívio com seus pares. Definitivamente desencanta-se com sua nova tribo. Como
ficou claro durante toda sua trajetória nesse submundo, fora sempre uma
dissonância. A ovelha negra do rebanho, atormentado pela permanente e contumaz
indagação: “De que bando eu sou? Vi que de nenhum”. Sem dúvida, Louis não se
identifica com os pares da tribo à qual pertence. Não se contenta em apenas se
afastar e imprimir uma indiferença, mas parte para implodir o reduto dos
vampiros. Sem muito refletir, ateia fogo na imensa cripta onde se encontram os
sarcófagos e caixões repletos de vampiros adormecidos.
Em suma,
Louis conclui que o problema não era/estava em determinada pessoa, Lestat, mas
é algo mais amplo e pior: é a própria natureza do vampiro, ou melhor, é a
própria natureza humana. Conclui que não pertence à tribo alguma: está só no
mundo, como todo mundo.
Eis que se
instalam a cólera e o desejo de pôr fim àquela confraria suja e decadente. Com
uma foice na mão, instrumento para ceifar, uma fúria demoníaca nos coruscantes
olhos, encarna a morte. Não pensa duas vezes em destruir esse antro de seres
pérfidos e viciados, visto que não se identifica nem um pouco com aquele modus
vivendi contrário aos valores da sua fisionomia psicológica e comportamental.
Parece querer dar um basta ao círculo vicioso em que entrara sem muita
consciência do que estava ocorrendo, sem saber do jogo perigoso que seria
obrigado a travar com os outros vampiros.
Decididamente,
Louis não foi bafejado pela sorte. Entrou numa relação doentia e não soube mais
sair. Esparrela complicada, edificada sobre bases as mais baixas que o humano
pode tecer para fugir de sua miséria existencial, sobremodo uma solidão da
fundura de uma cacimba de areia, nunca possível de ser aplacada. Dor de sabê-la
apenas momentaneamente atenuada. Relação-arapuca, quase impossível de ser
rompida, de tão emaranhada se encontrava, plena de tantos elementos antípodas,
sentimentos esquisitos, sem nome. E que só mesmo fugindo dela, indo para o
outro lado do mar, é que poderia cair fora daquele enlinhado de sentimentos,
interesses e absurdas contradições. Ora, ironicamente um vampiro que não aceita
sua condição de danado vai cair justo numa relação de um vampiro que faz
questão de assumir que sua vida eterna tem a função de mais e mais incorporar
pares à confraria, mesmo que, no fundo, não assuma de bom grado sua condição de
vampiro. O discurso consciente, mormente quando revestido de estardalhaço, é o
campo por excelência da mentira, do engodo e de astuciosas racionalizações
defensivas que permitem uma personalidade se manter em relativo equilíbrio.
Na verdade,
o que parecia haver entre Louis e Cláudia era uma relação incestuosa, uma vez
que ambos encontraram parcerias relativas a um parentesco mais próximo. Louis
era o pai adotivo de Cláudia, esta, por sua vez, mulher-amante-amiga-filha. Com tantos elementos antípodas
contidos, jamais alcançariam um relativo equilíbrio.
Sim, nenhum
atingiria o outro, perdidos ambos que estavam na complexa teia que se
articulara entre os dois. Procuravam no outro o que o outro não poderia vir a
ser, nunca. Como poderia Cláudia substituir o afeto de sua antiga esposa morta
se Louis era o “pai” dela? (foi ele que a “batizou” como vampira, adotando-a
como espécie de filha-amante). Por sua vez, Cláudia está à procura de um pai,
de alguém que a acolha e proteja, pois seu pai não faz parte de nenhuma cena do
filme, encontrando-se vinculada tão somente à mãe.
Seria muito
difícil Cláudia atingir Louis. Ambos amavam sem jamais conseguir a posse
integral do seu objeto do desejo. É mister esclarecer esse ponto com mais vagar.
Vejamos a atitude de Cláudia logo que toma consciência da ascendência de Lestat
sobre Louis, sabe que os dois excedem a expectativa dita normal da amizade, que
traços de esquisita feitura os une, inclusive o ódio mútuo.
Cláudia
lembra a personagem Madame Lysiane, de Querelle,
recriada pelo cineasta Werner Fassibinder, no filme homônimo, e que canta
palavras dolentes em mais uma manifestação da universalmente, é o que muitos
dizem, conhecida inveja feminina da cumplicidade e camaradagem dos homens. Não
há coisa pior para uma mulher do que ser trocada por uma pessoa do sexo oposto.
Ardilosamente os homens invertem a situação, fazendo-as crer que elas é que são
incompetentes como mulheres. Há uma música – “Eu sou a outra” – cuja letra
expressa muito bem a situação da mulher acusada por não ter competência de
segurar seu homem: trago o coração ferido / mas tenho muito mais classe de quem
não soube prender o marido... De vítima, passa a ser culpabilizada – inversão
perversa e preconceituosa contra as mulheres.
Assim
como Madame Lysiane, Cláudia também se equivocara ao depositar no outro a expectativa
de resolver sua solidão. Em suma, agira como todo mundo age. Não quisera
aprender a lição proclamada pela vida em cada experiência, em cada fracasso de
amor ou amizade. No final das contas, que se há de fazer com a verdade de que
todo mundo é um pouco triste e um pouco só.
***
Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.
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