A solidão imortal do vampiro (Final)
Por Márcio de Lima Dantas
Lua nova: Louis, o encontro consigo mesmo
ou as sóbrias alvíssaras do zen
Sempre reclamando da vida
me ferindo, me queimando
Rita Lee
Não esquecer
que Louis de Point Du Lac (Brad Pitt), vampiro com 200 anos de idade, cedo
compreendeu que para se desvencilhar da solidão, quer dizer, aplacá-la, teria
que de alguma maneira desumanizar-se, sendo que o espelho dessa coisificação é
o seu companheiro Lestat, resumo de tudo o que ele julga como odioso, cínico e
contrário a si. Companheiro-inimigo capaz de mangar o tempo inteiro dos seus
conflitos íntimos, sem a mínima compreensão ou piedade, não perde uma
oportunidade de passar na cara as fragilidades do amigo, proclamando frases ácidas
com o intuito de ferir o outro: “Vampiro lamurioso e covarde”; “Meu filósofo,
meu mártir”. Esse comportamento destrutivo para com quem se ama, nos leva a
supor o quão sacana é Lestat, pois se vale de uma ética perversa, contempladora
do amor como sentimento dúbio: quer e não quer, odeia e quer bem, depende do
outro, contudo não consegue se desvencilhar das vicissitudes as quais passou,
conformando uma atitude cínica por excelência.
Ora, não à
toa Louis vai dizer em certa passagem: “Eu estou com medo de mim”. O inimigo
estava no seu interior, era ele mesmo, com sua incapacidade de obliterar sua
inadequação face ao estabelecido, diante do código ancestral dos vampiros. Que
coisa mais curiosa: esse vampiro pleno de crises existenciais, confuso e que
não sabe o que quer, assemelha-se muito ao personagem Riobaldo de Grande sertão: veredas, numa eterna
procura de saber o que se passava direito no seu imo, de saber as razões de uma
paixão interditada por suas próprias leis internas.
Vejamos
alguma coisa bem interessante do ponto de vista semiótico. Louis veste-se com a
cor verde, atributo que lhe imprime, segundo Jung, a semântica dessa cor que,
considerada do ponto de vista psicológico, indica a função do real, as relações
entre aquele que sonha e a realidade que o circunda. Nada melhor para
caracterizar um ser que não se aceita: a incompatibilidade entre o real e os
valores internos de alguém, sendo que, de certo modo, Louis, por ter medo da
solidão, acaba por vivenciar uma espécie de comportamento impulsionado por
Lestat, que deveria ser a pessoa responsável por preenchê-lo, banindo a
solidão. Além disso, o verde é a cor do crescimento, do que evolui, no caso,
interiormente, sendo o que sucederá ao final.
Nosso
protagonista é um notável exemplo do que pode conduzir a não superação do luto.
Persistindo preso à depressão e ao passado, incapaz de transferir suas energias
para um outro objeto amado, afunda-se na melancolia e na bebida. É interessante
remarcar que foi justo por meio do estado do luto não superado que acabou como
presa de Lestat, organizado que se encontra nas imagens colocadas ao pé do túmulo
da amada e do filho.
Louis, na
sua danação eterna, está condenado a não compreender que a consciência da
finitude das coisas é o primeiro passo para encetar uma forte aliança consigo
mesmo, visando o equilíbrio interior outorgante da paz de prosseguir vivendo,
apesar da sua maldição de imortal.
A tempestade é em
mim
A busca de
Louis é a de todo mundo, essa tarefa árdua e cheia de percalços e dissabores,
fazendo com que muitos, que não são insistentes ou estoicos, abandonem pelo
caminho e se deixem permanecer na impotência e na indiferença. É aqui que o
social age com implacável rigor de muro intransponível e marchetado de
arquétipos e invariantes, demandando serem preenchidos pela desgraça alheia.
Ora, é bom
observar que Louis entrou no mundo do vampirismo por puro acaso, como se fosse
algo que não o integrasse. Estava perdido, atrapalhado, sem rumo. Ao cruzar com
Lestat – enganosa tábua de salvação –, foi em frente, mesmo pleno de
contradições; e o pior: consciente de tê-las no seu íntimo. Era uma coisa que
não condizia com seus valores internos, porém prosseguia preso a um espelho que
refletia seu lado monstruoso e que negava o tempo inteiro: Lestat. O fato de ter
se tornado vampiro talvez tenha mais a ver com sua procura de substituir o
afeto causado pela perda da esposa. Adentrou por uma relação complicada por
pura carência. Tipo assim, vamos dizer, “um acidente de percurso”, como costuma
ocorrer com todo mundo em alguma situação difícil da vida, só que, depois, toma
um alcance nem sempre esperado.
– É então
uma maldição – indaguei. Ela não respondeu; não havia que responder: era uma
maldição (cf. Beauvoir)
É aqui que o
social age com implacável rigor de muro intransponível e marchetado de
arquétipos e invariantes, demandando serem preenchidos pela desgraça alheia. A
deusa Hécate, no fundo da sua caverna, compraz-se com a dor emanada do
sofrimento humano. Será coincidência o fato de ela também ser a deusa das
encruzilhadas?
Não tendo
cumprido o luto da perda da esposa, não poderia ter êxito numa nova relação, pois
a fase do nojo não fora palmilhada. Tipo assim, vamos dizer, “um acidente de
percurso”, como costuma ocorrer com todo mundo em alguma situação difícil da
vida. Entrou na arapuca, depois não sabia mais como sair dela. Quem sabe não
caberia ao jovem vampiro, com sua lucidez, a paradoxal legenda que, usando a metáfora
da luz, serviria como representação do vampiro louro:
Eu vos
pergunto: – Qual é o peso da luz? (C. Lispector)
Lua,
testemunha da história: conclusões
Os versos do
poeta Fernando Pessoa, via heterônimo Álvaro de Campos, parecem de maneira
notável sintetizar o paradoxo, os conflitos advindos da condição de ser
vampiro, eterno parasita do sangue alheio:
Em paradoxo
e incompetência astral
Eu vivo a
vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o
pundonor é uma descida
E os
próprios gozos gânglios do meu mal.
Bem resume o último verso: o que
causa prazer, o que alimenta o vampiro fisicamente é o tumor
que o devora, contradição bastante difícil de ser administrada, pois o corpo
que demanda o prazer, o lugar mental dessa busca, coincide com o que julga,
face à sua conduta diante da vida, como grande mal sem conserto ou cura. A
enfermidade contém o fulcro proporcionador do prazer. Ninguém suporta tal
situação. Mais cedo ou mais tarde explodirá, gerando uma fístula num lugar
errado, implicando, muitas vezes, quem não tinha nada a ver com a história.
Vamos encerrar por aqui.
O equilíbrio
e a sobriedade de Louis ao visitar Lestat, vampiro medroso, inseguro e cansado,
enrolado num grosso cobertor, como a sentir frio e desamparo, têm uma grande significação
no contexto do filme. É interessante chamar a atenção para o fato de o antigo
amigo de Louis insistir para que o companheiro de aventuras permaneça,
suplicando insistentemente sua companhia. O peremptório negativo da resposta de
Louis deixa bem claro que não há espaço para reconsiderar nada. A forma atual é
a definitiva. É isso que sugere a negativa seca e tranquila.
É muito
curioso o fato de ele retornar ao passado numa atitude de apalpar-se, como a
querer provar a si mesmo a superação da antiga e perturbadora angústia
existencial. Está sereno, polido e respeitando o velho amigo. Conhecedor do bem
e do mal, aceita a existência como inerentemente trágica. Sabe que a solidão só
pode vir a ser superada por uma aguda consciência de que desde sempre a morte,
a velhice ou a doença são integrantes da condição humana. Ao que parece, o
velho adágio da sabedoria popular “o que dói cura” se aplica muito bem à experiência
de vida do vampiro louro.
Tenho para
mim que a visita de Louis a Lestat aponta para algo bastante interessante. Será
que Louis não queria se certificar, quero dizer, testar a si mesmo ao se
confrontar com um antigo amigo de caminhadas errantes da sua conquista, da sua
nova maneira de encarar a vida, aceitando a solidão como inerente à condição de
todos? Não parece ir até a velha casa abandonada para debochar do velho Lestat.
Tanto é que entra e sai com uma altiva dignidade de quem teve a Bonheur d’une
paix sans victoire, como diria o poeta Paul Verlaine, ou seja, como alguém que
atingiu o equilíbrio sem que para a consecução dele fosse necessário passar por
cima de alguém ou renunciar partes de si mesmo. Há toda uma aceitação da
condição humana de impermanência e solidão da qual todos são dotados e conclamados
a resolver. Quer queiram, quer não.
Enfim,
nossas conjecturas nos levam a afirmar que o mito do vampiro e suas inúmeras
modulações em diversas manifestações artísticas do século XX se constituem como
material relevante para a compreensão do comportamento e da mentalidade de um
homem que adentrou por um caminho estreito e desconfortável, que se compraz
numa impaciente avidez excessiva, limitando-se a explorar o próximo, sugando o
que este tem de melhor. Pensando numa vida mais prática, abandonou o sentimento
da amizade, do companheirismo, de uma socialidade sadia e edificante.
Com efeito,
Louis conseguiu definitivamente a superação de si, podendo afirmar Agora eu me
sou, apesar e separadamente de ti. O atormentado vampiro venceu as trevas mais escuras e sombrias: as interiores –
aquelas que nos fazem temer o que se encontra do lado de fora, aquelas que nos
levam atrozmente para o “melhor mal acompanhado do que só”. O vampiro louro,
enfim, apurou sua alma na solidão e no acúmulo de reflexões deixadas pela
errância nas noites de orgias repisadas.
Eis, por
meio da poesia, uma síntese do estado alcançado por Louis:
Porta
fechada.
Me deito no
silêncio.
Prazer da
solidão
Bashô
Ligações a este post
Leia as outras partes de "A solidão imortal do vampiro" aqui.
***
Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.
Comentários