Rua da padaria, de Bruna Beber
Por Pedro Fernandes
A poeta Bruna Beber. Foto: Jornal O Globo |
Se algum dia a
poesia serviu de conselho a alguém, há um poema dentre os mais significativos
da poética de Carlos Drummond de Andrade que não deve ser desprezado e seguido
à risca, muito embora o próprio autor de A
rosa do povo tenha ferido os princípios norteadores desse “conselho”. Em tom
de manifesto, o poema é “Procura da poesia” e foi publicado já no assentamento
das formas daquele movimento cujo início aparece datado a partir da Semana de
Arte Moderna de 1922.
“Não faças versos
sobre acontecimentos./ Não criação nem morte perante a poesia./ Diante dela, a
vida é um sol estático,/ não aquece nem ilumina./ As afinidades, os
aniversários, os incidentes pessoais não contam./ Não faças poesia com o
corpo,/ esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão
lírica./ Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro/ são indiferentes./
Nem me revele teus sentimentos,/ que se prevalecem do equívoco e tentam a longa
viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.”
É bom dizer que, mesmo
Drummond quando se apresenta na cena do modernismo, já se apresenta em pleno
uso do que defendiam os do período, isto é, já se apresenta, para fazer uso do
trocadilho, “em plena forma”. O poema funcionando tal qual desejavam os
primeiros daquela geração e sem que para isso a poesia tivesse de dizer a que
veio e o que ali representava.
Tanto tempo depois
da investida drummondiana, alguém se arrisca voltar ao propósito do poeta
mineiro e redige uma antologia com o sugestivo título Rua da padaria em que o trato poético não é outro se não o
cotidiano e as situações comezinhas, acenando dizer que o conselho do poeta maior não passava de embuste – termo, considerem aqui, sem as afetações pejorativas
– para dizer do próprio cotidiano. Drummond é vitimado pelo próprio círculo do
signo linguístico: não dizer é de certa maneira uma forma de dizer. Negar o
acontecimento é já produzir um acontecimento, afinal é isso que é a linguagem.
O livro de Bruna
Beber escaninha um mapa afetivo: primeiro, os acontecimentos marcando dois
momentos, o princípio e o fim – “o que dói primeiro”, “música do parque”, “a
grande alegria dos homens de números”, “as avós e as tias”, “molhar as plantas”,
“bicicleta cargueira” “de castigo na merenda”, “seu paquera”...; depois, os
interstícios assinalando os dois momentos de acontecimentos – “esquina
circunferência”, “esquina parábola”; e no centro de tudo, objetos, lugares – “o
apagador”, “o açougue”, “a farmácia”... Assim mostrado, Rua da padaria é um livro pensado, escrito pela pena da maturidade;
tem a estrutura arredondada do gênero
sobre o qual está erguido. E isso desperta no leitor crítico, ao menos, duas sensações:
uma, esta sensação de que tudo está no lugar, os poemas funcionam como peças de
encaixar, e a leitura conjunta deles traduzem esse mapa afetivo buscado pela
poeta; outra, esta sensação de que tudo é arrumado demais e foge, por completo,
do ideal poético pensado pelos contemporâneos, mas afeitos ao instante, quase
como se o poema pudesse ser um instante que pesa sobre a consciência do poeta.
Os da primeira
corrente pensarão em Rua da padaria em
diálogo com uma tradição que remonta o próprio Drummond ou mesmo do João Cabral
de Melo Neto para quem o poema era uma estrutura esquadrinhada – embora essas
duas aproximações devam ser melhor verificadas mais adiante. Os da segunda
corrente deixarão de lado o livro porque terão nele a certeza de ser mais um
projeto poético, dos muitos em nascimento no Brasil, que possivelmente já terá
gorado no primeiro tiro dado para fora da gaveta de papeis, onde pousam muitos
outros projetos em gênese. Podem me chamar de positivista, mas prefiro ir pela
primeira corrente, mesmo com as ressalvas devidas.
O contato com a
diversidade de formas poéticas produzidas contemporaneamente, principalmente
neste país, e em grande parte com aqueles poetas em nascimento (mesmo
compreendendo essa limitação do sentido desse verbo na vida literária de
qualquer escritor, já que cada obra deve lhe representar o novo nascimento e
assim a sua maturidade se mede muito mais pela escrita que pela vivência na
escrita), me faz dizer que a Rua da
padaria é um livro que merece uma atenção devida.
Ao medir escritas e
não escritores, estou apontando novamente para a maturidade com que são desenhadas
algumas inventivas poéticas de Bruna Beber. E como o espaço me permite, quero
deixar, para uma leitura breve, logo depois, três poemas, assim, dispostos em
sequência para não perder o fôlego engendrado pela poeta. Os dois primeiros
poemas abrem o livro e o último está naquele bloco central que recupera objetos
e lugares. Gosto de ver na arena do poema – com traço eminentemente narrativo
como se estivéssemos diante de uma breve prosa, recuperando, pois, o status de
nascimento da forma poética – as várias vozes que a poeta nelas se transmuta;
no caso do primeiro poema, ora a voz da mãe, ora a voz do pai, ora a voz da
avó, ora sua própria voz, num gesto aberto de rememoração. E já terão percebido,
só por este ângulo na leva de infrações pensadas e a bem pensadas cometidas: os
acontecimentos, os sentimentos, o que pensa o eu-poético.
No poema seguinte
tudo ainda é mais claro porque o poema não é outra coisa se não rememoração em
versos. E no outro, também, mas com fortes infusões líricas. Outro traço, e já
nem este será algo a se notar porque é lugar comum na poética contemporânea até,
é a brevidade com que tudo é dito. Ora, aí está a herança que não custa
apontar, deixada por mestres como João Cabral de Melo Neto, embora, Beber se
distancie do modelo cabralino porque a ela parece interessar os signos leves e
só algum peso a servir de contrabalanço ao movimento do poema. Beber não tem
interesse pela secura da palavra; talvez porque a memória – este artefato que
tudo filtra o que se passa em Rua da padaria
– não permita signos de outra natureza.
Por fim, a
delicadeza do traço poético de Beber é tanta que ao fazer do acontecimento, do
sentimento e do que pensa matéria para o poema, isto é, mesmo aproximando-se e
simultaneamente ferindo os princípios drummondianos, tudo se liquefaz. A memória
e a palavra que a materializa despe tudo da natureza apoética e, uma vez posto
em verso, o resto, não é mais que poesia. Esse tratamento decodificado pela
textualidade é uma operação um tanto sofisticada; e é essa operação o que faz
de Rua da padaria não um livro, mas um rito
poético que merece ser apreciado com a mesma leveza com Beber ensaia seu traço poético.
o que dói primeiro
todo urubu titia gritava
urubu urubu sua casa
tá pegando fogo
todo estrondo na rua
papai dizia eita porra
aposto qué bujão de gás
todo avião vovó acenava
é seu tio! Desquentrou preronáutica
num tenho mais sossego
temi e ainda temo toda espécie
inflamável lamentei tanto urubu
desabrigado desejei o fim
da força aérea brasileira
só custei a entender mamãe
e o que queria dizer com seu irmão
não vem mais brincar com você
papai do céu levou.
música no parque
dorotilde
nunca vimos
convulsa
toda vida
de sorriso
no portão
perfume para três
esquinas botava
zonza as alergias
e eu pirraça
de emoções
nas pernas
pensava jamais
fora mordida
nos lábios
e eu bandeirinha
de coração
nos olhos
a guardaria
até perder
os dentes
8. o romantismo
chumbo que respiro
minha saudade
te apodrece
e te renova
à medida que me lanço
noutra direção
tanto mofo
no que calo
por ti
vinagre
de dores ardentes
nos olhos
com fervoroso credo
em tua morte
minha vida.
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