Quando Vargas Llosa foi ghost writer de uma senhora rica
Por Juan Cruz
Vargas Llosa nos tempos em que viveu em Paris. |
Há algo de jovem, de adolescente, em Mario Vargas Llosa. Na
terça-feira, 19/11, quando agradeceu ao público de Matadero, um dos cenários do
Teatro Espanhol, os aplausos com que acolheram sua obra teatral Kathie e el hipopótamo (o texto ainda é
inédito no Brasil), disse que há anos, quando escreveu esse texto, não sonhava
com uma montagem como a que viu. Na verdade, ao longo de sua vida, e já tem 77
anos, tem se passado cumprindo o que quis fazer, mas sempre hesitando se alguma
vez faria. Por isso é um jovem que segue sendo inseguro ante o emprego, ante
aquilo que lhe aguarda, ante o que os demais vão pensar que o que ele faz é liquidar um tempo pela preguiça.
Outra dessas virtudes que afirmam sua grande adolescência é
sua convicção de que ele não tem imaginação, que todos seus livros se baseiam
no esforço que fez para escrevê-los, travando uma batalha para vencer essa
falta de ficção que habita em seu quarto de escritor. Isto não é certo, claro,
porque o autor de A verdade das mentiras
não tem parado de criar ficções. Mas é verdade que quase todas elas provêm de
feitos que aconteceram, alguns em sua própria vida.
Neste caso, em Kathie
y el hipopótamo, que é uma obra teatral sobre a imaginação e sobre o esforço
de escrever e de inventar, é evidente que Mario Vargas Llosa se ausentou de si
mesmo apenas circunstancialmente, para imaginar; mas levou consigo o Zavala, ou
Zavalita, o jornalista que o acompanha desde o célebre diálogo sobre quando esteve
pelo fim no Peru em Conversa na catedral.
Na obra teatral, Zavalita já era Zavala, e estava na Paris
de 1959; o escritor de ficção estava casado com uma mulher que não queria e para
garantir seu sustento foi trabalhar para uma ricassa no Peru que queria
publicar um livro sobre suas andanças na África. Pacientemente, Santiago Zavala
fez cada dia e suas horas de “negro”, ou escritor fantasma, para satisfação da
senhora. Enquanto, ela e ele, Kathie e Zavala, iam enredando as saias da vida e não
apenas isso: Zavala foi desenganando-se de afetos ou paixões que haviam marcado
sua primeira juventude e renuncia a elas com o vigor de quem se arrepende de
haver perdido tempo com ideologias que o transformaram numa fraude.
O trabalho alimentício era às vezes um sacrifício e um
alívio, pois esse período avaliado pela mulher rica e às vezes ampliado por ela
para seu próprio prazer de contar, servia ao escritor de ordem para adestrar
sua própria maneira de conceber a ficção. A realidade de outro, neste caso a de
Kathie, era o alimento da ficção de Zavalita.
Como é sabido, este é um texto escrito por Mario Vargas
Llosa em Londres há muitos anos, longe de seus primeiros tempos em Paris. Suas convicções literárias, políticas,
culturais, sentimentais, estavam consolidadas e descritas em romances, ensaios,
artigos. Aqui, pois, tudo se estabelece dentro dos cânones do teatro e constituem
um manifesto sobre a ficção. Com todo o verbo fluido e apaixonado que requer
uma representação. E assim veio a Madrid a obra, como segunda estreia na programação
que o Teatro Espanhol dedica à produção teatral do Nobel. Veio depois de La Chunva, que ocorre nos baixos lugares
de um Peru profundo e não nos meandros luxuosos dos primeiros anos de Zavalita
na França.
Mas ocorreu algo singular, embora não inesperado: numa conferência
para a imprensa antes da estreia, Vargas Llosa soltou a informação sobre um
acontecimento real: ele teve uma experiência parecida como a que está base de Kathie y el hipopótamo: ele escreveu um
livro para uma mulher efetivamente rica e do Peru (Cata Podestá) que lhe pediu
em Paris para passar ao papel o que ela lhe contaria. A notícia dessa
aventura juvenil que uniu o homem com o desejo de comer foi desenvolvida antes
nas memórias de sua tia Julia, que foi a mulher com quem Llosa conviveu
naqueles tempos parisienses.
Como hoje tudo imediatamente explode em opiniões, logo o
escritor peruano Guillermo Niño de Guzmán relatou num artigo publicado no
jornal El País todas as
circunstâncias desse acontecimento e da resposta literária de Mario Vargas
Llosa. Claro, o que sucede em seguida é que se desfaz a curiosidade do
espectador: vamos ver exatamente o que disse Vargas Llhosa com o que ia
contando sobre Cata Podestá em Paris? Kathie
y el hipopótamo é uma crônica desse acontecido?
Nada. Katie y el hipopótamo
é uma obra de teatro que serve ao Nobel peruano para reivindicar o centro cena em favor
do tema literário de sua vida: a construção da ficção, como esta lhe permite ao
homem imaginar mundos que o salvem da luta terrena contra a pena que é o fim da
vida. Como aqueles tempos eram e foram, é, além disso, uma crônica intensa,
apaixonada, do que se passava na Europa do pós-guerra e no Peru tão desigual
daqueles tempos.
Assim, pois, Kathie y
el hipopótamo é uma obra teatral, uma ficção, e como em quase todos seus
livros, Vargas Llosa conta com a cumplicidade fértil da realidade.
* versão livre para "Cuando Vargas Llosa fue el escritor "fantasma" de una señora rica" editado pela Revista Ñ
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