O Livro de Cesário Verde – Cesário Verde (Parte I)
Por Pedro
Belo Clara
Cesário Verde (detalhe) Biblioteca Nacional de Portugal. |
Nascido
em Lisboa, a 25 de Fevereiro de 1855, José Joaquim Cesário Verde é hoje por muitos
considerado o percursor da poesia portuguesa do século XX, onde se edificaram
nomes como Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Eugénio de Andrade, José
Régio ou Miguel Torga. Filho de um lavrador e comerciante, Cesário chegou a
frequentar o Curso Superior de Letras na cidade onde nasceu; mas apenas por
breves meses, antes de assumir as actividades profissionais do pai. Contudo,
mesmo que exíguo tenha sido o tempo em que convivera nas esferas das letras
académicas, o poeta viria aí a conhecer Silva Pinto, um amigo para toda a vida
e ao qual todos de nós, leitores ou meros curiosos, devemos uma sentida
gratidão. Passo a explicar: Cesário Verde nunca publicou um livro durante a sua
curta vida, e tudo o que nos chegou foi fruto dos louváveis esforços desse seu
fiel e dedicado amigo. O Livro de Cesário Verde seria, assim, por iniciativa de tal fraterna figura, compilado e
publicado em 1901 – a título póstumo, obviamente.
Apesar de breve, a vida
do poeta não se revelou pouco significativa nem a sua obra se desproveu de uma
notória originalidade. Pois, ao falarmos de Cesário Verde e sua temática,
falamos de um trabalho deveras marcante, algo de veramente único até então.
Infelizmente, continua a ser tão pouco compreendido ou aceite como o fora em
sua época. Por natureza, o poeta sempre se afirmou como alguém fora do seu
tempo, uma mente moderna e visionária que, imagine-se, já manifestava intenções
republicanas cerca de quarenta anos antes da sua efectiva implementação em
Portugal. Mesmo revelando, desde muito cedo, sintomas da doença que lhe
ceifaria a vida – a tuberculose –, e apesar dos avanços e recuos da mesma, o
grande poeta nunca abdicou da sua arte maior, alvo constante de indiferença e
relativização.
Influenciado pelas
correntes realistas e
naturalistas, justificadas na descrição da realidade
captada pela percepção artística do poeta e na figura do Homem oprimido pela
sociedade onde se insere, Cesário Verde foi o mais alto expoente do parnasianismo português.
Talvez por esse movimento ter tido pouca expressão em Portugal (ao contrário,
por exemplo, do que se sucedeu Brasil, onde se notabilizaram nomes como Raimundo
Correia ou Olavo Bilac), a obra de Cesário, apesar de leccionada nas escolas do
país, aparece insistentemente relegada para segundo plano.
Dessa sua influência
mais abrangente, o Parnasianismo, fazendo jus à máxima “arte pela arte”, é fácil revelar os diversos
elementos que a distinguem das demais e que com hábil mestria foram dispostos
pela obra de Cesário. Desde logo, uma obsessão pela perfeição formal e uma
objectividade dos temas, onde a técnica com que os poemas são construídos mais se
valorizava em detrimento da inspiração ou da sensibilidade das emoções
descritas. Além disso, encontram-se constantes referências a estrangeirismos,
diminutivos expressivos, sinestesias (junção de diferentes sensações numa só
frase), verbos que apelam às sensações e o uso de um vocabulário conciso. Mas
entendamos o seguinte: tal é apenas o chão sob o qual também se erigiu a obra
do poeta que é objecto deste artigo.
De forma mais concreta
e aprofundada, da temática de Cesário Verde sobressai logo o aspecto mais
realista de todos (com intenções naturalistas, recordo): a figura inovadora do
“poeta-pintor”. Assim, Cesário, é um poeta que geralmente não se dá a conhecer
através da poesia que produz, mas pela realidade que o rodeia e que capta, como
se pintasse, ao pormenor, um quadro. A esta faceta se concede o nome de “poetização do real”, algo
que talvez possa parecer banal a seus olhos, leitor, mas que constituiu uma total
inovação na época, rompendo com correntes mais floreadas como o Neo-classicismo
ou o Romantismo. Mas essa coragem inovadora, essa vertente pioneira, só o
afastou ainda mais dos leitores da época. Embora o poeta traduzisse nesses
retratos as sensações que tais cenários lhe conferiam, revelando em certa
medida uma aproximação ao trabalho de Baudelaire. Sempre se retira um motivo e
uma causa de cada episódio retratado em poema, como se o poeta fosse, sob um
determinado prisma, um contador de histórias. E isto sem olvidar, claro está,
os elementos que iriam pavimentar o caminho de outros grandes poetas futuros,
fazendo de Cesário Verde um fundador da poesia que em Portugal ainda viria a
ser escrita.
São inúmeros os poemas
que descrevem uma realidade… A título de exemplo, eis um excerto do poema “Noite Fechada”, onde se
principia o delinear do cenário com que o poeta se deparou aquando de um
nocturno passeio por Lisboa: “Bem me lembro das altas ruazinhas, / Que ambos
nós percorremos de mãos dadas: / Às janelas palravam as vizinhas; / Tinham
lívidas luzes as fachadas”. Diga agora o leitor de seu juízo: pela descrição
das altas e estreitas ruas, das janelas como pouso de diálogo entre vizinhas,
das fachadas preenchidas por pálidas luzes, não consegue imaginar como seria o
quadro envolvente? Aquele que foi retido em visão e descrito entre rimas? Eis um
testemunho real que por Cesário foi em palavras imortalizado.
Como antes referi,
desta simples poetização emergem outros aspectos que dão corpo e forma à
restante temática do autor. Entre elas, a bem vincada questão social – onde, através de
fidedignos retratos, as condições de vida e de trabalho de toda uma população
são denunciados, deixando as conclusões nas mãos dos leitores. Uma vez mais,
são diversos os exemplos que Cesário nos fornece, entre os quais este excerto
do poema “Cristalizações”: “Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! / Que vida tão
custosa! Que diabo! / E os cavadores pousam as enxadas, / E cospem nas calosas
mãos gretadas, / Para que não lhes escorregue o cabo”.
Como o caríssimo leitor
poderá depreender, o retrato desta realidade em concreto permite o extrapolar
de diversos pensamentos e considerações. Note-se, por exemplo, como o poeta
compara os homens que calcetavam uma rua da capital a simples bestas de carga.
Não só descreve a dureza do ofício, amiúde mal remunerado, como igualmente
deixa transparecer que, neles, a condição humana se dilui, assumindo a forma e
o papel de meros “animais” (passe o adjectivo mais populista ou de insultuosas
incidências). Este aspecto social, denunciando realidades injustas, permite
encontrar em Cesário uma faceta totalmente nova: a de obstinado crítico dos
costumes, hábitos e modos de vida da época. Por isso, e de uma forma bastante
pessoal, creio que o poeta, efectivamente, se dá a conhecer através do seu
trabalho poético. Não de uma forma directa e lírica, mas por vias mais obscuras
e indirectas – sem lhes retirar a devida intenção.
Contudo, o aspecto mais
central da poesia de Cesário Verde é a dicotomia (ou binómio) cidade /
campo. Ainda que tal tema seja transversal a muitos outros
autores, em Cesário adquire uma dimensão mais ampla e, uma vez mais, inovadora
– o que somente reflecte o génio deste poeta tantas vezes esquecido. Tal
aspecto não nasce por acaso, e é no longuíssimo poema “Nós”, de 1884, que o poeta o
revela. Nele, Cesário praticamente enumera os mais cruciais acontecimentos da
sua vida familiar, nomeadamente o refúgio em Linda-a-Pastora, nos arrabaldes de
Lisboa, quando a capital se viu invadida por surtos de cólera e de febre
amarela. Essa localidade, à época, era uma zona completamente rural, e é na
quinta que seu pai irá adquirir que o poeta tomará contacto, pela primeira vez,
com as alegrias do campo. Para ele, haverá sempre um enorme contraste entre o
meio campestre e o citadino. Se num existe vida, o outro recheia-se de morte –
e é esta dualidade que se vai prolongando por diversos poemas. A cidade será
sempre um “foco de infecções”, onde proliferam as sombras da condição humana,
onde altos prédios são prisões que inspiram negros pensamentos e despertam o
seu “desejo absurdo de sofrer”. Ao invés, o campo inspira vitalidade, luz,
cores e sabores cativantes. É um lugar onde a verdadeira existência toma lugar,
onde tudo é salubre e impregnado de fascinantes belezas. Aqui encontra-se,
subentendida, uma referência a Anteu, o gigante da mitologia grega que colhia a
sua incomum força de Gaia, sua mãe (a figura personificada da Terra em si).
Apesar de tudo, e com
frequentes desterros no campo, Cesário não foge à cidade. Mesmo que esta o
oprima, o abale ou lhe enegreça a alma, de forma algo permissiva, ou até
estranhamente sádica, continua a demorar-se pela "capital maldita". De forma
mais concreta, os poemas “De
Verão” e “O
Sentimento de um Ocidental”, um épico tenebroso, em
contraste justificam as muitas linhas antes escritas:
No campo,
eu acho nele a musa que me anima:
A
claridade, a robustez, a acção
___
E, enorme,
nesta massa irregular
De prédios
sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor
humana busca os amplos horizontes,
E tem
marés, de fel, como um sinistro mar!
Ligações a esta post:
>>> Leia sobre Cesário Verde aqui.
>>> Recentemente o especialista na obra de Cesário Verde, Ricardo Daunt, apresentou-nos uma primorosa edição tida como a obra poética definitiva do poeta português; falamos sobre aqui.
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