O lábio cego
Por Nuno Camarneiro
Pediram-me que preparasse um texto sobre literatura e
erotismo. E eu aceitei o desafio, apesar de não ter qualquer ideia sobre o que
haveria de escrever, apesar de sempre ter praticado as duas artes em separado.
Já comi enquanto escrevia, já me ri enquanto escrevia, mas
nunca… enquanto escrevia. Do ponto de vista prático, não há para mim qualquer
relação entre uma coisa e a outra. Mas tem de haver uma outra relação, porque a
literatura mexe com tudo, e o sexo mexe com tudo, sobretudo quando é bem feito.
Todos os autores falam de amor, alguns do ponto de vista do
crente, outros do ponto de vista do ateu ou do agnóstico. O amor está presente
mesmo quando está ausente, é uma espécie de crença que se aceita ou se renega,
mas que é difícil contornar.
E o erotismo, o que raio é isso? Um amor vertido em corpo? É
o sexo teorizado? É simplesmente a descrição do que se fez ou se gostaria de
fazer em vez de estar a escrever?
O dicionário diz que o erotismo é um estado de
excitação sexual, ou então a tendência para se ocupar com ou de exaltar o sexo
em literatura, arte ou doutrina. E eu fico meio desconfiado, e parece-me que o
erotismo é o sexo sem o sexo.
A par da definição de erotismo vem sempre a definição de
pornografia, e é difícil, se não impossível de estabelecer a fronteira. Será
que depende do carácter mais ou menos explícito das actividades descritas? Será
uma medida da beleza do texto? Ou, simplesmente, o erotismo é o que gostamos de
ler em público e a pornografia o que gostamos de ler quando estamos sozinhos?
Lembro-me de quando uma amiga minha me aconselhou um livro
erótico, ela disse erótico. Era A Casa
dos Budas Ditosos, do João Ubaldo Ribeiro, e eu comprei o livro, li o livro,
e quando a encontrei de novo disse que tinha gostado muito, que era muito
erótico, muito erótico mesmo. E talvez lhe tenha piscado o olho. Ela sorriu e
foi à vida dela, mas eu tinha quase a certeza que o livro era pornográfico.
Pelo menos era bom, e até o aconselhei a muitas outras amigas. Sempre com a
mesma frase: É um livro de um erotismo único, libertário, transgressor. E
talvez lhes tenha piscado o olho.
Ao escrever os meus dois romances deparei-me com um problema
clássico – como descrever uma relação sexual? Deveria pormenorizar tudo quanto
era feito? Ou usar a elipse e fazer como um autor francês que fala de “meia
hora de um agradável silêncio”? Usar terminologia científica como “falo”,
“vagina” e “períneo” ou usar metáforas rebuscadas como “o animoso ariete”, “a
mofosa gruta” ou o “virgíneo botão”? Descobri por mim que, em prosa, um acto
sexual só é bem descrito se na realidade estivermos a falar de outras coisas –
a relação de poder entre os intervenientes, as expectativas de ambos com o
relacionamento, o desejo que sentem por outras pessoas, o medo de que a mulher
ou o marido entrem subitamente no quarto. Tudo o resto parece artificial e
abusivo, afinal as personagens sabem melhor do que nós o que fazer com os seus
arietes e os seus botões.
Mas se a prosa teve sempre uma relação de conflito com o
sexo, já a poesia é um terreno fértil propenso a qualquer devaneio. Pode
dizer-se tudo com pouco, sugerindo, intuindo, pode fazer-se música com os dedos
e o desejo de um (ou de mais) corpos.
E eu, que da poesia pouco sei mas muito leio, eu não entendo
o porquê. Porque o mesmo se encontra nos decassílabos quinhentistas de Camões:
Oh, que famintos beijos
na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Como se encontra também nos versos cariocas de Vinicius de
Moraes:
Oh! Como és linda, mulher
que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Mas afinal o que é isso? O que procuramos e o que
encontramos pela poesia, que é sexo sem ser sexo? Pode um texto ser corpo?
Pode um seio ter a forma da palavra seio? É difícil o amor letrado e é difícil
acrescentar versos ao silêncio. Para escrever o desejo é preciso inventar um
lábio cego e deixar a língua arder.
Afinal, talvez o erotismo seja o único sinónimo que a poesia
aceita - o sexo na ponta no verbo, a sílaba doida, o som de um corpo que colapsa.
Na Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera afirma que a sensualidade é a mobilização total dos sentidos. Inspirado nessa frase eu tive uma ideia, afinal, talvez o erotismo não seja mais do que o desejo físico pela palavra.
Na Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera afirma que a sensualidade é a mobilização total dos sentidos. Inspirado nessa frase eu tive uma ideia, afinal, talvez o erotismo não seja mais do que o desejo físico pela palavra.
* Entre os dias 6 e 9 de novembro realizou-se em Natal o I Festival Literário de Natal (FLIN). No dia 8, realizou-se uma mesa redonda com o tema "A literatura e o erotismo" da qual participaram entre outros nomes o escritor Nuno Camarneiro. "Lábio cego" é o texto lido por Nuno durante sua participação no evento. O escritor é autor de dois romances, No meu peito não cabem pássaros e Debaixo de algum céu, título que lhe valeu o Prêmio LeYa em 2012.
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