O beabá das biografias*
Em briga de cachorro grande quem sou eu para meter minha
língua? Enquanto a questão estava entre os reis da MPB acompanhei de camarote o
disse me disse; quando a coisa descambou para o terreno da literatura (perdão
pela divisória de áreas, como se a biografia não fosse um gênero textual e
estivesse alheio à literatura, mas já me explico sobre), como dizia, quando a questão
aqui chegou, dei algumas deixas na minha página no Facebook, principalmente no
caso Paulo Leminski, e, enfim, quase um mês depois, é impossível não dizer nada
sobre o caso. Ao menos posso ter uma opinião formada sobre, mesmo porque a
briga é de cachorro grande, mas o que respinga, respinga diretamente no cidadão
comum. E por isso mesmo me vejo um tanto quanto obrigado a dizer alguma coisa,
a emitir um parecer sobre.
Permitam-me um esclarecimento: não é o caso de ser a
biografia um gênero que me apetece ler. Não. Acho esse texto maçante, chato, e
foram muito poucos autores que consegui ler falando da vida alheia. E o que li
foi quando eu dispunha de certo tempo para ser queimado com qualquer coisa.
Logo, minha visão sobre o gênero perde-se na restrição de alguns textos: alguns
deles redigidos para uma coleção caprichada até da Editora Três – textos,
aliás, que deve ter em qualquer biblioteca de escola, porque depois de saírem
das bancas de revista foram parar aí, sendo talvez os primeiros lugares a que
foram destinados. Cito de memória dessa coleção, Castro Alves, Gonçalves Dias, Machado
de Assis, Euclides da Cunha – todos lidos na minha adolescência. No período de
Faculdade ainda cheguei a ler a biografia extensa de Joachim Fest, Hitler, em dois volumes; do mesmo autor,
No bunker de Hitler – os últimos dias do
Terceiro Reich. Paulo Leminski – o
bandido que sabia latim, de Toninho Vaz. Acresceria aqui a biografia de
Caio Túlio Costa, Cale-se. No
mestrado a breve biografia
informativa Saramago, de João Marques
Lopes, o que deve ter sido o último título. Atravessaram o meu caminho mais uma
quantidade de textos do gênero, como a pretensa biografia de Fernando Pessoa
redigida por José Paulo Cavalcanti Filho e a bem cuidada sobre Getúlio Vargas
redigida por Lira Neto, de quem até acompanhei certa vez uma palestra num
desses eventos literários.
Aliás, contam-se pelos dedos da mão e ficam dedos órfãos os
nomes de biógrafos bem conceituados no Brasil. Parece-me mesmo que a biografia
é, por aqui, um gênero dos mais marginais. E não quero é reduzi-lo ao esmo, do
lugar nenhum, ao dissociá-lo do território da literatura, termo esse que tem,
no lugar que aqui assumo, outra conotação: é literatura aquele texto que tem no
trabalho com a linguagem a medida exata de sua existência. O texto biográfico,
pelo caráter informativo, muito se aproxima do trabalho com a linguagem
jornalística, cuja transparência do dito é, ainda que impossível de ser
alcançada, o lugar ansiado pelo escrevedor. Um exemplo preciso é o trabalho
biográfico redigido por Paulo Leminski nos quatro textos mais tarde reunidos
num só título, Vida. Está aí mais que
o preceito informativo da biografia, a voz do poeta rasurando a todo tempo a
ordem morfológica, sintática e, consequentemente, a própria forma do gênero.
Mas a questão aqui é fora desses lugares textuais; diz
respeito a validade do gênero e o modo como dele se apossa o biógrafo para a
elaboração da suas personas históricas. Diz respeito ainda aos trânsitos e os
limites entre o privado e o público, onde finda um e principia o outro, ou onde
os dois se interseccionam. E todo o imbróglio da questão parece ter nascido aí,
desde a ação jurídica interposta à biografia de Roberto Carlos – até então o
caso mais sintomático nas discussões porque veio seguido da proibição de circulação
de uma obra. Tudo o que foi dito sobre essa polêmica que aflora com depoimentos
de outros tipos da classe musical como Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan,
me parece que é produto de um mal entendido ou uma distorção levada ao extremo,
primeiro, por uma mídia medíocre como a que temos, interessada muito mais em
ver o circo pegar fogo que no debate profícuo sobre a questão, depois, por um
grupo não menos despreparado nas leituras e interpretações dos ditos. No caso
de Chico Buarque e os demais de seu grupo me parece que nunca houve uma censura
prévia, como hoje são acusados, sobre o assunto; a legitimidade da defesa da vida
privada parece ser, se não me engano, um pleno direito de qualquer cidadão,
seja ele famoso ou não. E é em nome desse direito a tecla que tanto se bate na
ideia de autorização ou não da biografia. Da mesma maneira que se entendeu isso
errado, se entendeu também o depoimento recente do próprio Roberto Carlos que
teria se pronunciado a favor das
biografias não autorizadas. No meu parco entendimento, o cantor não cedeu à
questão: a biografia permanece sendo-lhe um atentado se nela o biógrafo se
beneficia de situações licenciosas. O que grupo contrário ao tema não terá
percebido é a desconsideração que eles fazem da existência dos meios legais
pelos quais o biografado ofendido pode recorrer.
O mero receio da difamação, medo que transparece no gesto de
proibição das biografias não autorizadas passa, basicamente, por duas questões
culturais: uma, a de que o verdadeiro herói é destituído da mácula, concepção
tradicionalista e reduzida do sujeito, uma vez que o que nos constitui é nada
mais do que nossas imperfeições, as verdadeiras idiossincrasias que nos coloca
em lugar do diferente e não do próprio; outra, que essa imagem sem mácula foi
construída sob uma farsa que uma vez exposta em sua real forma é capaz de tudo
ruir e deixar o herói soterrado debaixo das ruínas do que eram glórias. Cabe
nessa hora o dito popular de que quem não deve não teme.
Mas, vejamos, o dito tem suas limitações. A meu ver no jogo
das perfeições e imperfeições aquilo que pode se constituir em mácula da
personagem histórica só fará sentido se esta servir para esclarecer algum
impasse na obra do artista, já que ao falar dele é sobre a obra o que estaremos
buscando falar. Pode ser até que esta seja uma visão muito particular de quem
primeiro vê a obra para só depois olhar o seu autor. Quando há seis anos me
decidi em estudar a obra de José Saramago, por exemplo, não fiz porque tivesse
uma afeição biográfica entre eu e o escritor português, embora mais tarde
descobrisse isso, mas no primeiro instante o que me motivou foi o seu trabalho
literário. Mais: a obra de todo artista é pública – não se produz literatura, música,
pintura, dança, arquitetura, teatro etc. para si ou para um reduto familiar, se
produz para um público e nesse caso, mesmo o núcleo familiar, se constitui já
em esfera pública. Ao público só interessa o fato que sirva de esclarecimento
sobre obra. Parece que é aqui em que as duas esferas, a privada e não privada,
se interseccionam. As situações escusas a essa intersecção devem ser tratadas
apenas como fofoca? Apelo gratuito do biógrafo para vender o escrito? O
problema é que cada vez mais, o gesto escabroso é o que constitui, ao menos para
o grande público, num definidor de personalidades. Em alguns casos, naqueles
que não chega a ter a alcunha de difamatórios (eis um termo cujo conceito tem
suas variantes de pessoa para pessoa), o consolo para a pessoa pública parece
vir de outro dito corrente: se é para falar, que falem, ou bem ou mal, o
importante é que falem. Talvez esteja em falta a necessidade de certo despudor
sobre a imagem que outro faz de nós mesmos.
No limite a que as coisas chegaram é necessário apenas que
seja feito alguns esclarecimentos: posicionar-se contra as biografias não
autorizadas não constitui uma censura. Pode até ser uma apologia a
contrariedade da liberdade de expressão, mas deve prevalecer o bom senso,
principalmente do biógrafo, que cada um tem uma posição sobre si, e essa
posição deve ser até o limite respeitada. O que apenas me intriga, mas isso é
já tema para outra conversa, é o grande poder que os familiares usufruem sobre
a obra artística do artista depois de morto; há casos estapafúrdios envolvendo
pesquisadores e famílias de artistas quanto ao trato que aqueles mantêm com a
produção artística estudada. Também no caso das biografias é preciso que haja
uma compreensão acerca da autonomia do pesquisador e novamente tem valia seu
limite de atuação e sua postura ética, duas características que me parecem ser
as que melhor devem guiar quem se aventura redesenhar seres históricos que é o
que todos nós somos em seres de tinta e papel.
Outro esclarecimento diz
respeito ao debate; mesmo atrapalhado e atabalhoado, a questão vem recebendo os
palpites de diversos setores da sociedade. E isto só enriquece na elaboração de
uma proposta conveniente a ambas as partes. Proposta que, a meu ver, deve ser
guiada pela liberação das biografias. Ainda que este esteja longe de ser um
gênero que me apeteça ler, a história das ideias e a memória de um povo estarão
mais bem enriquecidas se delas soubermos sobre o seu nascimento e sua gênese e
sobre os seus produtores que são estes, ideias e povo, seus principais
constituintes.
* Este texto foi publicado inicialmente no LiteraturaBr.
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