Impasse sobre um retrato de Jane Austen
Retrato de Jane Austen. Produzido provavelmente em 1789, a imagem - que passou por vários retoques ao longo dos séculos é motivo de impasse entre os pesquisadores. |
O mundo parece que sempre esteve interessado em Jane Austen. Só
neste ano, vários lugares têm estado em perfeito alvoroço por causa do
aniversário de 200 anos de seu romance Orgulho
e preconceito – tratado, desde já, como se fosse seu primeiro título
publicado. Para demonstrar essa dimensão de efeitos comemorativos é bom lembrar
alguns desses acontecimentos, muito deles mencionados por aqui em nossos
boletins de fim de semana: em Hyde Park foi construída uma réplica gigantesca
de Mr. Darcy a partir da figura de Colin Firth que interpretou a personagem no
cinema; reedições de todos os formatos de sua obra, até a criação de um tarô a
Austen, mesmo não havendo quaisquer ligações exotéricas da escritora e esse
universo; mais recentemente, o anúncio do banco central inglês de que a partir
de 2017, a nota de dez libras trará a reprodução da imagem de Jane Austen
juntamente com uma frase sobre os prazeres da leitura, palavras originalmente
ditas, como muitos têm observado, por uma de suas personagens mais desprezíveis.
E sobre esta última novidade, já por esses dias, armou-se uma polêmica a partir da imagem reproduzida
pelos designers do banco inglês: a biógrafa Paula Byrne, autora de The real Jane Austen deu um parecer
reprovador sobre. A reprodução feita a partir de um famoso retrato
pintado pela irmã Cassandra Austen padeceu de muitos retoques e a escritora foi, sim, na compreensão de Byrne transformada numa “boneca bonita com olhos grandes e fofos”, “enfeitada
como se fosse da era vitoriana”, quando na verdade Austen “era muito mais uma
mulher de caráter georgiano”. A nota de reprovação ainda atenta para outro
detalhe: “O traje está errado e a imagem cria um mito Austen para alguém que
era uma recatada solteirona e não uma autora de pensamento profundo.”
No meio de tudo isso, o surgimento de novas informações sobre
a escritora deveria ser uma das poucas coisas a ser, de fato, bem-vinda. Mas,
entre umas e outras, mais uma polêmica. E de novo sobre um retrato da
escritora. Embora, esta não seja, de um todo, coisa nova; mas algo que se
arrasta tem seu tempo. O fato é que muito recente aparecem provas decisivas de que o retrato de Jane Austen, o mais visto depois do desenho de Cassandra, é
mesmo da escritora. As suspeitas advém de análises bastante acuradas a partir
dos sofisticados meios de que dispõem hoje os pesquisadores de antiguidades. E
as provas estão, portanto, presas na própria imagem que correu o mundo desde
que apareceu em 1884 mas até então era tida apenas com um possível retrato. Primeiro, a
assinatura do artista: Ozia[s] Humphry – nome de
um importante, mas desconhecido retratista do período. Segundo, a data da imagem: 178*, ao que
deve acrescer um nove como último dígito – a imagem está muito deteriorada
nessa parte. E terceiro, o próprio nome da fotografada: Jane Austen.
A história desse retrato é, entretanto, longa e complicada,
e tem sido motivo já para muitas páginas de discussão. Muito antes dessas constatações
agora reveladas, desde quando ele apareceu pela primeira vez já havia sido
considerado como autêntico por diferentes ramos da família da escritora. Na época
serviu como frontispício da primeira edição das correspondências de Austen então
editada pelo seu sobrinho-neto, Lord Brabourne. Depois, em biografias da
família, como Jane Austen: her life and
letters, de 1913, redigida por William e R.
W. Austen-Leigh e Personal aspects of
Jane Austen, texto de 1920, redigido por Mary Augusta Austen-Leigh. Mas, em
1948, o retrato foi deslegitimado como sendo da escritora. O parecer veio da
National Portrait Gallery que adquiriu uma reprodução do arquivo, então sem
assinatura e sem data, declarando que a única imagem autêntica de Austen era o
desenho feito por Cassandra. Embora o próprio NPG tenha tentado comprar o
retrato em 1930, recentemente rejeitou o arquivo alegando unicamente que o
vestido de cintura alta com que Austen aparece vestida não era, até meados da
primeira década do século XIX, um estilo usado pelas mulheres inglesas; além
disso, Austen, nascida em 1775, teria o dobro da idade da jovem que se mostra
na fotografia.
Nos últimos quinze anos ou mais, o retrato tem sido
merecedor da atenção dentro e fora do universo dos pesquisadores: em
março de 1998, por exemplo, muitas informações a respeito da imagem foram
colocadas em debate. Mesmo assim, tudo foi sempre colocado em suspenso. Mesmo provando
que o retrato foi sim feito por Ozias Humphry (cujo
monograma sobre o retrato aparece anotado em 1984 por um dos parentes de Austen
para fins de catalogação dos bens da escritora) sua identidade ainda é
algo que pode ser debatido. O retrato teria sido feito várias vezes, mas a
probabilidade de encontrar outras informações adicionais é um tanto remota,
dado que assinaturas, nomes e datas mesmo sendo as últimas a serem aplicadas à
fotografia são também as primeiras a se perderem com o tempo.
Nesse caso, o impasse não chega ainda a ser maior porque
Ernest Rice, em 1910, então proprietário do retrato, permitiu contratar um
gravador de renome para fotografar o arquivo a pedido de William e R. W. Austen-Leigh que iriam usá-lo como frontispício para a já referida
biografia. A importância desse gesto, mas que passar adiante os traços verdadeiros
da imagem tem outra função nesse interstício: o retrato
original terá passado por uma série de limpezas e retoques ao longo do século XX e a quase cópia atestaria um instante intermediário entre quando a imagem foi feita e hoje.
Os negativos de Emery Walker – o fotógrafo então
contratado – pertencem ao Arquivo Heinz da National Portrait Gallery, listados sob o título “garota desconhecida,
anteriormente conhecida como Jane Austen”. No ano passado, a Heinz forneceu o
material para uma varredura de alta resolução digital destes negativos feita
pela Acumé Forensics, uma empresa especializada entre outras coisas em análise de
imagens digitais para fins de provas em tribunais.
O relatório divulgado pela empresa dando contas da
autenticidade da imagem, deixam os céticos incapazes de se esquivarem dos nomes – Ozias Humphry
e Jane Austen – e dos números 178*; essas informações estão presentes na
fotografia de 1910. Esses dados não são efeitos de alucinações. Eles são resultados
da alta tecnologia do século XXI, produto de uma varredura em alta definição,
não suposições a olho nu. Agora, há outras dúvidas, ainda a serem respondidas,
como por exemplo, por que Humphry assinou seu nome duas vezes? Mesmo se possível saber
exatamente que tipo de material Walker usou no processamento de sua fotografia,
é impossível saber exatamente o que sua câmera pegou na tela ou por que a
primeira assinatura aparece clara e a segunda escura. Ambas as assinaturas não podem
ser negadas como sendo do próprio Humphry. Seria a primeira um rascunho feito
antes de tudo, para, depois que findado o retrato, ser assinada, de fato? E por
que, então, o retratista coloca seu nome no canto superior direito e na parte inferior do retrato como era costume na época?
O que dá ênfase aqui é que as informações fornecidas por
esta fotografia há muito foram negligenciadas por não serem visíveis para os
espectadores do século XX vitoriano e mesmo no período imediatamente posterior
ao próprio retrato. Os impasses se acentuam pelas falhas no correr da
história da fotografia: antes de utilizar o retrato como um frontispício para
sua edição 1884 das cartas de Austen, Lord Brabourne procurou, à sua maneira, contatar
os seus primos de Austen a fim de confirmar a autenticidade da fotografia, mas não
terá deixado nenhuma fonte palpável que atestasse a autenticidade da imagem; além disso, os da era vitoriana e
início do século XX foram unânimes em atribuir o retrato a Johann Zoffany,
conforme as legendas posteriores confirmam. Zoffany era famoso, neste
momento, enquanto Ozias Humphry era praticamente desconhecido. Por isso
mesmo, é certamente inconcebível que alguma mão fraudulenta tenha introduzido o
nome de Humphry para a tela em uma data posterior. Pelo contrário, a sua
própria invisibilidade, sugere que
estas inscrições são contemporâneos com a execução do retrato. Em
suma, em 1910, a câmara de Walker viu algo que as pessoas comuns olhando para o
retrato não veem, em parte porque a escrita era difícil de detectar sob pena da
sujeira de um século, e, em parte, confiante (embora equivocado) sobre o
artista que produziu o retrato. Ninguém, então, olhou para assinaturas, nomes e
datas em que foram aí colocados.
Há muito ainda a ser aprendido sobre este retrato de Jane
Austen. Mas o mais importante agora é que questões de fundo sobre o
assunto estão resolvidas. O retrato de Jane Austen falou por si.
Este texto foi escrito a partir de informações diretas de "Jane Austen to the life?" de Claudia L. Johnson e publicado em The Times Literary Supplement.
Comentários