Estação Central, de José Tolentino Mendonça
Por Pedro Belo Clara
Nascido em 1965, na bonita ilha da Madeira,
Portugal, José Tolentino Mendonça é um dos mais proeminentes poetas portugueses
do nosso século. A diversidade dos seus trabalhos também se estende à área do
ensaio, sem se remeter, no entanto, de forma exclusiva ao género em questão. E
isto porque diversos artigos têm sido igualmente escritos e assinados pela hábil
mão do autor. Em 2004 atingiu, por certo, um dos níveis mais notórios da sua
carreira literária, ao lhe ser outorgado o distinto Prémio PEN Clube Português
na categoria de poesia.
Este livro em concreto, editado em Setembro de
2012, surge aos leitores como uma importante amostra dos principais temas
abordados pelo autor, transversais, aliás, à esmagadora maioria das obras que
já produziu. Os seus poemas, sem aqui seguirem uma ordem propriamente definida,
prova de que a unidade dos mesmos surge intencionalmente esbatida, abordam em
regra geral as questões mais pertinentes do Homem moderno, bem como as suas dúvidas,
receios, inseguranças e padrões comportamentais. Tudo isso, é claro, visto e
analisado sob um ponto de vista cristão, ou não fosse este destacado poeta um
eclesiástico formado em Estudos Bíblicos.
Aqui se descobre a grande curiosidade, sempre intrigante,
ligada à figura de Tolentino Mendonça: o de ser assumidamente um padre poeta.
Não é assim de estranhar que a principal temática da sua obra esteja ligada à
religião católica e aos preceitos da fé cristã. No entanto, e eis uma das
grandes virtudes do autor, nunca se constrói a sensação de que o poeta é um
padre que escreve poemas como se ditasse sermões. Trata-se antes de um homem,
tão comum como qualquer outro, que por si só também busca o lado mais divino
desta vida (e da outra, certamente).
Pela presença deste carácter despretensiosamente
humano, totalmente desprovido de intenções religiosas, poder-se-á cultivar a
sensação de que, ao longo da obra em questão, muitos poemas apenas registam murmúrios
poeticamente sussurrados, como se fossem segredos que se esbulham do seu mais
íntimo secretismo. Mesmo que somente representem imagens e motivos alheios que
em torno do “eu-poético” se manifestam e se sucedem como as estações do ano, há
um elemento que, de tão humano e natural que é, invariavelmente une aquele que
lê o poema ao homem que o compôs. O leitor revê-se assim nessa figura de proa ao
simplesmente evocar (e digo-o a título de exemplo) um qualquer momento de sua
existência. Ao fazê-lo, não se sentirá tão só. Existe, por isso, partilha,
entendimento e compaixão. Afinal, algo há de comum entre todos nós: a mundana condição
que nos assiste. A aceitação e, mais importante ainda, a compreensão de tal
evidência só irá contribuir para a aproximação do Homem ao seu semelhante.
Será, assim, Estação
Central um livro de revelações? Ou, em menor escala, um livro de
confissões? Elas existem, pois elas próprias compõem o tecido de todo aquele
que vive, ama, sofre e busca. Por isso, é justo que se aceite essa visão sobre
a obra, ainda que mantê-la como única tradução de todos o poemas seja um acto
insensato e incompleto. A idade depura o Homem, é um facto, privando-o de
inúmeras roupagens. Através desse processo de lapidação de carácter, visão e
pensamento, encerra-se um propósito evolutivo. E o mesmo parece ser a base de
vários trabalhos que neste livro foram publicados. Mas não de todos. Não dos que
poderemos nomear de “principais”.
Existe um elemento que directa ou indirectamente
se anexa à obra, assumindo um aspecto divino. É, em suma, a maior das divindades:
Deus. Por vezes, é bem mais do que a Sua simples presença que de si para si se
anuncia (“como se Deus estivesse / desde sempre sozinho / diante de Deus” –
Take My Hand Precious Lord), mais do que a inabalável virtude que Dele provêm (“os
teus olhos / dos quais nunca me poderia defender / erguem-se num louvor / capaz
de ensurdecer para sempre / os que duvidam” – Escrito num Livro de Horas) – é a
incessante busca pela sua omnipresença, desejavelmente constante e eterna: “o
teu fiel é mercador de perfumes / em busca da essência de rosas / do amor
divino / eu deambulo” – O mapa).
Ainda assim, é natural que ao longo desse percurso
inúmeras provas urjam ser ultrapassadas, sem olvidar todas as questões que
geralmente se inerem ao mesmo. Mas o “eu-poético” não estranha esses dias de
descrença; prefere utilizar a sua força como se de uma preciosa alavanca se
tratasse. E, graças a tal acto, pelo seu exemplo oferece viáveis ensinamentos
de vida a todo aquele que o vier a ler. Não é ele, afinal, um homem que
compartilha da mesma condição que nos assiste? Crente ou descrente, sabe que “quando
Deus vacila em mim” se anuncia a oportunidade de solidificar as premissas que
tanto defende – “Creio em Deus, mesmo quando Deus se cala” (“Credo”).
A figura divina, sempre presente e sempre
demandada, surge como uma figura repleta de amor, capaz de perdoar a mais
inominável das ofensas. É um Deus de amor, sim, mas ao mesmo tempo um Deus
pleno de humanidade. O Homem que se busca a si mesmo está, no fundo, a procurar
por Deus nos seus mais recônditos recantos. Essa ideia de unidade remete-nos
para o derradeiro dos poemas da obra, onde um êxtase tão sereno quanto contido
tem lugar: “E, por fim, Deus regressa / carregado de intimidade e de imprevisto”
(Escatologia). Eis, assim, a derradeira revelação. Que, no entanto, abre espaço
à seguinte questão, ela própria levantada por um verso do poema em causa: “Qual
de nós dois é a sombra do outro?”. Provavelmente, os dois, Homem e Deus, não
sendo propriamente indissociáveis, são a extensão um do outro, pois juntos se
apresentam como sendo uma coisa só: princípio e fim, nada e tudo.
Não é este um livro religioso, como creio que já
antes terá ficado claro. Apesar de todos os pressupostos que o sustentam, o seu
carácter é diversificado. Serve de prova a tal ideia, por exemplo, a profunda
reflexão do poema “It’s Time To Be Clear” - «a maior parte das vezes o amor
nasce do erro» - ou o factual discorrer de “A poesia completa de Marianne Moore
– “Uma vida não se compõe de factos e de usos / mas de logro e de lenda / (…) /
(…) o consolo da metafísica pode (…) / ser profundo”.
É, assim, um livro de pensamentos, dedicatórias,
visões e, claro está, de buscas. O inspirado poema “Voto de pobreza” somente reforça
esse carácter ao sublinhar a necessidade de uma natureza indagadora quando se
demanda por algo: “(…) a pobreza verdadeira (…) / é aceitar que depois de tudo
/ o pai do filho pródigo não queira saber / porque se parte / ou porque se
regressa”. Mesmo que isso implique ter de aceitar que, em todo o caso, “a
palavra de Deus” é simplesmente “silêncio”.
Através de poemas livres de pontuação livre, numa
espécie de maximização da expressão modernista, José Tolentino Mendonça
revela-se sem pudores, colocando em seu trabalho pedaços de si mesmo. Os
motivos e as referências católicas são uma constante, mas esse homem, que
existe «à maneira de uma árvore», é, no fundo, alguém que compartilha uma
intimidade tão comum a mim, autor deste breve ensaio, quanto a si, estimado
leitor. Em suma, somos todos tão humanos quanto Deus o é. E em igual medida tão
divinos quanto Ele.
Comércio bilingue, o poema precisa da troca,
sobretudo se inútil,
da espontaneidade de poucos, dessa ideia de passagem,
de derrocadas e do silêncio que lhes sucede,
precisa de descendências particularmente radicais
do relâmpago ou de um absurdo ainda maior
para se tornar próximo
O poema é conversa humana
palavra que recuperamos
ao abandonar
(José Tolentino Mendonça, Do poema como contrato social)
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog preservamos o grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A Jornada da Loucura (2010), Nova Era (2011) e Palavras de Luz (2012) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados nos blogues pessoais do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas) e O Manifesto (artigos políticos).
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