Em Dias Chuvosos: um parágrafo
Por Cesar Kiraly
§ - Lágrimas? - Espasmos secos.
§ em dias assim. chuvosos assim. sem nada de especial.
recolhia cada um dos antigos recortes. poemas queridos. lidos. lindos. que
haviam servido de porto ou de preciosidade. em dias assim. ele amassava um por
um. sob certeza franzida. até o desaparecimento. nem mesmo a esperança do
perecimento em flor. nem mesmo essa era mantida em seu lugar amarelado. nem
mesmo a fria ironia diante dos velhos presos ao viver. nem mesmo essa deixava
de ser simetricamente rasgada. Lawrence e suas roupas brancas. sua barba. nem
mesmo este confuso nome. nem mesmo as consoantes.
§ viajante carioca melancólica de segunda viagem. de
tendências nosográficas e antropológicas e alegóricas. escrevedora constante de
cadernos feitos mesmo para as notas. notara ser a Europa como a zona sul.
ornada com elementos de cidade. se calhar com mais sangue perdido. mas sem
mosquitos.
§ não saberia bem como nos contar, porque nunca fomos bem um
ponto, ou uma invenção, uma linha, muito embora a vida tenha sido quase toda
[...] mais como descoberta – ela pensou. a descoberta de que se poderia
intervir nos espaços em branco, ou melhor ainda, intrometer-se em imagens
postas, sem tocá-las, apenas por nelas projetar uma bruma. uma fumaça de remédio,
de cigarros eletrônicos japoneses, mas não era isso que queríamos, mas uma
penosa fumaça densa, de causar horror nos dias de hoje, expelida um pouco
sólida por pulmão aveludado por dentro, como naqueles filmes – nossos – ou
naquelas aulas do Deleuze que assistíamos em VHS com estranhas legendas em
italiano.
– nossos – ela ponderava –.
§ não saberia bem como nos contar, porque nunca fomos bem um
ponto, ou uma linha, muito embora a minha vida tenha sido quase toda invenção.
foi mais como uma descoberta – ela pensou. a descoberta [...]
§ eu não saberia bem como nos contar, como dizer a alguém o
que passamos, penso que porque nunca fomos bem um ponto, ou uma linha, então
como nos sustentar no fôlego (?), e mesmo assim não seria tolice dizer que
minha vida foi quase toda invenção. – acho que fomos mais como uma descoberta –
ela pensou. a descoberta de que se poderia intervir nos espaços em branco, ou
melhor ainda, intrometer-se em imagens postas, sem tocá-las, como se alguém
tivesse imaginado um livro todo sem ti, mas que ainda assim desejasse te ver
ali, e assumisse o risco dos efeitos imprevistos da desfiguração que poderia
produzir, apenas por neles projetar uma bruma. uma fumaça de remédio não seria
do nosso feitio, mas sim uma penosa e densa, de causar horror aos verânicos,
expelida um pouco sólida, sob infantis expectativas de arcos, por pulmão
aveludado às multidões de cigarros sem filtro, como naqueles filmes – e ela buscou
na memória se havia este tipo de grânulo em Marienbad ou em Hiroshima, chegando
a conclusão de que não importaria, porque ardiam – ou naquelas aulas de
Vincennes que víamos com estranhas legendas em italiano.
§ não lembro bem quantos foram os movimentos que nos uniu,
mas sei que foram bocados. se eu fosse me esforçar para reestabelecer algo,
para nos dar o conforto do saudosista que brinca de si como o Estado brinca de
história, mas ainda com toda aquela minha dificuldade em me render, diria que
primeiro foi aquele momento em que contou os nomes assinados à lista de
presença para saber meu nome. mas o que é um nome? mas mesmo assim foi
importante que o tenha feito. lembro que havia achado – pelo que disse – os
meus olhos esbugalhados, a minha fisionomia de espanto e que minha tensão
psicológica lembrava a de um retrato que Portinari fizera da esposa. depois foi
aquele contato em virtude das minhas imagens em outono, escreveu-me cartas
longas, poemas longos, longuíssimos sentimentos e eu te devolvia no que meu
olho se prendia: selos, galhos, folhas, bilhetes. éramos íntimos então, passava
por mim resfriada e me sorria, eu a seguia com os olhos pelos expiadores de
vidro.
§ nos momentos difíceis, ela não contestava o solo, ou o
laço. parecia-lhe, esses modos de humor fechado, excessivamente masculinos, e
recebia tais afetos como a guilhotina do piano a lhe apertar os dedos. nos
momentos de desamparo era ao nó que amaldiçoaria, pois apenas ele poderia ser
responsabilizado por estar muito frouxo, ao mesmo tempo em que o
recrudescimento, ao excesso, poderia ser tomado como uma espécie de fim. apenas
o nó entendia com perfeição o pescoço e todos os seus manhosos afetos. – ele
repetiria o nó de gravata, infinitas vezes, até senti-lo verdadeiro sob
critério nenhum, apenas senti-lo sério e certo: não poder desfazê-lo, era
viver. – ela, sob dia de frio, encasacava-se de preto e saias floridas, meias
longas e negras à terminar nos tênis de mesma cor e solas brancas. um sorriso
rítmico lhe encobria a cabeça.
§ estava eu sentada ao café, ou algum lugar semelhante,
rabiscaria sobre o papel garatujas, pois saberia bem desenhar, ele chegaria de
olhos vidrados, mas sereno de gesto, sentaria ao meu lado a continuar qualquer
conversa começada, estaria, a partir dali, sempre ao meu lado. estava eu
sentado ao café, ou algum lugar diferente, rabiscaria ao papel algumas letras,
seria dado a escrever, ela chegaria com aguçados olhos castanhos e cabelos
louros, sentaria ao meu lado a continuar qualquer conversa, estaria, a partir
dali, sempre ao meu lado.
§ sonhara com uma reunião grotesca, em que sua mãe dizia ter
feito um acordo com o vizinho para vigiá-la. imbuído da tarefa o referido
dominava a sua transferência de endereço – pensava –, não se preocuparia minha
mãe com a clara conotação que uma observação continuada acarreta? – a mãe
apresentava à meia voz, sabedora da atenção do grupo, ter encontrado um grande
número de facas afiadas e outros instrumentos de corte em seu quarto. ela, mas
nunca a mãe, pensava que podia não ser capaz de distinguir a pronúncia
acelerada de corte, sorte ou morte.
§ como disfarçar? – ele pensava – como impedir que perceba
que aqui estou por causa dela, pois a sensação é a de que não se pode escapar
de saber quando alguém senta a seu lado e se põe a descrever – continuou. ela
comia uma maçã verde descascada, e as mordidas ecoavam em barulhos de dente e
deslocamento de nacos a serem engolidos. ele não poderia voltar a olhar para
ela, posto agora sentado ao seu lado. então precisaria lembrar-se do espectro guardado
no canto do olho. cabelos escuros, olhos escuros, franja, meia-calça vermelha e
saltos altos. um pouco perto, mas o soslaio é sempre tão distante. ela se
levanta. arruma algumas coisas, não pôde ver bem. as meias possuem pontos
pretos. os olhos sombras pretas. uma bolsa azul e às costas uma espécie de
capa. ela anda se distanciando. – o que mesmo eu estava pensando – indagou –
havia algo de que não queria esquecer. sim, aquela lâmpada fria a falhar, mas
que mordiscava a luz de quando em quando. queria se lembrar que toda vez que
desviava os olhos tinha a certeza de que ela acendia inteira. achou que poderia
ser isto. só se incendiaria quando se soubesse vista de canto. era o caso de
desviar e olhar: e ela luminesceu ao olho direto, cegado de espanto.
§ Lúcio Cardoso colecionava poemas rabiscados em
restaurantes e bares. os escrevia sobre guardanapos. assim como um repentista,
para alegrar um jovem rapaz, para fazer sorrir, deitava-se a escrever um poema
e o lia em voz alta, para exibir virtuosismo. donde se depreende que nos
momentos solitários, em bares ou restaurantes, olhava para o infinito e fazia
dançar os cubos de gelo dentro do copo, com o indicador. ela até mesmo gostava
do Lúcio, achava divertido que a Clarice por ele tivesse se apaixonado e que o
fato constasse nas orelhas dos seus livros, mas não nas dos dele. sendo Lúcio
completamente desconhecido e Clarice cantada em unanimidade.
§ em Lisboa ela continuava a apresentar uma louca urticária
não diagnosticada em seu país. para todos os efeitos cria numa forma de
escarlatina própria para adultos, sobretudo porque adorava o nome. tinha
vermelhidão nas costas, barriga, mas especialmente na pélvis. pode ser que
fosse uma escarlatina imaginária. estava disposta a admiti-lo, principalmente
pelo sublime da composição ‘escarlatina imaginária’. digno nome de primogênita.
apenas cessou quando se pôs a ouvir a conversa de dois franceses e um dizia: –
quando estou como fome, sou como uma mulher. não fazia idéia do que queria
dizer, mas julgou que fosse verdadeiro. tal compartilhamento de verdades,
restitui-lhe as noites e lhe suprimiu as febres.
§ morar no fim do mundo não a impediu. não. não mesmo. ela
entendeu completamente o que queria dizer Deschamps e sua Dans les Règles de
l’Art. mas verdade seja dita: precisou presenciar a excessiva gravidade a
derrubar os velhos de Lisboa e suas bochechas vermelhas de tanto vinho e
concluir que o aspecto escorregadio das calçadas era compensado por uma
agudíssima traumatologia; e que talvez a primeira tenha assumido a forma que
tem para fomentar a segunda. ah! mas com que molhados olhos eles se levantam a
investigar se as mãos e os cotovelos estão lanhados. essa é a verdade a que
chegou; ainda sabendo que a memória pesa, ou ela é sustentada na vida comum, ou
não está em lugar nenhum. Deschamps acumulava roupas de jovens bailarinas,
algumas sujas e malcheirosas como uma russa a dividir o quarto. outras com
lindas etiquetas francesas à mostra. assim estariam eternamente preparados para
a queda e absolvidos pelas intensidades evidentes de suas transformações e
sangue. ai de quem ignora o sabão das pedras: resta apenas a complementaridade
entre miradouro e mirante: ser visto ou ver.
§ num certo momento Aygi, Guennadiy começou a escrever em
russo, era de origem estranha e falava em língua impronunciável de uma dúzia de
falantes. mas ainda assim ela apostou. se o casal ao lado falasse russo,
aprenderia alemão. não seria problema abordar, as mulheres bonitas prestam
atenção em outras mulheres bonitas, e os homens mais tolos não interferem nessa
cumplicidade tensa e estranha. perguntou em algum idioma que percebeu lhes ser
comum. agora precisava pagar a promessa. mas antes precisaria sair dali. pois
começavam a repetir as músicas e isso era imperdoável.
§ se o bule estivesse bem cheio, seria um desafio fazê-lo
não entornar. mas será que o lugar a se escolher para tomar o chá seria
concorrente ao entornamento? haveria alguma ciência oculta do olhar – ou pelo
menos impronunciada – segundo a qual o entorno não estaria no bule, mas na mão
feita insegura por não seguir aos ‘espelhos da alma’? tudo se tornaria ainda
mais perigoso, se houvesse algum componente no tomador que o impedisse de
sorver sobre pires úmido. assim sendo um ritual macabro teria curso. frente a
escolha incorreta: os guardanapos pagariam com a integridade seca: a se fazer
molhada na condenação. apenas do meio do bule para frente haveria conciliação e
todo o depósito transferiria o líquido certo feito mar negro.
§ por instinto ele pôs a mão por cima do bolso esquerdo – por
instinto, simples assim.
§ o genebrino dizia estarmos a ferro, mas creio que
poderíamos pensar que os bolsos agrilhoados por molhos poderiam corresponder a
mesma coisa. ora, sinal certo da servidão: a chave de casa. não é nisso que a
memória anda. mas em pernas, e não espetando ensacada no pano do bolso. as
chaves entregues à valise, bem longe, seriam como uma criança que adormece.
§ como era mesmo a palavra? ah sim. a última descoberta era
serem os poetas pecilotérmicos. poderia existir alguma ironia em dizê-los como
répteis, peixes, quiçá mosquitos. a despeito do chiste, a questão era sabê-los
extratores de temperatura do meio e não trazerem o calor em si mesmos, como os
mamíferos. da quentura próximos, tornam-se acelerados e vivos, todavia, em
alguns invernos, ficam envoltos em mármore.
***
Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no
Departamento de Ciência Política da UFF e do IUPERJ. É autor dos livros Ceticismo e política, Greenwich, Variações: sobre um tema de Anselm Kiefer, Os limites da representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume e O guarda-chuva de regras: um ensaio sobre a filosofia de Herbert Hart.
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