“Em busca do tempo perdido”, de Proust: juventude de um centenário
Por Félix de Azúa
Duas páginas de notas para o segundo volume de Em busca do tempo perdido. Fonte: Biblioteca Nacional da França |
Sobre Proust já se escreveu quase tudo, mas sobre Em busca do tempo perdido não, porque é um clássico e o próprio dos
clássicos é sua misteriosa capacidade em carregar-se de novos conteúdos em
cada geração. O que hoje significa essa obra não é o que significou em 1913. Agora
faz 100 anos da primeira parte, No
caminho de Swann.
O imenso trabalho se apresentou ao juízo dos leitores anteriores à
primeira guerra como um fragmento que à altura foi impossível adivinhar seu conjunto.
Dali, sua escala ia ser ampliada até chegar mais de três mil páginas e haveria
sido quimérico predizer que aquelas teses inaugurais introduziriam o que anos mais
tarde seria um mosaico gigantesco com papeis essenciais na literatura.
É a única opinião que justifica o imenso erro de André Gide ao reprová-lo para
a publicação pela Gallimard.
E depois daquela primeira aparição instalou-se um dos mais sangrentos
conflitos já conhecido da muito sanguinária sociedade europeia. A guerra de
1914-1918, como chamam os franceses, influiu decisivamente no projeto de Proust
e não há nada tão estarrecedor como em O tempo
redescoberto, a última parte de Em
busca do tempo perdido, o baile de máscaras ou a dança de cadáveres que reúne os personagens
depois de uma competição e o fechamento de uma vida que havia começado com a luminosidade
gótica da duquesa de Guermantes. Depois da guerra não há heróis, os belos
militares, as charmosas damas, os sutis aristocratas, as sedutoras adolescentes
da furuer de vivre são agora macabros
restos de uma sociedade defunta. O ciclo da vida e da morte havia se completado
com aquela última e lúgubre cena.
A obra estava acabada e se bem Proust não alcançou corrigi-la até o fim,
o leitor pode hoje lê-la sorteando os blocos de mármore ainda não esculpidos ou
inacabados, como A prisioneira ou A fugitiva, os mais imperfeitos. Isso não
quer dizer que deva evitá-los, são de leitura obrigatória, mas admitem um
seguimento menos atento que o resto do material.
Essa perpétua atualidade de Em
busca do tempo perdido se deve, entre outras coisas, a que não exatamente o romance, embora seja um dos maiores já escrito, mas é também mais que isso. Suas
centenas de personagens têm uma realidade verossímil do melhor retrato realista
e sem dúvidas encarnam ícones anímicos da mesma intensidade que Odisseu ou Dom
Quixote, isto é, mitos que reúnem em si um resumo exato, estarrecedor, dos
modos de ser do homem contemporâneo e seus destinos distintos. Ler Em busca do tempo perdido não é apenas deixar-se
introduzir a um universo de ficção extremamente inteligente, é também aprender
a refletir sobre nossos vícios e virtudes, modos de amar, crenças falsas, escravidões,
ou verdades hipócritas. É uma autêntica enciclopédia da humanidade moderna, de
sua glória e de sua estupidez.
Víctor Gómez Pin, quem dedicou a Proust dois livros filosóficos, podemos
assim dizer, afirma que o único personagem de Em busca do tempo perdido é a linguagem mesmo e que por esta razão vai
muito mais além das peripécias e representações da alta burguesia parisiense de
oitocentos. A linguagem tal como nós possuímos, é dizer, nossa essência, o que
nos faz humanos, está derivada de um modo universal e inexorável a puro
instrumento, a utensílio prático. À medida que a linguagem se faz instrumento
nós nos convertermos em meras ferramentas. Não obstante, a linguagem de Em busca de tempo perdido é
perfeitamente alheia a toda instrumentalização, inclusive aquela que obriga ao
romancista respeitar a ação e o suspense, por isso a longitude pertinente das
frases e essa dificuldade que põe nervosos os leitores apressados. Poderíamos dizer
(mas isso teria de ser em outro texto) que a linguagem de Proust é estritamente
poética e por isso exige nossa esforçada colaboração.
Quando um busca, como Proust, a linguagem em seu labor poético, então a fala,
a linguagem de gente comum, em sua vida corrente, se transforma num encantamento
que permite chegar ao mais recôndito do falante. O modo de falar é uma representação
fiel da alma de cada indivíduo e Em busca
do tempo perdido é, além de tudo, um repertório de modos de falar. Cada
modo de falar é uma possibilidade de viver.
Numa antologia de pensamentos de Proust compilada por Jaime Fernández,
figura esta frase: “As palavras não me informavam se não a condição de
interpretá-las como se interpreta um influxo de sangue no rosto de uma pessoa
que se azara, ou também um silêncio repentino”.
Para Proust as palavras da
fala cotidiana, em ocasiões significativas, tomam uma função mágica capaz de
provocar reações involuntárias do corpo. Esta capacidade enigmática da
linguagem é o que faz Em busca do tempo
perdido uma obra que transforma aquele que a lê, não apenas animicamente,
mas com uma frequência também física. Sem isso for feito com seriedade, sua
leitura não é uma leitura, mas uma transfusão de linguagem, análoga às transfusões
de sangue que revivem um moribundo. É possível que essa seja, hoje em dia, a
melhor forma de preparar nosso corpo para a mortalidade.
versão livre para "Em busca del tiempo perdido: juventud de un centenário" publicado no jornal El País.
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