Elysium, de Neill Blomkamp
Começo a leitura desse filme por uma conclusão: esperava
mais dele. E, antes que me acusem de ser um perfeccionista sem entender de
cinema, a voz que diz isso, apenas repete, diga-se, um sentimento já antes revelado
por outras cabeças pensantes e melhor entendedoras de cinema que eu. Parece-me
que aquele ditado de que a pressa é inimiga da perfeição se ajusta perfeitamente
ao caso, porque o que a meu ver reduz esse filme está na ingenuidade com que são
tratadas algumas cenas. Embora sendo um texto de ficção científica, o diretor não
pode querer brincar com o olhar do espectador, ultrapassando determinados
limites que ferem o pacto realista construído ao longo da narrativa entre o narrado
e o leitor. E esse pacto é ferido por várias vezes: desde o implante a todo
custo de uma geringonça de ferro num organismo humano entre a vida e a morte
até a facilidade com os invasores do paraíso Elysium têm de encontrar as
chamadas máquinas salvadoras da vida, capazes do rejuvenescimento eterno à cura
de qualquer tipo de câncer ou mesmo a refacção de partes perdidas do corpo.
Ainda que no último caso, possuir uma máquina dessa
natureza, seja mesmo uma relíquia de se ter à amostra na sala de estar de qualquer
casa, como foram os aparelhos de rádio, os televisores e agora os computadores,
falta ao olho nu do espectador, uma base que melhor diga e não o contradiga da
facilidade em se alcançar os tais aparelhos milagreiros. Também, o filme coloca
um impasse entre ainda sermos tão humanos – até mais vulneráveis pelo estado em
que se encontra a Terra – e a capacidade de resistência orgânica a determinados
procedimentos: ora estamos condenados a morrer por uma exposição que seja a um
conteúdo radioativo, como é vitimada a personagem de Max, mas este mesmo ser
humano adquire um poder que só caberia, por exemplo, a um herói dos quadrinhos –
e aqui estou pensando no Homem de Ferro – para se permitir a rearranjar toda
vitalidade através de um procedimento que, realisticamente, o mataria de vez. E
isso, vejamos, não se explica apenas com o rótulo de ser um filme de ficção
científica. O processo de fusão entre o homem e máquina no filme da Marvel é
mais verdadeiro do que o ensaiado em Elysium.
Agora, o trato de elaboração de uma grande metáfora sobre o
fosso entre ricos e pobres – marca característica do cineasta que ensaiou e fez
melhor do que fez aqui, em Distrito 9
– parece ser o que merece melhor atenção. E questões problemáticas como as que
encabeçaram o princípio deste texto ficam aqui como um cutuque ou ideias esparsas
a se pensar melhor. Que se Blomkamp não tivesse sido levado pela pressa em
exibir o produto já acabado, teria feito valer a pena a tentativa de fusão entre
o real e a ficção científica, que me parece ser esta a proposta maior do
cineasta. Voltemos então à questão narrativa e os sentidos produzidos por ela. No
filme, a situação social da diferença social e econômica entre ricos e pobres
aparece sob uma lente de aumento em que, os primeiros, depois de contribuírem em
grande parte para o esgotamento ambiental do planeta em que viviam, constroem
para si um mundo encantado fora da Terra onde tudo aquilo que ainda hoje
julgamos impossível é possível. Os da segunda classe social, entretanto,
permanecem por aqui, cada um a seu modo, num território sem ordem ou lei, numa miséria e caos total.
Parece-me que nem mesmo nessa situação teremos aprendido a
fazer a vida por nós mesmos e estaremos ainda – e mais – interessados em alcançar
aquilo que pela lógica está longe de nosso alcance. O valor divino da salvação
e da vida pós-morte está substituído em Elysium
pela única vontade que move todos os que ficaram na Terra: conseguir de uma maneira
ou de outra chegar ao céu, invadir, pilhar, tomar o que para eles é direito
seu. Por outro lado, mesmo nesse território de perfeições que é Elysium os
humanos ainda estarão sendo movidos pela essência do poder, propositalmente
encarnada por uma personagem feminina, numa séria crítica de que nem mesmo elas
– e a história tem servido de prova – terão conseguido manobrar o rumo
eminentemente masculino que vimos tomando desde que a civilização humana assim
se reconheceu.
Talvez a melhor forma de entender Elysium, portanto, é retirar dele essa carcaça inválida de ficção científica
e pensarmos tal como essa metáfora da humanidade na contemporaneidade. O paraíso
extraterrestre não deixa dever em nada às promessas da religião – e não é à toa
a presença de uma freira como espécie de guia do órfão Max; nem aos modelos de paraísos
do luxo e da riqueza do quais somos conhecedores. Fosso, aliás, que está em
qualquer país, mais ainda naqueles que estão entre o limiar do terceiro e do
primeiro mundo, como é caso da África do Sul, de onde vem o diretor Neill
Blomkamp. Além desse disparate entre as classes sociais, uma maneira um tanto ingênua
e simplista de ver as coisas, no meu parco entendimento, porque na conjuntura
em que encontramos o mundo hoje, não estamos mais subordinado a um binarismo e
logo precisamos ser capazes de pensar tudo por outra configuração além desta, o
diretor retoma o ideal marxista da luta de classes e a necessária revolução para
subversão da ordem – não é à toa (repito-me) que a personagem que irá produzir
isso receba a justa alcunha de Max.
No transporte clandestino fornecido por Spider, uma espécie de
coiote do futuro, Blomkamp toca na complexa questão dos movimentos migratórios tão
comuns no entre séculos XX-XXI; quer dizer, embora tenha sido da natureza
humana o nomadismo, os fluxos contemporâneos têm sido motivados em grande parte
pela esperança cega de salvação da própria vida pela via econômica num outro país. Se no passado primitivo era um fenômeno natural, agora passa a ser uma situação política
especulada de maneira diversa pelos países cobiçados. A atuação da corte de
Elysium, entretanto, segue a via comum com que a questão tem sido tratada até então:
fechamento do círculo fronteiriço, seja geograficamente, seja com medidas
legislativas internas, numa tomada de posse capital dos territórios, ferindo,
no mínimo dois princípios básicos universais: a Terra é de todos e todos nós somos
humanos.
Por fim, se esse jogo metafórico elaborado pelo cineasta – e
muito ainda há o que explorar ao longo da narrativa – chegasse a todos os que
virem o filme, já estaria tudo de bom tamanho. O problema é que, se para uns,
rola até certo panfletismo social, para outros (a grande maioria), não estará
diante de outra coisa se não de uma mera produção de ficção científica na qual
um cara entre a vida e a morte faz um pacto com outro em busca de sua salvação e,
na empreitada, acaba por salvar a todos menos a si. Uma leitura correta do
filme indica que não devemos preferir nem um caminho, nem outro: temos é de
olhar para narrativa como se olhasse ao redor de nós mesmos para numa conjugação
entre o real e ficcional encontrarmos o próprio mundo em que vivemos.
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