Desassossego e Salvação
Por Rafael Kafka
ilustração de Joana Imaginário |
Descobri o
verdadeiro da leitura quando estava com 17 anos. Na primeira semana de 2006,
para ser mais específico. Já escrevi em um texto meu chamado de “O Poder da
Leitura” sobre como se deu o começo de meu hábito de leitura: um belo dia,
preocupado em descambar para um ociosidade perigosa demais resolvi ocupar meu
tempo com leitura e escrita. Eu era um jovem sem perspectiva como muitos
oriundos de camadas pobres e moradores de bairros periféricos em nosso país.
Mas, no momento em que consegui ler dez livros em dois meses e fiquei com a
cabeça cheia de ideias, decidi o que queria de minha vida.
No ano
anterior, eu conhecera o rock 'n' roll. Em especial a história do Nirvana me
tocara: começar algo do nada, em garagens e shows para amigos, fazer das
músicas um diário confessional e do som uma transcendência me parecia uma forma
poética de viver. Eu queria algo assim! Todavia, não sabia tocar nenhum
instrumento, nem mesmo desenhar... A leitura surgiu como ocupação de um tempo
muito mal aproveitado desde uns três anos antes, o que me incomodava demais com
crises de tédio apenas dissipadas quando via jogos de futebol. Sim, minha vida
era pobre demais em todos os sentidos.
A leitura
me trouxe alento. Fez-me ir de um livro a outro em pouco tempo. Autores citavam
autores que citavam outros autores e eu comecei a me ocupar inteiramente desses
autores. Nos momentos em que parava de ler, sentia a cabeça fervilhante e
fingindo-me músico passei a escrever poemas toscos os quais seriam musicados em
meus devaneios de 17 anos de idade. Porém, aos poucos, tudo foi ficando mais
denso e os poemas ganharam vida própria. Parei de fingir sonhos acordados e
comecei a viver a realidade concreta com os olhos de um leitor.
Decidi que
não importava o que acontecesse, não importava o que eu escolhesse, seria
escritor. Pois quando eu me sentava em uma rede que havia em casa para escrever
poemas a tarde toda, eu me sentia pleno. Eu me sentia eu. E odiava pensar na
possibilidade de um dia ter que parar de fazer isso por conta de trabalhos e
estudos.
No começo,
a leitura tinha para mim um grande sabor de autodescoberta e entretenimento
profundo. Demorei anos até adquirir com ela um desejo de mudança, de ativismo
até, mesmo que não envolvesse armas ou palavras de ordem. Se no começo eu amava
Henry Miller e Arthur Rimbaud, com seus discursos metafísicos sobre o poeta e
sobre como ele deveria ser ouvido por conta de sua capacidade rara de falar
verdades na forma de literatura, passei depois de um tempo a me aproximar de
autores como Sartre e Saramago os quais mostravam a literatura como algo vivo
nas relações humanas, no ver o mundo.
O
desassossego tomou conta de mim. Ler para mim tem como poesia o fato de que
nunca se lê o bastante, sempre se quer mais. E esse sentimento de sede
incontrolável é o que nos salva, pois a leitura bem feita não se resume a
lugares comuns: ela mostra o horror de existir, o choque de se ter uma vida e
de ver que ela nem sempre é bela. Leitura virou para mim engajamento, na forma
de crítica e de discurso contra aquilo que julgo hipócrita. Leitura virou o
sentido de minha vida.
Nunca mais
consegui ser uma pessoa calma desde então.
Hoje é moda
dizer que se lê. Assim como é moda se rotular nerd. É moda não querer ser só um
corpo bonito na TV ou no Facebook, mesmo que a cada instante todas as
manifestações de ser nos levem a crer que a maioria das pessoas apenas tenha
isso para exibir: o seu corpo. As redes sociais nos mostram seres que a
todo momento querem ser vistos como leitores sedentos, inquietos. Sua forma de
surgir no feed de notícias se baseia basicamente em expor citações de autores
famosos completamente fora de contexto ou expor fotos de si mesmos em trajes
mínimos usando as mesmas citações fora de contexto em um gesto comunicacional
sem a mínima coerência existente entre a imagem exibida e o texto apresentado.
Vejo
pessoas que se gabam de ler demais, mas que possuem argumentos rasos sobre
praticamente tudo. Pessoas que leem muito, em seu mundo da imaginação, que só
falam lugares comuns, isso quando falam algo, pois como supracitado geralmente
elas só repetem o que foi dito por outrem...
Não sou uma
grande autoridade intelectual, nem almejo ser. A menos que isso represente usar
meu conhecimento para fins práticos de mudança social. Todavia, do ponto de
vista simplório de mais um leitor, desconsidero tais seres enquanto leitores no
sentido pleno do termo. Eles não são desassossegados a meu ver. Falta-lhes
algo. Falta-lhes algum sintoma que descreva bem o desejo sedento pela leitura.
Um
professor da Universidade Federal do Pará, Nilo Souza, ex-professor meu no
IFPA, disse em uma mesa redonda de um Simpósio de Literatura Infantil que
percebemos a paixão de uma pessoa por algo ou alguém como sendo algo
contagiante: as palavras possuem uma paixão a mais, um calor a mais, não são
apenas discurso verbal. Sente-se vida nelas. Isso me fez lembrar de uma
conversa tida com uma amiga há muitos anos na qual ela comparava-me a outro
rapaz também bastante leitor, como ele mesmo se intitulava. Ela disse-me que
sentia vida quando eu falava das situações lidas nos livros e me preocupava em
entender o mundo por meio de tais situações e de argumentos ali encontrados.
Sem querer,
esta garota mostrou-me a fórmula para reconhecer um bom leitor: o desejo de
entender o que se passa ao seu redor, a capacidade de sintetizar o discurso
lido e interpretado por ele com a realidade circundante. Muitos dos leitores os
quais vejo em meu feed de notícias e em minha realidade não são desassossegados
pois gostam de ler pelo ato de ler, para mostrar quer gostam de ler. Todavia,
há neles uma grande falta de luta com o livro, de buscar entender como a sua
leitura afeta sua realidade.
Como dito
acima, não sou nenhuma autoridade intelectual. Nem creio nesse tipo de título.
O leitor pode ler-me e me criticar depois. Se ele o fizer, ganhará meu
respeito, pois mostrou-se inquieto e inconformado com o objeto lido e busca
questioná-lo. Mesmo que acabemos em um debate ferrenho sobre minhas posições,
ele terá ao fim da conversa minha estima por não se mostrar apenas como um belo
citador de belas letras.
Neste mês se comemora 91 anos de nascimento de José Saramago. Acho que no ano de 2013 ele
foi o terceiro autor mais citado por mim em textos, sejam eles crônicas,
páginas de diário ou mesmo postagens em Twitter e Facebook. Mas os motivos são
válidos: Saramago cobrava do leitor uma resposta. Não aceitava a arte pela
arte. Gostava de causar uma sensação de tormento no leitor que o levasse a se
questionar sobre os conceitos chaves de sua existência. Ele escrevia para
desassossegar. Em mim ele conseguiu esse objetivo.
O leitor
desassossegado é aquele que sabe que nunca deixará de ser sedento. Mesmo quando
estiver com preguiça para ler, cobrar-se-á uma postura diferente. Irá querer
ler mesmo não querendo ler. Ver sua estante de livros cheias é uma magia
perturbadora. Os títulos de mestre, doutor, pós doutor não bastam para nada,
exceto para melhores oportunidades de emprego e mais chances de ser ouvido em
nossa ordem do discurso.
Saramago
representa bem esse espírito: morreu produzindo. E quando quase morreu em
meados de 2007 ficou mais preocupado em não acabar com o seu livro A Viagem do
Elefante. O leitor desassossegado lamenta ter de morrer, pois é o momento no
qual seus projetos de leitura e escrita morrerão. O leitor desassossegado, como
um herói beat bem representou, viaja pelo mundo para descobrir a realidade. Ele
sabe que desse mundo só levará aquilo que viu, viveu, experienciou. A vida
enquanto ato aberto, enquanto brincadeira, é linda quando o sujeito pode se
engajar consigo mesmo. A leitura mostra isso com plenitude e ser desassossegado
é não se fechar em lugares comuns, mas viver perigosamente esse nada de ser que
somos nós.
Ser
desassossegado é fazer do dandismo de viver uma poesia dotada do sentido que
quisermos.
Não pensem
que descrevo aqui uma essência. Não creio em essências. Creio, porém, em
situações e identidades. O ser desassossegado tem para mim a situação descrita
acima: é um ser ambicioso que tira da existência tudo o que pode e é fascinado
pela arte e pela escrita pela ilusão de realidade concreta que elas dão. O
desassossegado brinca com o choque da efemeridade da existência. Por isso, ele
não busca o púlpito, a idolatria. Quer ser lido após escrever, mas quer ser
lido para depois ser comentado e discutido. Usado como inspiração. O leitor e
escritor desassossegado nunca para, pois parar para ele significa morrer.
Finalizo
este pequeno texto dando parabéns ao leitores desassossegados que sabem que
nunca terão lido o suficiente. Este pensamento tem muito de perturbador e de
salvador também. O ser humano não é uma criatura estanque em seu ser, e ele
começa a morrer quando pensa o contrário: que ele é algo como uma pedra é uma
pedra. O desassossego é salvação por isso. Mudamos demais, nosso desejo está
sempre aceso. Que ele continue aceso, que continuemos a mudar e que sejamos
livres neste mundo caótico de respostas prontas e discursos emprestados.
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