Camus e o jogo aberto da existência
Por Rafael Kafka
Conheci
Camus numa situação bem absurda (algo comum em suas obras): uma ex-namorada
minha resolveu do nada me visitar. Saímos, sentamos num banco de uma praça e
sobre a vida começamos a falar. Perguntei-lhe:
– O
que está a ler?
– Isso
aqui. Não sei se conheces.
Ela
e eu tivéramos uma relação bem complicada, como quase todas as relações
ocorridas em minha vida o que me leva a crer que sou por demais complicado e
altamente talentoso para prejudicar meus relacionamentos... Nessa relação,
procurei sempre incentivá-la demais à leitura sempre indicando livros lidos por
mim. Era uma época que eu estava mergulhado em Henry Miller, Dostoiévski,
Nietzsche e Kafka. Sempre Kafka. Todos esses e mais alguns apresentei a ela, que
me mostrou o livro o qual era seu objeto de leitura atual com um ar meio sem
jeito.
Creio
que tanta influência em seu hábito de leitura ainda a constrangia. Ela era
pouco despolarizada de mim e isso a incomodava. Suspeito de ter sido um dos
motivos de nosso término, pois tal conduta deve ter soado a ela como
manipuladora demais.
O
certo é que eu não conhecia o livro que ela tinha em mãos, e ela se sentiu
visivelmente feliz por isso. Perguntei-lhe sobre o tema da obra e ela me
explicou. Em tempos: o livro era na verdade dois livros em uma mesma edição. Um
era uma peça chamada Estado de Sítio; o outro, um romance de nome O
estrangeiro. Ela fez uma síntese rápida do livro; comparou-me ao personagem
Nada da peça e disse que o livro era de seu atual namorado, que por uma questão
bem lógica em nossa terra de amor, posse e insegurança me odiava, mas que ainda
assim me emprestaria o livro caso eu o quisesse.
Após ler uma síntese da vida e obra de Albert Camus, o autor daquelas duas obras,
decidi aceitar o sacrifício de aceitar um presente temporário de meu antigo e
vencedor rival amoroso e ler sobre um escritor ainda desconhecido para mim,
porém ligado a nomes como Jean-Paul Sartre, pelo qual eu passara a me interessar muito a
partir de então.
Li
os dois livros e os adorei. O tal personagem, o Nada, nem se parecia tanto
comigo. Projetei nele uma imagem de mim a qual projetaria em outros
personagens, como o célebre Doutor House: a imagem de um niilista convicto,
amante da vida em si mesma, dançando na loucura e sendo no desespero. Anos mais
tarde eu entenderia que há no niilismo muito de miserável e de enganoso e que
Camus chegou a criticar tal postura em seu ensaio maior.
Confesso
nada lembrar da peça Estado de Sítio, exceto de seu caráter
alegoricamente político. Todavia, de o O estrangeiro lembro de bastantes
aspectos de sua narrativa, em especial do clima de desespero mudo, silencioso e
sempre presente. Com esse livro, conheci a revolta e o peso da liberdade.
Há
uma música da banda de rock gaúcha Engenheiros do Hawaii chamada "A Revolta dos
Dândis" (ouça aqui). Nunca entendi bem o significado dessa composição, mesmo adorando a sua
mistura de batidas frenéticas a sons de country. Na verdade, nunca entendi
nada. Tudo me soava vago, até por eu ter um preconceito com a sonoridade do
grupo corrigido após conversar com uma conhecida que ama as composições de
Humberto Gessinger e me fez ouvi-lo sem o peso de juízos pré-formados.
Pois
bem, na mesma época na qual estava voltando a ouvir as músicas dessa banda, li O
Homem Revoltado de Camus, cuja resenha pode ser encontrada aqui no blog doLetras in.verso e re.verso feita por mim. Um dos capítulos do livro recebe esse
nome e aborda a revolta cega e inútil dos dândis, seres os quais gostam de usar
gestos e vestuários exuberantes e provocativos. Uma espécie de hipsters do
século XIX. Decidi então ouvir a música dos Engenheiros do Hawaii e percebi uma
série de conexões bem sutis, mas extremamente claras para um ouvido mais atento
e um leitor bem informado.
Eu me
sinto um estrangeiro
Passageiro de algum trem
Que não passa por aqui
Que não passa de ilusão
Passageiro de algum trem
Que não passa por aqui
Que não passa de ilusão
Ao ler a obra citada no
parágrafo anterior e ouvir essa música algumas vezes, revi em minha cabeça
muito do significado da obra de Camus que até então não fora objeto de reflexão
para mim. Principalmente o sentimento de estranheza, essa sensação de não
pertencimento a qual me acomete desde tempos imemoriais. Quando li O
estrangeiro, imaginei-me ali sendo capaz de andar ao sol e matar uma pessoa
simplesmente por me sentir incomodado, de amar uma mulher sem realmente amá-la
e de ver minha mãe morta sem sentir a dor da dor sincera.
Hoje,
relendo os contos da obra O muro de Sartre, sinto em mim como que esse
sentimento de não se reconhecer em ação. Explico: outro dia eu encontrei-me com
uma amiga que não via há muito tempo. Pensava que ao vê-la eu me sentiria
exultante, loucamente feliz. Mas não. Tive uma leve alegria que apenas aumentou
com um beijo dado em seus lábios, mas sem se transformar, contudo, na
felicidade feérica as quais as pessoas tentam me convencer de que sentem a cada
momento de sua vida.
Quando
li O estrangeiro, iniciei um processo de formação intelectual que me
levaria a correr atrás de sensações sinceras. As convenções sociais desse mundo
ao qual pertenço nunca me convenceram demais. Como o Sartre criança de As
palavras, eu me sentia falso no meio de um monte de gente falsa criando
convenções que infestavam até seus ossos de sentimentos programados. Os
discursos românticos seguidos de adultérios frios ou egocentrismos baratos
fizeram-me, em muitos momentos, querer como Mersault ser condenado por um crime
só para rir na cara de meus juízes.
Ia
para as aulas da faculdade, via postagens em redes sociais, via discussões e
tudo me soava falso. Hoje, em um contexto ainda mais efervescente, muitas
coisas têm um alto teor de aparente mentira que me levam muitas vezes a um nível de
paroxismo muito alto. Sinto-me angustiado, em muitos momentos, por não fazer
parte de regras de jogo as quais me soam simples, porém sem força e vida. Eu me
sinto um estrangeiro nesse trem feito de ilusão, pois nunca me contentei em
dizer que vivi algo. Eu quero vivê-lo. Rio da cara de quem diz ler para parecer
descolado e intelectual. Rio de quem se fotografa demais para ganhar muitas
curtidas. E também rio de quem diz se sentir bem com sua vida, mas pede autoaceitação
a cada gesto. Eu rio, contudo me desespero, pois sei de minha vivência intensa
de diversas coisas das quais rio.
Todavia,
livros existenciais como os de Camus me ensinaram algo muito importante: a vida
é um jogo aberto. E se tem algo nesse mundo que eu não gosto, virarei meus
passos em outra direção e tentarei ser feliz em outra estrada.
Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Muito amigos no princípio de tudo, separados por visões de mundo. |
Camus
não se rotulava existencialista. Em alguns locais, achamos declarações suas se
autointitulando “filósofo da existência. Ainda assim é inegável a imensa
similaridade de seus textos com os dos autores existencialistas, principalmente
se levarmos em conta o grande valor dado à liberdade como grande tema de suas
obras. Podemos então dizer que assim como o grupo de intelectuais liderados por
Jean-Paul Sartre, a produção camusiana foi considerada por muitos como uma
literatura pessimista, desesperada.
Em
sua conferência transformada em livro O Existencialismo é um Humanismo, Sartre
retruca tal classificação pejorativa dizendo que o existencialismo na verdade
era um desespero otimista. Afinal, em uma filosofia de vida que prega que
todos somos condenados a ser livres, temos diante de nós, ao mesmo tempo que
uma responsabilidade imensa para com nossa vida, um mar de possibilidades e
motivos intrínsecos a nós para vivermos. Somos livres para dar o sentido de
nossa vida e gozá-la do melhor jeito segundo nossa própria visão.
Lembro
uma situação bem curiosa: eu estava em uma livraria e sentia diante de
mim uma barreira separando-me dos livros nas estantes. Era abril de 2012 e, há
pelo menos um ano, eu me sentia um leitor vazio, sem sentido, sem paixão pelas
palavras que até pouco tempo antes me encantaram. Eu caíra na rotina de redes
sociais e amores vazios, e quando me vi com aquela barreira de nada me separando
dos livros, senti-me profunda tristeza. Comprei dois livros, Leite derramado
de Chico Buarque e a Todos os fogos o fogo de Cortázar, ambos
escritos em uma linguagem de tom realista mágico e fortemente existencial.
Absurda.
Lendo
tais livros, comecei a ver a realidade com outros olhos. Aquele velho
sentimento de estranhamento veio à tona, a náusea se manifestou e eu comecei a
me sentir revigorado. Desde então, leio sempre que possível e escrevo com uma
frequência bem interessante para quem trabalha e faz faculdade. Ver a vida como
um jogo aberto, cobrar uma mudança de postura, sair do buraco no qual estava
imerso meu ser, fez-me ser mais feliz. Eu engajara-me comigo mesmo.
Camus
me ensinou isso. Se a vida se basta a si mesmo, não devemos perder tempo
olhando-a com desamor. Devemos nos revoltar e dar-lhe sentido. Começo a
suspeitar se os seus personagens, como os homens machadianos, não são troças
ambulantes: seres mostrados pelo narrados como criaturas a não serem seguidas.
Mas isso exigiria de mim muitos estudos para ser explicado. Quero agora apenas
me ater agora ao amor à vida existente nas obras de Camus, muitas vezes
disfarçado de perplexidade e tédio existencial.
Mesmo
tendo brigado com Sartre, defensor de uma moral marxista, Camus, como o autor
de O ser e o nada, mostrou-se alguém muito consciente da missão do
escritor de proteger a liberdade humana. Pelo que se sabe de sua biografia,
realmente ele viveu na revolta, gozou ao máximo sua vida. Por conta disso, é
impossível não unir a figura camusiana ao herói Henry de Os mandaris de
Simone de Beauvoir: os dois são jornalistas e aventureiros, amantes da
liberdade, das mulheres e da literatura.
Devo
muito a Camus mesmo tendo reencontrado-o muito tempo depois de ler O
estrangeiro. O absurdo exibido por ele pode ser convertido em poesia. Na
verdade, ele deve ser convertido em poesia. Viver a vida aventurosamente e
respeitar a aventura do outro é a mais básica e profunda lei moral desse mundo.
A qual revolta nenhuma deve anular. Devemos, na falta de sentido de nossas
vidas, quebrar a ilusão da certeza e viver sem motivos, apenas pela graça de
viver.
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