Os papeis literários de Seamus Heaney
Por Frances Clarke
Em novembro de 2011, a Biblioteca Nacional de Portugal adquiriu uma de suas mais importantes doações dos últimos anos – os jornais literários do Prêmio Nobel Seamus Heaney. Os trabalhos, desde então, foram catalogados (tive a sorte de trabalhar nesta coleção) e agora estão acessíveis a pesquisadores do Departamento de Manuscritos. O arquivo como um todo é um recurso maravilhoso, pois abrange a carreira de Heaney de suas contribuições para a oficina de poesia, o Grupo de Belfast na década de 1960, até à sua coleção de poesia Human Chain em 2010. Juntamente com esse material, quase 50 anos de manuscritos de poesia (a partir de vários autógrafos e materiais datilografados) é uma semelhante e extensa coleção de rascunhos, palestras, ensaios, peças de teatro e comentários.
Texto submetido ao jornal do Belfast Group com transcrição datilografada de "Blackberry Picking" |
Enquanto trabalhava no arquivo, eu estava particularmente
interessado numa série de cadernos que apareciam ligados entre si. Esses cadernos
me intrigaram porque neles estão uma gama muito imprevisível e ampla de
assuntos: a mistura de rascunhos de poemas, críticas, entradas ocasionais de
diários, desenhos (muitos deles oferecidos aos filhos) e anotações gerais em
que Heaney reflete sobre suas ideias, preocupações e os progressos de sua
escrita. Em contraste, portanto, com os arquivos de planilhas – que estão muito
bem organizados e raramente contêm quaisquer anotações desconexas. Muitos dos
cadernos estiveram em uso durante largo tempo; às vezes foram postos de lado e
depois foram retomados pelo poeta quando passado longos intervalos e pode neles
conter qualquer elemento significativo para o desenvolvimento de sua vasta
produção literária.
Um caderno iniciado em janeiro de 1966 (imagem acima) reúne uma variedade de projeções de poemas, textos para um programa de rádio, comentários, notas e uma única entrada de diário. Alguns dos poemas aí reunidos foram parar em coletâneas como Door into the dark (1969), Wintering Out (1972), North (1974) e Seeing Things (1991).
Notas manuscritas para "Child Lost" datada de janeiro de 1966 com observações às margens em que Heaney aponta o processo de organização do poeta. |
A única entrada de diário neste caderno relaciona-se com a sua visita a Dingle, Co. Kerry e é datada de 19 de agosto de 1966. Aí está o relato de sua visita ao Gallarus Oratory, que, no dia em questão estava lotado de turistas – “tudo câmeras e altas falas”. As observações finais apontam sua decepção com a visita – “Era o tipo de lugar onde se podia ter sentado sozinho, apenas com a presença do passado. Mas não nesse dia.”
Entrada para o diário de 19 de agosto de 1966. |
No entanto, Gallarus será claramente uma fonte de inspiração
para ele como é evidente a partir de seu poema “In Gallarus Oratory” publicado
na coletânea de 1969.
É possível compreender que Heaney tenha usado seus cadernos
para documentar significativos momentos de sua vida e carreira. Ele registra a
notícia de sua nomeação para o cargo de professor de poesia na Universidade de
Oxford em junho de 1989 num caderno que em grande parte contém rascunhos de
poemas mais tarde recolhidos em Seeing
Things (imagem acima). Mais tarde, em 12 de setembro, e em um caderno
diferente, ele registra seus planos de “fazer uma primeira tentativa de escrita
da sua aula inaugural em Oxford”. Essa declaração de intenções é seguida por
uma análise lúcida e eloquente do processo de escrita, de sua estratégia de
trabalho e traz à tona ideias que seriam discutidas em sua primeira aula como
professor de poesia e depois segue-se um projeto da referida aula em questão
intitulado “The redress of poetry” – fala que ele proferiu no dia 24 de outubro
de 1989.
Entrada para o diário de 12 de setembro de 1989. |
Heaney também usou os cadernos para registra novos ou
desafiadores empreendimentos literários. Um caderno que contém rascunhos da
sequência do poema “Mycenae Lookout” (publicado na antologia The spirit level em 1996), por exemplo,
aparece como uma entrada para de diário no dia 31 de outubro de 1994 no qual
ele descreve a sua intenção sobre o princípio do texto.
Rascunhos com alguns versos para "Mycenae Lookou", escrito em 1994. |
Da mesma maneira, noutro caderno, ele registra os seus
planos para começar a escrever “Station island”, sequência de poemas mais tarde
publicada na coletânea de mesmo nome em 1984. Seu diário de 04 de setembro de
1979, diz “Comecei o que espero ser uma grande empresa, o poema que estive pensando
sobre em Loug Derg, terá uma forma aberta mas vai girar como uma roda.”
A entrada do diário subsequente (16 de novembro de 1980)
registra sua frustração com o seu progresso com o “Loug Derg poem”, que ele
descreve como “um canteiro de obras abandonado em novembro. Frio. Sujo.
Encharcado.” Este caderno também nos fornece evidências de Heaney voltou ao “Station
island” logo em janeiro do ano seguinte e numa nota posterior, datada de 16 de
janeiro de 1981, ele escreve sobre o fato de ter conseguido “alguma coisa” na
sequência.
Notas com planos para a escrita de "Station island" datadas de 16 de janeiro de 1981. |
Por fim, Heaney também se beneficia de seus cadernos para
fazer referências passageiras, mas mesmo assim interessante sobre a vida e a
família, da importância e do valor que ele deposita na amizade. Este tom mais
pessoal é mais evidente na série de cadernos do que em qualquer outro arquivo
do espólio. Uma breve entrada para o diário em 25 de dezembro de 1973, o poeta
descreve as diferentes atividades em família na manhã de Natal.
Entrada para diário de 25 de dezembro de 1973. |
Esse mesmo caderno permaneceu em uso até 1989 e contém também
rascunhos de poemas e ensaios sobre poetas como Philip Larkin, Gerard Manley
Hopkins, Ezra Pound e Yeats, ao lado de uma entrada para o diário em 15 de julho
do ano anterior, Heaney escreve sobre seu retorno aos poemas que tinha escrito
no início de 1975 e o esforço que fizera em torno da poesia.
A importância de suas amizades com outros poetas e
escritores também é evidente a partir de uma análise desse material. Heaney registra
seus pensamentos quando sabe da morte do poeta estadunidense Robert Lowell, em
setembro de 1977, e segue com uma história da última vez em que esteve com
amigo.
Nota em que Heaney recorda a morte de Robert Lowell datada de 13 de setembro de 1977. |
Mais tarde, em novembro de 1980, quando escreve de suas
lutas para concluir “Station island” lembra os efeitos positivos que foi o seu
contato com Ted Hughes e o dramaturgo Thomas Kilroy.
O fato é que esta coleção é um registro
maravilhoso da vida de Seamus Heaney como escritor e um grande feito para a coleção
de documentos irlandeses da Biblioteca Nacional de Portugal, que agora planeja
para já lançar um projeto a fim de trazer esse arquivo para a web.
* Este texto é uma tradução livre para "The Seamus Heaney Literary Papers", publicado inicialmente em Library. Os agradecimentos ao Frances Clarke, arquivista da obra de Heaney na BNPT.
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