O ser professor e o ser livre
Por Rafael Kafka
Logo
quando passei no vestibular, em 2008, assisti ao filme Sociedade dos Poetas
Mortos estrelado por nomes como Robin Williams, Robert Sean Leonard (o doutor
Wilson da série House MD) e Ethan Hawke (o Jesse da trilogia de filmes Antes do
Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia-Noite) filme que me tocou demais
devido à postura do professor John Keating. Ele dava aula de literatura de um
modo diferente, provocador, pregando um carpe diem não inconsequente, no qual
cada indivíduo devia lutar por seus sonhos. O professor, nesse contexto,
torna-se não um dono de saberes, mas um orientador, um instigador.
Apesar
de ser uma forma assaz poética de falar daquilo a que muitos chamam de “nova
pedagogia, o filme tocou-me e até hoje segue me tocando por sua mensagem clara.
Apesar de tê-lo visto uma segunda vez e ter ficado tentado a vê-lo como algo
utópico demais, ainda consigo ver nele um libelo a favor de uma carreira
professoral crítica e libertária. A qual pode causar uma forte resistência de
certas forças.
Mas não
vejo outro modo de ser professor do que ser assim. Minha moral em sala é
libertária. Tento mostrar aos estudantes o prazer de se obter conhecimento para
se olhar a realidade com outro olhar, e por meio desse olhar obter liberdade.
Contudo, mostro aos estudantes que liberdade é uma coisa a qual traz consigo
responsabilidade. Para cada gesto tomado, uma consequência é obtida.
Não
importa muito para mim a idade deles. Apesar de eu me centrar mais em uma faixa
de 12 a 14 anos, também dou aulas para adultos e percebo que a maioria das
pessoas não se sente animada a conhecer o mundo onde vivem. Elas pensam apenas
em passar no vestibular, em algum concurso público, ter um emprego estável e
terem uma vida confortável. O saber delas é extremamente utilitarista, voltado
para fins pragmáticos demais.
Quero
que meus alunos (uso esta palavra inadequada na forma de outra melhor no
momento) sintam prazer pelo ato de saber em si. Pelo ato da descoberta. Vejo
que muitos deles já estão com a cabeça cheia de pensamentos feitos, reificados
dos valores capitalista defendidos pelos pais, muitas vezes preocupados em ver
os filhos tornarem-se engenheiros, médicos, advogados, mas sem condições de
ensinar uma moral sólida aos jovens aprendentes (pronto, achei uma palavra
melhor).
Muitas
das vezes, eu e outros professores nos vemos como pais dos garotos. Precisamos
conversar com eles sobre assuntos que fogem de nossa alçada, como valores
religiosos, sexuais, preconceitos imersos em sua mente. Muitas das vezes,
observo chocado aprendentes tão novos repletos de preconceitos horríveis
voltados para homossexuais, mulheres, negros (mesmo que bastantes deles sejam
negros) e até mesmo a carreira de professor.
Olho em
seus olhares um desdém com o futuro. E uma grande desapreço pelo professor.
Ainda mais aquele que não se contenta em fazer de sua aula uma grande piada.
Quando tento conversar com eles, discutir alguma tema o qual fuja um pouco da
aula de gramática tradicional, sou chamado de chato e falastrão. Assuntos mais
profundos são respondidos com um bocejo ou com um olhar desinteressado o qual
disfarça uma profunda incompreensão do assunto a ser debatido.
Fazer o
que John Keating faz em sua aventura é mais difícil do que parece.
Mas o
que me deixa mais abismado são os discursos demagógicos de professores que
julgam-se capazes de fazer isso. Se um professor assume em um reunião de pais e
mestres uma falha pessoa no processo de ensino/aprendizagem, esse mesmo
professor é bombardeado de críticas por colegas que afirmam serem capazes não
apenas de controlar uma turma barulhenta e desmotivada, mas de passar todo o
saber necessário a essa turma, apesar de todos os problemas pedagógicos a serem
enfrentados.
E esse
mesmo professor ouvirá frases falando de como o profissional da educação deve
se desdobrar, deve se esforçar, para ser um educador por amor, um educador
capaz de tocar no mais íntimo dos aprendentes. Esse mesmo educador ouvirá dos
colegas receosos de perder o emprego que ele tem que se virar para fazer o
estudante aprender, por mais que todos nós saibamos, desde os tempos de
Jean-Paul Sartre e Paulo Freire, que o saber depende da intencionalidade do
estudante e de que em um processo educacional todos os atores envolvidos
(coordenação, professores, aprendentes, pais, tutores e mesmo as amizades) são
responsáveis pelo amor ou desamor quanto ao ensino, e pelo desempenho dos
aprendentes dentro do contexto de aprendizagem.
Mas o
que vemos? Uma classe desunida na opressão, que fala discursos belos sobre ser
professor e que se diz capaz do impossível. Quando não é.
No
filme de Peter Weir, o estudante interpretado por Robert Sean Leonard persegue
seu sonho. Atua em uma peça de Shakespeare brilhantemente, lutando até onde
pode contra o pai. No final, ele é vencido pela opressão e comete suicídio. A
sociedade conservadora de uma escola católica tradicional não aceita pensar que
o erro era seu. E John Keating perde o emprego. Os seus métodos revolucionários
deram liberdade a um jovem, que ao tê-la negada por pais tiranos resolveu ir
embora desse mundo sem sentido. A culpa é de quem nesse processo? Para a
sociedade conservadora que acha-se altamente pensadora, o professor deve ser
extirpado. A angústia da liberdade e o consequente prazer pelo saber devem ser
extirpados. O professor não deve romper a moral de rebanho, caso contrário ele
será visto como um maldito e deve ser cortado do quadro de funcionários.
Imagino
alguns colegas vendo tal filme. Provavelmente eles crucificariam Keating,
diriam que ele era um louco, instigador de ideias rebeldes. Deveria ter se
conformado em ver seus estudantes preparando-se para se enfornarem em um modelo
confortável de vida capitalista, sem terror, nem tremor; sem questionamento
algum.
Tais
pessoas não entendem o que é ser professor para seres inquietos como Keating e
eu. Não usamos de datashows, nem de didáticas as quais são vistas como
revolucionárias. Apenas mostramos em nossas aulas como o mundo é, e como ele
exigirá dos seus estudantes um bom uso de sua liberdade. Queremos ver nossos
estudantes felizes, não importa se como médicos ou como cantores de alguma
banda de rock. Não queremos ver nossos estudantes presas de uma forma de pensar
mecanizada, seja uma visão religiosamente dogmática, seja um estilo de vida
plenamente yuppie. Queremos ver nossos estudantes espantados com a existência,
descobrindo-a cada dia, pelo saber adquirido em sala de aula e pela leitura de
mundo.
Não
queremos ver nossos estudantes como leitores por status. Queremos deles que
sejam poetas mortos, poetas de sua própria existência. Tomando rédeas de suas
vidas, responsáveis por si mesmos, aprendentes autônomos, empolgados pelo
saber, criadores de uma verdade pessoal.
Os
melhores professores que conheci não usavam coisas mirabolantes em sala. Eles se
empenhavam. Davam aulas passando paixão, mostrando como o saber dominado por
eles era importante para suas vidas e como queriam que seus estudantes, no
ofício escolhido, tivessem a mesma paixão tida por aqueles educadores. Tais
professores, com seu espírito crítico, mostraram-me que o mais importante não
era dar um show em aula, mas fazer com que essa aula virasse algo a me
desequilibrar, a me fazer querer ler mais, ser mais, viver mais.
Keating
foi uma síntese desses professores em minha vida. Uma síntese poética cuja
força, no entanto, perdura até os dias de hoje. Inspirado por Keating tento
fazer de minhas aulas uma força que torne meus estudantes inquietos, sem ideias
preconcebidas, com desejo de lerem mais e verem mais desse mundo, para quiçá
mudá-lo.
Foi
essa ideia a que me manteve até hoje em sala de aula, mesmo com tanta coisa
nojenta sendo vista e sendo presenciada. E é com essa ideia que espero me
manter vivo nessa carreira até quando meus ossos e minha mente aguentarem.
Quanto aos demagogos de plantão, espero que fiquem longe de mim. Pois a magia
que eles dizem ver e viver dentro de nossa área é mentira. Nunca acreditarei em
seres ignorantes, não-leitores, incapazes de discussões longas ou mesmo de uma
piada inteligente que se dizem capazes de dar aula com amor e intelectualidade.
Tais
seres são mentiras mal contadas e infestam tão belo ofício quanto o de ser
professor.
Apesar
disso sinto-me orgulhoso dessa profissão. Vejo-a como base de nossa sociedade,
e por ser tão mal cuidada explicamos o fato de sermos uma nação sem fundamento
ideológico sólido algum. Não quis dizer aqui o que é ser professor. Quis apenas
dizer o que é isso para mim e o porquê de me manter nessa carreira, mesmo
sentindo muita mágoa do quanto somos escorraçados. Ainda mais, quando tentamos
passar aos estudantes que a vida é muito maior do que passar no vestibular ou
em um concurso público. Quando tentamos dizer que a vida é prazer pelo
conhecimento, por uma vida de olhos bem abertos.
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