Felizmente há luar!, de Luís de Sttau Monteiro
Por Pedro Belo Clara
Se
em anteriores ocasiões trouxe até ao caríssimo leitor obras em poesia e em
prosa assinadas pelas mais hábeis mãos que o mundo literário português
conheceu, é justo que o campo seja agora extrapolado e, tornando-o mais
abrangente e completo, atinja outros géneros igualmente inestimáveis. Neste
caso, o do teatro.
Felizmente
há luar é a mais famosa obra de um dos mais famigerados dramaturgos
portugueses: Luís de Sttau Monteiro. Filho de um embaixador português em
Londres, o autor deambulou por campos tão variados como o direito, o
jornalismo, a ficção, o teatro e até o automobilismo (!).
A sua incursão pelos caminhos da prosa, que
mereceu a sua inicial prioridade, revelou-se curta: cinco livros, apenas, entre
1960 e 1965. Seria, assim, no papel de dramaturgo que Sttau Monteiro
definitivamente se consagraria no panorama artístico português. Para tal, muito
contribuiu o sucesso da peça que hoje aqui trago a análise. Graças a ela, Sttau
Monteiro foi, no princípio dos anos sessenta do passado século, laureado com o
Grande Prémio do Teatro – outorgado pela Associação Portuguesa de Escritores.
Publicada
em 1961, a obra só conheceria a sua estreia em cena depois da revolução que
colocaria um fim ao regime fascista que operou em Portugal de 1933 a 1974. A
primeira encenação, de facto, ocorrera em 1969, em Paris; mas somente em 1978 é
que o povo português pôde, efectivamente, vê-la com os seus próprios olhos. Por
ter sido proibida pela censura do regime em vigor, de pronto se deduz o
carácter revolucionário da mesma. Na verdade, o seu sucesso terá, por certo,
encontrado um sólido pilar nessa vincada vertente contestatária.
Apesar
de o tempo histórico da obra ser o ano de 1817, esta encerra uma actualidade
impressionante. Até quando comparada com os dias correntes, ainda que numa
escala menor. Sttau Monteiro revelou uma inteligência extraordinária na
abordagem da obra, bem como na criação dos moldes que a constroem. E isto
porque no tempo histórico, em pleno século XIX, Portugal atravessava um período
de ocupação inglesa.
Para melhor compreensão do tempo em análise, e
da forma como esse se irá relacionar com o tempo da escrita (1961, como
sabemos), importa recordar alguns factos históricos relevantes. Sob ameaças de invasão
por parte do imperador francês Napoleão Bonaparte, a corte portuguesa refugia-se
no Brasil. O país, entregue a uma regência, enfrentou três invasões de três
generais de Napoleão, sendo todas elas amplamente rechaçadas pelas milícias
populares, pelo exército remanescente e pelas tropas inglesas. Na verdade,
Portugal entrara em guerra com França para não manchar a sua longa história de
boas relações com Inglaterra. A origem do “pacto de amizade” entre as duas
nações perde-se no tempo. Mas, graças a ele, Portugal desobedecera a uma
imposição do imperador francês (que tentava desesperadamente invadir a
Inglaterra) e, como consequência, foi obrigado a resistir a três (infrutíferas)
invasões. Contudo, quando a guerra terminou, a corte optou por continuar no
Brasil. Já os ingleses, teimosamente não abdicavam de permanecer em Portugal.
Os tempos revelavam-se duros e injustos. Afinal, um aliado de outrora tornara-se
um novo inimigo. Como se tal não constituísse já uma considerável calúnia,
Portugal era governado como se de uma mera colónia inglesa se tratasse! Os
rumores revolucionários foram fermentando até eclodirem numa revolta há muito
ansiada. Consequentemente, dar-se-ia a expulsão do opressor. Pouco tempo
depois, o país mergulharia numa Guerra Civil entre absolutistas e liberalistas
– cabendo a vitória a estes últimos, liderados por D. Pedro IV de Portugal, o
primeiro imperador do Brasil.
Sttau Monteiro, assim, com uma sublime mestria
(ou não estivéssemos a falar de um dos maiores nomes do teatro português),
reevoca os tempos de ocupação britânica e deles elabora uma hábil metáfora para
o período ditatorial que na década de sessenta Portugal atravessava. Ambas as
épocas se distinguiram pela sua repressão, pobreza, insatisfação e denúncias
constantes, onde o próprio povo, somente para cair nas boas graças dos
opressores, aceitava denunciar o seu semelhante. Renúncia e podridão… Que mais
se poderá acrescentar?
A personagem central da obra, a raiz da
esperança dos populares e de todos os que anseiam pela partida dos ingleses, é
o General Gomes Freire de Andrade (1757-1817), aquele que "está sempre
presente", ainda que "nunca apareça". Destacam-se ainda os delatores (Vicente,
o demagogo; Morais Sarmento e Corvo) e as falanges do governo do Reino (D.
Miguel Forjaz, o general inglês Beresford e Principal Sousa) em constante
posição antagónica em relação aos «amigos do general» Gomes Freire de Andrade
(a intrépida Matilde, Sousa Falcão e o próprio povo – de onde se destaca
Manuel, "o mais consciente dos populares"). Por aqui se compreende a essência
dramática que perfuma a obra de forma constante e intensa. Embora não esteja
propriamente em cena, reflecte-se nas narrações e nos comportamentos dos
personagens intervenientes.
A bem da verdade, toda a obra retrata a tentativa
frustrada de revolução que naquele ano teve lugar, ainda que a acção da mesma
ocorra em apenas dois dias. O general de quem todos falam, aos olhos do povo
tido cada vez mais como o seu salvador, é acusado de traição, perseguido e finalmente
morto por enforcamento no forte de S. Julião da Barra, perto de Lisboa
(juntamente com mais onze supostos colaboradores). Contudo, o seu envolvimento
numa conspiração contra os regentes da época nunca seria confirmado. Ainda
assim, bastaram os rumores certos para por fim à vida de um provável inocente.
A obra termina nesse exacto momento, numa
espécie de êxtase final onde a epígrafe da mesma se justifica e dois sentidos,
necessariamente opostos, se retiram. D. Miguel, membro da regência, exclama "felizmente há luar!", na noite da execução do general, por forma a manifestar
o seu mais íntimo desejo como membro de um governo de opressão. Justa ou não, a
condenação do salvador do povo, pelo menos em teoria, serviria de exemplo para
todos aqueles que tentassem semelhante bravura. Seria, assim, uma clara
afirmação da arrogante força e do repressivo poder da regência da época, em
nada diferente do regime fascista do século XX – tão capaz em eliminar o mínimo
foco ou eco de revolta.
Ao invés, Matilde recorre às mesmíssimas
palavras somente para lhes conferir um significado completamente oposto. "Felizmente há luar!" para que o povo inteiro veja as injustas medidas que o
regime em vigor assume sem escrúpulos ou pudores. Dessa forma, a boa mulher
incita à revolta e dos sucedidos daquela fatídica noite constrói os motivos
para um novo e mais que justificável motim popular.
Após o enforcamento, uma grande fogueira é
ateada. E é com esta imagem que a obra irá definitivamente encerrar, carregada
de um simbolismo impossível de ser ignorado. O fogo surge assim ligado ao
sagrado como um elemento purificador que apenas irá sublinhar e,
posteriormente, engrandecer o movimento da luta pela liberdade, coroando-a em
glória plena. Pois, ao remeter à fogueira os restantes conspiradores,
supostamente liderados pelo referido general, vinca-se a intenção de deixar
exposta a necessidade de queimar um passado apenas para que algo de novo possa
renascer. E desse acto, onde a regência suporia demonstrar toda a sua força
opressiva, somente singrará a insatisfação e o incremento do combate por um
regime novo, justo e efectivamente a favor do bem popular. Afinal, como tão bem
é definido, "aquela fogueira há-de incendiar a terra", e fazer daquela contenda
em específico um exemplo para todos os que combatem em prol de uma sociedade
mais humana e equitativa, independentemente da época ou do local em que tal
necessidade surja.
Em 1820, colocando um fim à (longa) ocupação
inglesa no território português, dar-se-ia na cidade do Porto, e posteriormente
em Lisboa, um movimento inspirado nos ideais franceses que culminaria na famosa
Revolução Liberal. Muito mais tarde, em 1974, a Revolução dos Cravos deporia o
governo fascista contra o qual Sttau Monteiro havia lutado. A obra, assim, mais
do que glorificar vitórias, reafirma a necessidade de cada cidadão lutar por
algo de novo e de melhor em seu país, o que somente a torna numa indispensável
ferramenta de inspiração a todo aquele que se pauta por ideais superiores,
relembrando os perigos da resignação e a crucial importância da activa
participação do indivíduo nos destinos de sua nação.
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog preservamos o grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A Jornada da Loucura (2010), Nova Era (2011) e Palavras de Luz (2012) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados nos blogues pessoais do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas) e O Manifesto (artigos políticos).
Comentários