Ezra Pound, entre os cantos e o ABC da literatura



O livro ABC da Literatura é (ou ao menos deve ser) um dos principais da bibliografia de um estudante de literatura; e deve ser, por isso, um dos textos mais conhecidos do poeta (ao menos no Brasil) – termo este que soará meio que surpresa aos ouvidos de quem não tiver ido mais adiante saber sobre a vida de Pound, Ezra Pound. Mas, se levado por um pouco de curiosidade, o leitor saberá que Ezra é uma das figuras mais controversas do cenário literário do último século e também um dos nomes que mais contribuíram para a constituição da poesia moderna. Numa das introduções redigidas para o seu livro de ensaios literários, T. S. Eliot elege Pound como “o responsável maior pela revolução na poesia do século XX”, “mais que qualquer outro nome”, enfatiza. Posição que virá ser endossada por outros importantes nomes.

Suas inovações técnicas e uso de matérias não convencionais, as discussões (muita delas polêmicas) sobre estética e política, dá ao homem Ezra a construção de uma figura típica de seu tempo – caleidoscópica. Uma visita ao seu lado biográfico acusa que desde jovem Pound buscou saber mais sobre poesia que sobre qualquer outra coisa, mas não nunca terá se tornado um "afastado do mundo". E talvez por isso tenha feito de sua pose no mundo da literatura, um lugar complexo, heterodoxo, não convencional. Entre 1908 e 1920 se estabeleceu em Londres, território onde construiu uma sólida reputação como membro da vanguarda literária e defensor tenaz do rumo a que as artes estavam tomando como o da constituição da modernidade. Demonstrou isso entre a crítica e nomes que escolheu para ser tradutor.

A maior prova, entretanto, talvez tenha vido de seus Cantos, obra de uma vida inteira e ainda assim inacabada; os Cantos são uma verve de tradições em diálogo, indo desde a Grécia Antiga, passando pelo Oriente e o continente europeu, até a América. Bernstein observa que Pound “procurou, muito antes da noção que se tornou moda, romper com a tradição ocidental do etnocentrismo”. “Globalizou o fato poético”.
 
Ezra Pound, John Quinn, Ford Madox Ford e James Joyce em Paris, 1923

Outra função desempenhada com importância, além do esforço de ressignificação estética da poesia inglesa (depois, da poesia como  um todo) terá sido o apoio incondicional que Pound deu a outros escritores, que, sem sua mão talvez não tivessem galgado o espaço que hoje construíram no panteão dos grandes nomes. Nomes como James Joyce, Robert Frost e o próprio T. S. Eliot tiveram do poeta não apenas uma inspiração criativa e estética, mas um incentivador de sua literatura. Para David Perkins “o mínimo que se pode afirmar de sua poesia é que há mais de 50 anos, ele foi um dos três ou quatro melhores poetas que escreviam em inglês e sua realização com a poesia era tripla: como poeta, como crítico e como um amigo voluntário no desenvolvimento do gênio alheio.”

Esse esforço de promoção de outros nomes era proposital e reconhecido pelo próprio autor dos Cantos; numa carta datada de 1915 a Harriet Monroe, Pound descreve que seu esforço visava manter vivo um certo grupo de poetas que avançam para definir rumos e continuidades na arte. Tradição que ele mesmo parece ter inaugurado quando imprimiu em 1908 por conta própria cem exemplares de seu primeiro título A lume spento – edição que já em maio do ano seguinte aparece na antologia Book news monthly (organizada pelo próprio Pound) e a qual recebeu a crítica de William Carlos Williams, amigo de faculdade e também poeta, que ao ter o livro em mãos quis saber de Pound o porquê de tanta amargura naqueles poemas. Bem tardiamente, Pound respondia-lhe, com um texto que figurava também como uma pergunta indireta a Williams sobre o que ele achava do tom das peças de Shakespeare, por exemplo.

Fora essa troca de correspondências o primeiro título de Pound não surtiu efeito entre a crítica especializada. O poeta terá de esperar a publicação de outros títulos, como o seguinte – A quinzaine for thes Yule, Exultations and Personae – que recebeu comentários favoráveis em alguns periódicos. Uma delas evocava a personalidade do jovem poeta; Pound era “aquela coisa rara entre os poetas modernos, um estudioso”; “tem a capacidade de notável realização poética”; “não podemos ter dúvidas quanto à sua vitalidade e sobre sua determinação”; Pound tem “originalidade e imaginação”.

Estudioso, sim. Além de o ABC da literatura, o primeiro trabalho cujo interesse estava no “estudo” literário – O espírito do romance, se mostrava como uma tentativa de compreender “certas forças, elementos ou qualidades patentes na literatura medieval e que são ainda, creio eu, patentes em nosso próprio tempo”. Nota-se que não apenas o poeta com sua mixagem entre culturas e tradições, também o estudioso formava-se por uma das vertentes mais frutíferas da literatura: a do embate entre tradição e modernidade. Pound foi leitor crítico e atento de Dante, Cavalcanti e Villon e a partir de suas leituras produziu notas e artigos críticos para diversos periódicos, espaços responsáveis por sua formação intelectual e onde forjou seus princípios estéticos, oferecendo-se não apenas como intermediário entre um tempo e outro da literatura, mas pistas dos elementos com os quais iria construindo seu trabalho literário. T. S. Eliot, no texto já aqui mencionado, observa: “É necessário ler a poesia de Pound para entender sua crítica, e ler sua crítica para entender sua poesia”.

A necessidade de formação desse grupo responsável por levar adiante a arte deu mostras por volta de 1912 quando Pound participou na criação de um movimento por ele batizado de “Imagisme”. O movimento foi curto, mas responsável por “abrir” novas direções para a literatura: o movimento combinaria a criação de um complexo intelectual e emocional de uma determinada fração de tempo, ou seria uma “metáfora interpretativa” com requisitos próprios e sérios de escrita literária – critérios que aparecem definidos num texto intitulado “A retrospect” publicado em Literaruy essays. Do grupo fizeram parte, além de Pound, Hilda Doolittle, Richard Aldington, F. S. Flint e William Carlos Williams. Anos mais tarde a poeta estadunidense Amy Lowell adotou o termo do grupo para uma antologia editada pelo próprio Pound.

O grupo será transformado logo depois dessa antologia em “Vorticist”, responsável por uma das obras mais quistas pela crítica de então: Cathay – publicado em 1915: “o melhor trabalho que ele já fez”; poemas de uma “beleza suprema” que revelam “o poder de Pound em expressar a emoção e manter-se intacto.” A antologia era tradução de poetas chineses e não viveu só de críticas positivas; outros periódicos chegaram acusar Pound por “imprecisão nas traduções” ou ainda que Cathay era mais “uma interpretação que uma tradução”, “poemas parafraseados”.   

Mas, a obra que colocou Pound, definitivamente, entre os grandes da literatura universal, é a já referida acima, Cantos – publicada em partes a um só tempo em Londres e em Paris, dezembro de 1920. Obra ambiciosa, tanto que, o que a nós chegou, é um apenas o princípio dela; em 1917, numa carta escrita a James Joyce, Pound já relatava sobre o poema: “comecei um poema sem fim, e sem categoria conhecida, um misto de tudo sobre tudo.” No mesmo ano aparecem os três primeiros cantos publicados no periódico Poetry; em 1919, o “Quarto canto”; em 1921 apareceu os cantos cinco, seis e sete; no ano seguinte, em edições limitadas, aparece “Oitavo canto”. Em 1925, A draft of XVI. Cantos – uma edição com noventa exemplares publicada em Paris; seguida de A draft of XXX Cantos, cinco anos mais tarde. Depois disso, os leitores ficarão pelo menos três anos sem que se publique mais nada dessa sequência, até que em 1933, o livro reapareça.

O projeto de uma vida teria 120 cantos e, mesmo incompleta, figura entre uma das mais importantes criações do gênio humano. A grandiosidade do texto não está apenas na extensão, mas na forma como ele foi sendo concebido, como se a poesia pudesse fundir-se ao folhetim tradicional ou fosse mesmo um extenso e infinito diálogo; sem falar, no trabalho estilístico forjado pelo poeta, beneficiando-se ora de uma sintaxe fragmentada extraída da oralidade ora do diálogo  com grandes textos da literatura universal, numa mixagem entre tempos, espaços e fatos diversos, guiando-se por um voz atemporal e despersonalizada.

Ezra Pound e sua mãe em 1898.

Nascido nos Estados Unidos e depois de viajar por parte da Europa - Espanha, França, Itália e Inglaterra - o retorno ao país de origem para recepção do Prêmio de poesia oferecido pela Universidade de Yale foi feito sob grandes críticas, entre elas, a de traidor da pátria e fascista. No correr da Primeira Guerra, Pound publicou vários textos sobre economia nos quais defendeu abertamente algumas medidas do fascismo e chegou a produzir declarações variadas vezes em rádios italianas durante a o conflito seguinte reforçando sua posição antidemocrática. O próprio retorno aos Estados Unidos deu-se depois de sua prisão em 1945.

Nos Estados Unidos foi considerado incapaz mentalmente, numa estratégia (dizem) de não ir para prisão. Permaneceu internado durante 13 anos no hospital psiquiátrico em Washington; depois de retirada a acusação de traição à pátria, Pound retornou a Itália. O projeto dos Cantos sobreviveu durante todo esse período conturbado até sua morte em 1972.

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>>> No nosso Tumblr um recorte com imagens, manuscritos e datiloscritos do poeta.


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