Crônica de um leitor de "O jogo da amarelinha" (6)

Por Juan Cruz Ruíz

Julio Cortázar. Foto de Antonio Gálvez.

Para um leitor de O jogo da amarelinha encontrar-se com o autor supomos agora (e em qualquer tempo) é um acontecimento maior da vida. E me encontrei com ele em Amsterdã, durante a minha primeira viagem a Europa, acompanhado por um grande amigo meu, arquiteto e fotógrafo, Carlos A. Schwartz, que segue ainda exercendo hoje os dois ofícios.

Era 1972 e embora vivêssemos como se a vida seguisse nos livros, nas Canárias esse livro, igual a Três tigres tristes, de Guillermo Cabrera Infante, havia causado um impacto muito especial. Havia amigos que sabiam capítulos de cor de ambos os romances, e não apenas o famoso capítulo 7 de O jogo da amarelinha. Os mais ousados dentre nós chamava Cortázar de Julito e Guillermito o Cabrera Infante, mas nunca soubemos deles mais o que sabíamos por seus livros. Mas era enorme a familiaridade. Nem Carlos nem eu conhecíamos Cabrera e de quem logo nos  tornamos muito amigos, igual sermos amigos hoje de Miriam Gómez, sua viúva.

Então havia poucas fotografias, mas sim, havíamos visto Cortázar, em corpo, numa de suas fotografias charmosas feitas por Antonio Gálvez e que com frequência chegavam até nós pelas mãos José-Miguel Ullán para a ilustração de suas excelentes crônicas sobre cultura enviadas desde Paris para as páginas literárias de meu primeiro periódico, El Día de Tenerife. Assim, eu e Carlos, que é tão alto como foi Julio Cortázar, o conhecíamos perfeitamente, que ele também havia lido O jogo da amarelinha. Por isso, não foi estranho ele o reconhecer de imediato enquanto caminhava por uma praça da charmosa cidade holandesa. Disse para mim:

– Juan, Cortázar.

Aproximamo-nos, o fotógrafo Schwartz e o jornalista Cruz. Era muito alto, muito delicado, magro, sardento, muito formal; estava com uma jaqueta de retalhos curtos, e seus ombros pareciam sair das costuras, pois essa magreza aceitava com dificuldade esses tecidos. Demos um aperto de mãos enquanto nos apresentávamos. Quando lhe disse meu nome me disse algo que teve depois de explicar-me. Como me disse Martín Fierro tinha um amigo que se chamava Sargento Cruz, de piada, que sempre recordaria meu sobrenome. Como não captei a piada ele me explicou essa ocasião e já não posso esquecer o poema de José Hernández sempre que me recordo de Cortázar.

Esse encontro duraria um quarto de hora, ou dez minutos; com a avidez que então eu abordava qualquer encontro, essa rememoração ocupou muitas colunas em meu periódico. Com razão, me disse Cortázar, quando recebeu em sua casa esse material comemorativo de nosso encontro em Amsterdã, que eu era um tipo francamente exagerado. Logo, em París, tratei de encontrá-lo por telefone, e eu o achei, foi quando me falou de minha exagerada crônica do breve encontro. Mas esse encontro telefônico tem muito de cortaziano; como se produzido entre testemunhas me atrevo a contá-lo sem que pareça fantasia.

Eu tinha apenas o número de sua rua, mas não o do seu telefone. E seu nome não estava na lista telefônica. Quando descobri isso tomei a decisão de ligar para cada um dos assinantes. Comecei pela metade da lista; era um tal Dupont, médico interno de hospital. Parece mentira, mas esse número era com efeito o que correspondia ao domicílio de Julio Cortázar. Falamos um tempo que essa coincidência era possível de ser transposta para o terreno da realidade em que se passava uma de suas narrativas: tudo era possível, e a fantasia é mais tangível que a realidade.

Ainda o vi outras vezes. Em Madri, quase já no fim de sua vida. Quando soube de sua morte como se o mundo houvesse fechado uma porta. Agora que rememora aqui seu livro mais importante sei que não estou falando de alguém cuja obra foi apenas sua escritura. Respirou, dançou, cantou O jogo da amarelinha para que nós respirássemos, dançássemos, cantássemos com esse livro. Para celebrá-lo venho escrevendo estas crônicas. A muitos nos mudou a maneira de saudar a literatura. E a vida. 


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