Crônica de um leitor de "O jogo da amarelinha" (5)
Por Juan Cruz Ruíz
Primeiro li Três
tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante. Foi depois de uma prova de
História da Filosofia, na Universidade de La Laguna. O professor Emilio Lhedó,
que então tinha 39 anos, era para nós Don Emilio, e assim seguiu sendo para
muitos, entre outros para mim. Já então era um homem com uma enorme autoridade
moral entre nós; ensinava Filosofia e História, e não apenas História da
Filosofia, e nos despertou um enorme interesse pela leitura. Tudo podia estar
nos livros, e ele falava desde os livros para explicar tudo; ou melhor, desde
as palavras. A palavra era a essência e na palavra estava o ritmo, a alma das
coisas, dos acontecimentos e das pessoas. Naquele momento ele acabava de
ponderar um atrevimento, pois não pedido um ensaio, qualquer ensaio, que
tivesse com sustentação nosso conhecimento das palavras, e eu lhe havia feito
um trabalho sobre o movimento pânico que então agitava (essa é uma boa palavra,
agitava) Fernando Arrabal em Paris. Quando deixei a aula e tomei o ônibus que
me levada a minha comunidade ia com sono suficiente para o sonho e para o sonho
da literatura. Como então os ônibus paravam muito, esta me deixou em La Orotava,
no norte da ilha, a uns quilômetros do Porto da Cruz, meu povoado. E paramos
justamente diante de uma livraria em cuja estante mais visível vi aquela frente
mítica do livro mais famoso de Guillermo Cabrera Infante. Quando cheguei em
casa comecei a ler, e não acabei até que veio as luzes do dia seguinte. Foi uma
descoberta extraordinária, um gozo. Uma leitura voraz que fazia imprescindível cada
palavra, cada ritmo e cada substância do humor do cubano. Inesquecível, e já inesquecível
para sempre.
O jogo da amarelinha
veio imediatamente depois, e foi uma leitura muito distinta, mais pausada, mas
obrigatoriamente e mais agradavelmente pausada; como se esse livro de Cortázar
sujeitasse-me à respiração embaixo d’água, li O jogo da amarelinha contendo a respiração, modulando-a, como se o estivesse
lendo por dentro. Comprei assim que li a resenha de Rafael Conte em Informaciones; Lledó era nosso guru na
Universidade, Conte era nosso guru literário na mídia. Lledó nos levou às
palavras, Conte nos levada aos romances. Já contei o que passou quando comecei
a ler o livro de Cortázar. Disse à dona Antonia, a senhora que cuidava dos
quartos do Colégio Superior San Fernando, que não tocasse no meu enquanto estivesse
lendo esse livro; era já um fetiche, um objeto que respirava por conta própria,
desde a amarelinha da coberta aos capítulos dispensáveis, passando pelos mais
famosos capítulos, pelos diálogos loucos, pela melancolia sem disfarce ou pelo naufrágio
verdadeiro das almas que não têm outra salvação que o sonho.
Já era O jogo da
amarelinha, pois, mais que um livro, era o descobrimento de minha própria
alma em estrias ou caminhos que eu mesmo desconhecida e que desconheceria para
sempre mas que seguiriam espancando-me, e batem ainda, como o princípio
indeterminado de uma vida que foi feita lendo e esperando. Lendo livros ou
imaginando-os, esperando ainda não sei o que, embora em O jogo da amarelinha, como em Três
tristes tigres, como nas aulas de Don Emilio Lledó, acreditei ver vias
pelas quais devo ir caminhado. E por elas vou caminhando ainda, num mundo de
adultos que às vezes são incapazes de fazer rir ou pensar ou viver desejando
que o outro também seja feliz. O jogo da
amarelinha, o livro. Aquela edição se perdeu pelo caminho, diante de mim,
neste escritório, há uma edição parecida, mas não é aquela. Respira igual, me
parece, e é o livro que li para seguir lendo.
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