Por Pedro Belo Clara
Recordar-se-á o leitor, por certo, das duas obras
deste talentosíssimo poeta que neste mesmo espaço trouxe a discussão, meses
atrás (veja o texto aqui). Porquê, então, retomar a temática de Eugénio? A
verdade é que todo o poeta que consegue, através de sua obra, atingir níveis de
profundidade e magnificência é necessariamente um poeta do sublime. Um mestre,
em suma. E os trabalhos de tais autores, não sendo necessariamente exclusivos,
são quase sempre detentores de uma notável diversidade. Poder-se-á cantar o
amor; mas que seja, então, no auge do mais excelso dos líricos cantos!
Poder-se-á cantar a dor, apenas; mas será com a mais pungente voz que a alma do
poeta a cantará. Outros, apenas, de tão abrangentes, lançam os braços em redor
do mundo e abraçam-no na sua máxima plenitude.
Eugénio é um desses casos. Embora a maior parte da
sua obra se paute pela temática lírica, oscilando entre a melancolia e a plena
alegria, polvilhando como ninguém, por sobre a mesma, desejos de eternidade,
receios de efemeridade e, acima de tudo, intenções em saborear cada momento que
se extingue, o interesse que esta obra em particular encerra reside na
diferença que ela ostenta. Não se afirma como uma ruptura, pois Eugénio nunca
deixará de ser Eugénio, mas de um explorar de campos até então ocultos. Por
ser, ainda assim, uma parte do ser poético do autor, merece toda a atenção e
justifica a nossa natural curiosidade.
Se ao pensar em Eugénio evocamos, normalmente, o
mar, as areias, os lábios frescos de perfume, a luz dos dias e outros motivos
plenos de beleza e de mestria em sua construção, em As palavras interditas a sua poesia assume, como antes referi, um
novo carácter. O impacto primeiro e mais imediato reside nos poemas,
notoriamente mais longos e, de certa forma, mais densos. Não que Eugénio tenha
abdicado, neste obra editada em 1951, da sua habitual depuração poética; apenas
o tempo que canta justifica, por ser visto e sentido como algo de enegrecido, a
dita densidade. Como tal, a luminosidade que é seu apanágio esmaece, cedendo
parte do seu lugar à escuridão reinante.
A obra inicia-se com um breve texto em prosa, ao
qual o poeta concedeu a epígrafe de “Primeiramente”. Nele, explana o motivo de
uma busca que fluidamente se irá diluir ao longo da obra. O seu “amor de uma
breve madrugada de bandeiras” não se encontra mais junto a si, e desse facto o
poeta formula a sua busca (“porque os meus olhos partiram nos teus”). Que, no fundo,
acaba por ser inevitável: é um íntimo apelo, uma fome de razão. Vejamos: “que
posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face
ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu”. O tema do amor, agora
perfeitamente definido para a obra e lançado no começo da mesma, em jeito de
preâmbulo, unir-se-á ao negrume dos tempos e da cidade por onde o poeta
deambulará e o seu canto – ora solto, ora contido – ecoará.
Se pensarmos na data em que o livro foi publicado,
certamente se compreenderá a razão de todas estas primeiras características.
Afinal, o país estava imerso em pleno clima ditatorial. Era o tempo da
renúncia, da podridão, dos assombros e dos temores. Se por um lado era «preciso
partir», pois a vida da época era como uma corrente morta, por outro era
«preciso ficar», por forma a construir e edificar o ansiado grito de revolta.
Tudo é dor e desolação aos olhos do poeta; e os Homens, receptáculos da
esperança num amanhecer mais límpido, ainda só têm para dar “um horizonte de
cidades bombardeadas” (“As palavras interditas”). Por isso, o título desta obra
assume um duplo sentido: as “palavras interditas” pelo regime fascista em vigor
(censura, claro está) são igualmente as palavras que o poeta ao seu amor não
pode dirigir. Um misto de intimismo e de proibição, portanto.
Contudo, o livro não assume um carácter político.
Pelo menos, não o faz de forma directa e clara. Mas revela a sua maior
valência: o triunfo do amor em tempos de decadência. Note-se que, logo no poema
supracitado, o véu se revela: “Amo-te… E entram pela janela / as primeiras luzes
das colinas”. Eis o efeito transmutador e catalizador do próprio amor, sentido,
vivido e experimentado. Se preferirmos, diremos que é esse o seu mais casto
milagre. Ainda que o poeta admita que “era só fome o que sentia” (“Adeus”), que
a miríade dos estagnados dias que se consomem seja traduzida por “arcos e arcos
de solidão” (“Canção”), existe uma vontade luminosa em fazer irromper uma manhã
da negra noite que soberana reina. No belíssimo “Retrato com sombra”, sente-se
que algo em sua amada morreu, que algo não mais é o que fora. São as
consequências dos próprios tempos, que por sua natural condição não comportam a
luz, a inocência, a alvura, a plenitude. Mas o poeta, felizmente, revela-se
obstinado. Perante a triste evidência, e sabendo que escasseia a “pura
ressonância da alegria”, depura cada sombra em busca do “rosto verdadeiro”, “até
que uma fonte rasgue a tua boca / e a noite fique transbordante de água”.
É claro que todas estas intenções traduzem o seu
sonho de “um país crescendo em liberdade, / entre medas de trigo e de alegria”.
Porém, mesmo ciente de que “a morte passeia nos quartos”, Eugénio, que não
ambiciona para si “tanto veneno”, assume-se, por fim, como um justo “poeta da
luz” – “Eu falo do jardim onde começa / um dia claro de amantes enlaçados”
(“Não é verdade”). É curiosa a forma como transmite a convicção no triunfo do
amor, deixando mesmo a ideia que ele, o Amor, será a solução dos dias futuros.
Afinal, é o elemento que mais sobeja nos tempos descritos e cantados por
Eugénio, onde os “sentinelas do medo” (“Elegia e destruição”) nos aguardam no
dobrar de cada esquina.
Existem, ainda, as habituais referências à figura
de sua mãe, o mesmo traço de melancolia (adensado pela dor), a mesma subtil
forma de cantar o que sente e vê. São afluentes do mesmo rio de sempre, por
onde Eugénio navegava; apenas desembocam, desta vez, no local distinto. Mesmo
que reine, por ser derradeira, a sensação circular do tempo cicatrizado. Não é
à toa que o último poema se intitula “Post
Scriptum”, pois ele mesmo é um “P.S.” colocado como adenda à própria obra,
o espaço onde tem lugar, finalmente, uma expressão maior dos ansiados
sentimentos que deram origem à busca inicial – “Agora regresso à tua claridade”.
Para um obra tão pequena, de apenas quinze poemas,
é notável a riqueza das palavras, sensações e imagens que sugere e invoca.
Aliadas, claro, ao tema e à razão que sustém o próprio trabalho, digno de
poetas de tão alta craveira como aquele que Eugénio foi. Em todo o caso, todo o
leitor mais curioso e sedento de saber encontrará em As palavras interditas um óptimo veículo para completar o
entendimento sobre o poeta. Pois não bastará reter a principal via de cada um,
percorrendo-a à medida que versos e mais versos são saboreados e absorvidos por
uma ávida mente; é igualmente necessário erguer o olhar e absorver todo o
horizonte desenhado pelo olhar de quem canta. Só assim se poderá realmente
afirmar que o completo retrato foi deveras contemplado.
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
(Eugénio de Andrade, "Procuro-te")
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