A solidão imortal do vampiro (II)
Por Márcio de Lima Dantas
Lua cheia: falando do filme
No filme Entrevista com o vampiro, de Neil Jordan (1994)
tudo pontifica a beleza e o requinte. As cenas sugerem um caráter
expressionista. Há uma certa tendência em se acentuar os elementos
constituidores do cenário enquanto fato semiótico: o mobiliário, as indumentárias,
a música; requinte com certo toque de barroco. Outra coisa é o propósito
consciente de vestir as personagens de determinadas cores. Lestat, por exemplo,
sempre aparece em matizes de azul, enquanto no personagem Louis preponderam o
verde e suas nuanças. Cláudia oscila entre as duas cores. O misterioso Armand
está sempre de negro.
A belíssima música “Madeleine’s lament” é uma homenagem à
esposa de Louis, quando este vai ao cemitério prantear a morte da amada,
embriagando-se de álcool, num gesto de profundo desespero de quem lhe escapou o
maior bem – fatalidade capaz de destruir abruptamente uma relação de amor e
completude. Seu semblante pesaroso e autodestrutivo maldiz a sorte do malogro
de quem depositara numa relação amorosa o sentido da existência. Mancha
indelével que o marcará para sempre, levando-o ao encontro com Lestat, no
cemitério (lugar de mortos, não de vivos). Os eventos ocorrem em 1791, na
Lousiania. Louis está com apenas vinte e quatro anos, homem feito, maturidade
plena, administrando uma fazenda.
Ainda como parte da errância, como disse, Louis acaba por
conhecer Lestat, numa taberna cheia de prostitutas. Sendo alvo da observação
daquele, este sofre a mordida fatal, vindo a transformar-se em vampiro.
Contudo, arrasta consigo um grande naco de humanidade, compaixão e dúvida
acerca da sua nova condição.
O
movimento de busca para explicar sua condição não é individual, mas inscreve-se
dentro de um contexto mais amplo. Quero sugerir com isso que o grupo é que
modela o individual. Somente mais na frente é que Louis compreenderá o crasso
equívoco de tal caminho, pagando inclusive o preço de se confrontar com o que
Émile Durkheim chamou de “consciência coletiva”. Uma força esquisita que emana
quando os homens se encontram juntos, formando hostes, com atos imprevisíveis.
Dessa experiência, Louis sairá como perdedor, pois Cláudia, vampira-menina, é
eliminada fisicamente junto com sua amiga por um vicioso grupo de danados, que
nada tem a perder. Aliás, é próprio do vampirismo esse nada a perder.
Afora Louis, vampiro cheio de crises de consciência e
conflitos interiores, sobretudo na prerrogativa de, ao se alimentar do sangue
necessário para viver, incorporar a maior quantidade possível de
“companheiros”, todos os demais são fortemente marcados pelo jogo pesado, ou
seja, pelo desenfreado cinismo e frieza diante do outro. É interessante chamar a
atenção para o fato de que quanto mais idoso o vampiro mais inescrupuloso e
calculista é o seu comportamento de sanguinário em busca de novas vítimas e
pares. Já não disseram que “envelhecer é envilecer”? Quem escutou Cartola, na
despótica sensualidade da voz de Cazuza, compreenderá o hirsuto verso: "De cada
amor tu herdarás só o cinismo".
O vampiro vem a ser uma condição não escolhida pela vontade
ou interesse, mas como uma fatalidade imposta pelo destino, como o caminho a
ser seguido, e não uma trilha ou atalho no qual, se se quiser, um dia, volta-se
à doxa – irremediável mal, ao que parece, para Louis.
Lua nova: Lestat de Lioncourt, o desesperado cínico ou o
cinismo do desesperado
À exceção de Louis, todos os outros vampiros detêm uma
característica de extroversão (Armand, Cláudia, Lestat), pois tentam resolver
suas solidões a partir não do seu íntimo, quer dizer, a resposta ao fato de
deter em si uma equação complexa e de difícil solução, a solitude – e seu
respectivo conforto –, não está em si, mas tem como suporte o outro, objeto no
qual obsessivamente demanda e busca uma eventual completude. Como era de se
esperar, nenhum logra êxito na empreitada de aplacar seu vazio interior, nenhum
consegue o sossego idealizado, haja vista que nunca ninguém foi solução para
aplacar conflitos de outrem. Todo mundo sabe disso desde sempre.
Destarte, a danação leva a várias atitudes, desde a do
cínico, que, em sua lucidez, se sabe irremediavelmente destruído e, com isso,
empreende a cruzada odiosa de a tudo macular, não poupando nem sua autoestima, pois
chega mesmo a se comportar, apesar de ter uma personalidade forte, como
submisso, e, digamos, assumindo uma condição “feminina”; ao deparar-se com uma
situação em que não sabe como se sair dela, procura tirar proveito e fruições
do que se encontra à frente. Diverte-se no presente/futuro.
O cínico-canalha, sem nenhum escrúpulo, senão o de
justificar para os outros que pode ser aparentemente feliz na sua desgraçada
condição de vampiro, para alcançar seu objetivo não hesita em amealhar e
organizar uma série de recursos de convencimento dos outros. É uma espécie de
indiferença culposa, pois proclama ao mundo: “sou, mas fulano também é”. Esse é
um artifício manipulado numa série de variantes consoante o freguês e a
situação. Acontece que tal comportamento somente denuncia a não aceitação
interior do que, no fundo, é uma mancha indelével (e ninguém melhor do que ele
sabe muito bem disso, mesmo que seu discurso consciente o desminta). Para
Lestat, vale a inversão do adágio: “melhor mal acompanhado do que só”.
O vampiro Lestat usa toda uma sorte de expedientes baixos:
ameaças, escândalos, agressões físicas e chantagens (o último é o pior e o mais
miserável caminho de quem demanda afeto e atenção de outrem). Tudo isso com a
exata consciência do que pratica: ser hediondo que a tudo conspurca,
difundindo, por meio do terror, aquilo que recusa e que finge arrogantemente
aceitar como natural. Incapaz de um nem que seja mínimo contentamento consigo
mesmo, não leva nada a sério, tudo é deboche e ironia, pois não deseja ir
sozinho para o inferno, vai mesmo é arrebanhar uma legião consigo.
Com efeito, o vampiro Lestat não tem o mínimo problema com
nada nem com ninguém. É um ser frio, calculista, que apenas defende seus interesses,
pouco importa o bem-estar alheio. Cínico e destrutivo, compraz-se horrores com
a desgraça dos outros. Na verdade, não gosta de ninguém. É do tipo que
fracassou e sabe que fracassará sempre, por isso já se adianta em fazer toda
uma sorte de artimanhas para prejudicar o próximo. Seu apriorismo constitui uma
espécie de vantagem perante os demais protagonistas no jogo de minimizar a
solidão. Sonso e manhoso, arteiro, conhece toda sorte de estratégias para
atingir o objetivo primacial, que é dominar aqueles com os quais trava algum
tipo de relacionamento, manipulando-os para que sirvam de lenitivo à sua
solidão. Faz qualquer negócio para não estar só, inclusive atingindo a suprema
miséria chantada num lastro de simulação, inventando amores para si mesmo,
engodo que serve de firme base para se autojustificar.
Tudo o que aludimos daqui para cima pode ser sintetizado,
metaforizado, nas variantes do azul, visto ser a cor preponderante nas
vestimentas de Lestat. Para Jung, no plano psíquico, é a cor do pensamento.
Nada mais condizente com a maneira de ser de um dos mais antigos vampiros.
Segundo o filme, além dos olhos azuis do ator Tom Cruise, constatamos o
comportamento malicioso e calculista de quem nada tem a perder, compraz-se em
se divertir às custas da desgraça alheia, numa atitude cínica que beira o sadismo,
o pensamento, a razão, o oportunismo, sendo o cálculo interesseiro o que o domina,
nunca a emoção.
Lua quarto crescente: Armand, taedium vitae do dèjà vu,
dèjaconnu, dèjafaire
O vampiro Armand (Antonio Banderas) é o líder de um grupo
que habita os subterrâneos de uma igreja no centro de Paris. As ruas
apresentadas sugerem que seja, provavelmente, uma cripta da igreja Saint
Severin, situada entre o Museu Clunny e o rio Sena. Durante a noite, simulam um
espetáculo de teatro de extremo realismo, representando a si próprios para um
palco de mortais que não têm consciência de que o encenado coincide com a
realidade – representação e realidade se confundem. O teatro é uma parte do seu
drama existencial. Para Louis, a ida ao Velho Mundo se torna Une saisonunenfer,
da sua longa via crucis. A Cidade Luz é somente trevas e decadência; já deu o
que tinha que dar. Os vampiros levam o tempo em repetir ad nauseam seu
comportamento, numa espiral viciosa que a nada conduzirá.
Como dizia, Armand é o mais noir de todos. O étimo do seu
nome sugere sua atitude face ao mundo decrépito que o cerca; vem do teutônico: homem
do exército, homem de armas. Desse jeito: calculista e determinado, egoísta, só
pensa em campear, imperar sobre o próximo, defendendo seus interesses, com o
intuito de banir sua solidão. O seu enfado e aborrecimento conduzem-no a um
desprezo capaz de engendrar não um sujeito melancólico e recuado, ao contrário,
sabe muito bem o que quer e onde quer chegar. Dissemina promessas e gestos,
manhas e modos num quieto desespero para ver se safa-se da situação na qual se
encontra.
Esse homem trigueiro, longos cabelos negros, olhar sagaz,
sonso e malicioso, advindos de olhos perscrutadores e inquietos, como se
procurassem eternamente estabelecer uma leitura do outro, mormente buscando um
estereótipo ou lugar que ocupa na grande cena da vida. Fisionomia enigmática,
contudo, não passa de aparência e dissimulação, algo de quem sabe o que quer.
Diferente dos outros três vampiros louros, perfaz mais um tipo latino. Extremamente
dissimulado, ou melhor, o mais dissimulado de todos, não hesita em fingir o que
não é para buscar ter o frescor vital de Louis. Trapaceiro de marca maior, faz
o que pode para convencer este de que é diferente dos demais. Fingido e
hipócrita, dissimulado, não pensa duas vezes em usar qualquer meio para lograr
êxito no que julga como a redenção pessoal de um mundo que já deu o que tinha
que dar. Através do logro e de artimanhas, tenta se libertar de um mundo
decadente e completamente exaurido (o teatro de vampiros encenando no palco sua
própria condição de danados, numa atitude de rebeldes sem nenhuma causa).
Ora, é interessante observar como o comportamento desse
Armand três gothique assemelha-se curiosamente à maneira de ser dos
franceses... contemporâneos! Cansaço físico e fastio metafísico. Tenta,
coitado, se agarrar na primeira tábua de salvação que lhe aparece pela frente,
no primeiro sinal de vida que lhe cruza. A tábua é Louis, novo e belo, perdido
num conjunto tedioso e que já atingiu há muito seu fastígio. Em suma: aquilo
que na experiência, depois de uma certa idade, e cumprida uma série de
estações, limita-se a repetições e fadigas, entretanto o indivíduo não encontra
a quietude tão avidamente buscada, e permanece insistindo numa coisa que já
sabe de antemão fracassada, ficando a dar voltas em torno do mesmo ponto. Aqui
temos um dos problemas mais alinhavados de paradoxos possíveis: a teimosia de
cair nos mesmos erros.
Com uma memória rica
em eventos, noitadas e envolvimentos, o vampiro sabe previamente o percurso e o
desfecho de uma história. É interessante lembrar que uma característica dos
vampiros é a capacidade da telepatia: ler pensamentos de outrem. Não é à toa
que o vampiro dificilmente erra ao lançar os dados da sedução, quase nenhuma
presa escolhida recusa participar do jogo. O vampiro é raposa velha, acertando
sempre, pois joga com a experiência e com a enorme intuição herdada dos
animais. É um ser noturno por natureza, com o pardo que a noite imprime aos
gatos. A noite conspira a favor dos desejos e prazeres do vampiro, na sua
errância repetitiva nas trevas de noites sem novidades.
Assim sendo, basta olhar com acuidade para alguém ou para
uma dada situação que lhe interessa e logo saca muito bem por qual fenda
adentrar. Na verdade, quem sabe possamos aproximar essa aptidão à intuição,
atributo universalmente relacionado à mulher e, como não poderia deixar de ser,
é relacionada ao regime diurno da imagem. É típico do vampiro o olhar inquieto,
vasculhando o tempo inteiro o seu entourage, como a querer dar conta de tudo,
como a querer tirar proveito de tudo o que se passa nas cercanias. Vampiro é
bicho que não perde tempo. Manhoso, leva o tempo inteiro a conspirar.
Com efeito, em todo canto que se encontra está colhendo
informações, acumulando dados, inquirindo para saber se aquele vai lhe servir
de acesso a alguma empreitada ou se tem potencialidade para vir a ser um novo
vampiro. Fareja sempre o sangue fresco. Vampiro é louco pelo poder, pois sabe
muito bem que é através do poder que ele engendra as melhores condições de
sobrevivência, estabelecendo alianças com aqueles que eventualmente o possuirão
um dia. O poder também é o lugar da encenação por excelência. Ora, o que é um vampiro
senão um ser que vive de representar e enganar para sobreviver, num eternamente
farejar os bichos da sua espécie?
É esse clima decadentista que Louis abomina e parte para
destruí-lo, visto que não passava de uma luminosa caricatura da sua condição e
dos seus pares. Para um vampiro cheio de conflitos e virtuoso como ele, seria
insuportável conviver com os extremos que esse tipo de vida podia chegar. Ao
que tudo indica, o vampiro encontrou um espelho que o refletiu de maneira clara
e nítida: a mundiça na qual estava metido.
Sabe que daquilo não passará: repetição e tédio. De maneira
cruel e traiçoeira, não pensa duas vezes ao permitir que as hostes de vampiros
que lidera eliminem sem piedade sua rival Cláudia – elemento que o distancia de
Louis –, numa das sequências mais dramáticas e bem construídas do filme. Com a
cumplicidade de Armand, Louis é enterrado vivo numa parede dos subterrâneos da
igreja, sendo que, logo em seguida, é aquele que vai livrá-lo desse castigo
imposto pelos outros vampiros. Porém, Louis não consegue salvar Cláudia,
aprisionada com sua amiga no fundo de um poço, com abertura para o exterior.
Sucedendo à lua, eis que vem a luz da aurora, transformando-as em duas estátuas
de cinzas. Morrem abraçadas. É então que uma grande fúria se apodera do “diabo
de cabelos louros”, ódio causado por finalmente ter perdido qualquer tipo de
ilusão de saber que a tribo à qual pertence não tem ninguém que preste. Então,
ateia fogo no dormitório-cripta e, com uma foice nas mãos, encarnando a própria
morte, sai arrancando cabeças e destruindo quem aparece na sua frente. O fogo a
tudo consome. Louis sente-se redimido duplamente: por ter vingado a morte da
sua namorada e por negar a condição desses vampiros falidos que, talvez, no
futuro, poderia ser a sua.
***
Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.
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