A maçã envenenada, de Michel Laub
Por Pedro Fernandes
Apresentado como o segundo título de uma trilogia que se
inicia com Diário da queda, publicado
em 2011, este título de Michel Laub é uma tentativa de galgar uma voz própria
na cena literária contemporânea. Em linhas gerais é um texto interessante, bem
escrito, uma narrativa polida e arredondada e, se me permitem a expressão, sem
aberturas muito visíveis que dialogue com o romance anterior ou que deixe
pontas a serem mais bem desenhadas no livro subsequente. Isto é, no que se
refere ao comportamento de uma boa narrativa, pode-se ler A maçã envenenada como um acerto do jovem escritor. Agora, no que
se refere a colocá-lo no interior de uma literatura que promete alguma coisa
nesse cenário sem tantas visões para o futuro, é preciso não fazer tantas
apostas positivas.
Laub se beneficia de uma série de relações em voga no
romance contemporâneo, a nomear: a relação entre literatura e história, entre ficção
e realidade, ou ainda entre ficção e memória e busca desenhar um texto situado
na zona fronteiriça desses polos. Também este jogo aparece sob seu domínio, e
talvez seja justamente o pecado mais grave do escritor. Ao escritor,
principalmente o de hoje, não lhe é permitido mais as tentativas acertadas, as
formas bem desenhadas; é preferível até que esteja sempre no lugar de um eterno
experimentador dando força à ideia de que romance é sempre um interminável
canteiro de obras. Veja, por exemplo, a justeza da narrativa de um José
Saramago, por exemplo, constantemente invadida (propositalmente ou não) pelo
desvio do lugar comum numa tentativa acertada e conseguida de se constituir voz
una num território já tecido por tantas outras vozes singulares; ou, a
capacidade de reinvenção do fluxo de consciência consagrado por Virginia Woolf
e James Joyce num António Lobo Antunes; ou ainda, para citar um dos casos
brasileiros, a superação linguística conseguida por um Guimarães Rosa, um dos
últimos grandes romancistas da nossa literatura.
Outra tentativa de Laub é fazer-se universal, usando para
isso de sentimentos do gênero ou de situações que formam marcas arquiconhecidas
ao redor do mundo. Esse jogo é válido quando não se deixa mostrar tão
explicitamente sua construção feita pelo romancista. E aqui estou pensando
nomes da própria cena nossa – em Clarice Lispector, por exemplo. Bom, já aqui
chegando, é possível que eu seja tratado como um passadista ou alguém que
anseia por um nome responsável, enfim, por uma reviravolta da cena literária
brasileira, atualmente presa em certos vícios e quase apagada do interesse de
galgar o grande romance tal como fizeram já e fazem outras literaturas. Há
tentativas bem acertadas como a que comentei aqui noutro dia; refiro-me ao
romance de Alberto A. Reis até hoje texto que tem “martelado” no meu juízo como
uma tentativa semiacertada da retomada das rédeas do que vínhamos construindo
como um projeto literário nacional.
Mas, é preciso avisar ao leitor que ele não estará jogando
as tão atribuladas horas de seu tempo fora ao dedicar-se a leitura de A maçã envenenada. Não. Tenho a impressão de que o bem arrumado desenho da narrativa
nos garante um instante de devaneio literário, principalmente, se nos ativer
aos jogos de transmutação da história, da memória em ficção e a forma como
determinados acontecimentos vão aí se infiltrando e construindo uma teia até em
algumas ocasiões, densa, no desenvolvimento da trama. Como é caso a vivência da
morte de Kurt Cobain – acontecimento sobre o qual se constrói toda a linha de
pensamento do narrador – e a relação que este fato tem para o seu
desenvolvimento psicológico e actancial.
Laub faz uma visita intensiva ao lado de um tempo de
explosões: as da cena artística, sobretudo, musical e as da sua relação (indiretamente)
também com uma explosão na sua existência pessoal, a adolescência. Os anos de 1990. O jogo de
determinantes, nesse sentido, é muito bem feito: o grunge deixa de ser forma
periférica e passa a ser com o Nirvana (mais especificamente o disco Nevermind) o centro do rock mundial e a
personagem também em trânsito, deixa de ser um sujeito posto à margem pelo
gosto e implicância com a vida, para reconhecer-se criatura em amadurecimento,
isto é, como se estivesse deixando a periferia pelo centro da vida. Ou ainda a
incorporação do ritmo musical ao andamento da narrativa. A voz rasgada de Kurt
e o tom pesado do conjunto musical se faz ouvir em cada esquina do texto e se
imprime na brevidade e rapidez com o narrador passa a limpo uma leva de acontecimentos num intervalo não breve de anos.
Além disso, a música se constitui numa espécie de alinhavo
aos acontecimentos ora tão próximos ao narrador porque vividos por ele, ora tão
distantes porque vivido por um núcleo alheio a si, como a vida do próprio Kurt
que vai sendo especulada ao longo do romance ou a história de Immaculé
Ilibagiza – outra personagem histórica que aparece como contraponto ao modelo
de vida escolhido pelo ícone do rock. Ilibagiza foi uma das poucas
sobreviventes ao genocídio de Ruanda, em 1994, mesmo ano de suicídio de Kurt.
Esse diálogo como elementos históricos que constituem o imaginário
da personagem e sua relação com algo que está acima de sua própria vida parece
ser um recurso utilizado pelo escritor para tornar palpável e até certo ponto
interessante a existência medíocre do narrador. Se tirarmos do romance as
impressões narrativas sobre os dois sujeitos históricos, de fato, não sobra
muita coisa: se não um sujeito a recordar-se de seu tempo de adolescente, da
sua estadia na graduação militar, na sua formação universitária, o primeiro
amor, a tentativa de ser como Kurt, ao menos em ter um conjunto musical do seu nível,
o estágio fora do país e outros eventos pitorescos.
A ligação entre os dois sujeitos históricos traduz ainda uma
forma diversa de busca pela liberdade, tema, aliás, que parece ser o mais
perseguido pelo escritor; e funciona mesmo como um contraponto acerca da
diversidade de posicionamentos do sujeito sobre a vida. Basta dizer que,
enquanto um, pleno de possibilidades existenciais sem subterfúgios por ter tudo
ao alcance, vê-se esvaziado de sentido e busca o suicídio como redenção, o
outro, mesmo numa situação adversa em que seria coerente entregar-se à morte faz
o improvável para se manter vivo. Immaculée Ilibagiza sobreviveu com outras
sete pessoas num cubículo de poucos metros quadrados durante os três
meses em que durou o confronto e os massacres entre as duas etnias de Ruanda:
os hutus e o grupo minoritário do qual Ilibagiza fazia parte, os tutsis.
Noutro ângulo, os dois personagens constituem um apanhado
diverso do que se passava no momento em que o narrador viveu, demonstrando que a
história não está resumida a acontecimentos isolados, mas é plural e de uma forma ou de outra aquilo que se passa à distância tanto nos influencia e nos constitui como aquilo que vivemos no dia-a-dia. É também um
gesto de visualização do poder de emancipação dos fatos pelo que eu chamaria
aqui de “aparelhos fossilizadores” ou “historicizantes”: a mídia, lugar através do qual, a
personagem acompanha esses fatos não esconderá a predileção em contar sobre os que estão no centro da história. Mesmo que Kurt esteja sempre lutando por ser
ainda o da margem pela atitude rebelde, pela polêmica, pela convivência com as drogas, sua posição de famoso e seu lugar de ídolo do rock e de uma era, e mesmo
toda essa perturbação construída pelo músico como fuga, o faz centralidade
histórica e é sobre sua morte que toda imprensa irá dedicar seu tempo, esmiuçando
as causas e consequências do acontecimento. Enquanto que sobre o genocídio de
Ruanda pouco se diz, pouco se sabe; é coisa que está à margem da história: “De
Ruanda fiquei sabendo dias, talvez semanas depois, e mesmo assim
superficialmente, enquanto de Kurt Cobain eu li tudo: repórteres, editores,
músicos, críticos e fãs em ensaios, depoimentos, entrevistas, perfis. Todo
mundo tinha algo a dizer sobre o início em Seattle, a estreia com Bleach e como Nevermind abriu espaço nas FMS para uma estética que representava a
chegada tardia do punk ao mainstream.”
Também, os dois acontecimentos vão servindo ao leitor de revisão sobre o esvaziamento da
humanidade, sua descida ao fosso das distopias, sua incapacidade de lidar com a
liberdade e a diversidade das formas de ser e estar no mundo. Esta constatação,
aliás, é o melhor do romance; e, mesmo que estejamos “envenenados” pela
necessidade de ser livre, e embora não saibamos de fato o que com isto podemos
fazer, a narrativa aponta ainda um fio que designa o seu contrário – a
sobrevivência de Immaculée.
Quando assumo que este é um romance sobre a liberdade e a
impossibilidade sobre o que fazermos com ela estou ainda pensando nesse contexto histórico a que remete a narrativa: os anos 1990 quiseram estar na esteira do que foram as décadas precedentes, a então mais libertárias. É a liberdade aquilo que buscamos o tempo
todo e é o que une num só conjunto todos os acontecimentos nesse romance, os
reais e ficcionais. É a liberdade o que busca Cobain pelo suicídio; é a liberdade
o que busca Ilibagiza pela sobrevivência à fina força da matança indiscriminada
em seu país; é a liberdade o que busca a personagem ao querer encontrar uma
forma de fugir sem ser punido do serviço militar para assistir ao show do
Nirvana em São Paulo.
Agora, o que todos, entretanto, esquecem é da inexistência dessa plenitude do ser livre: Cobain morreu, mas deixou uma leva de círculos em torno de seu nome presos ao questionamento constante em torno do pormenor para se fazer responder uma razão certa e objetiva da causa mortis; Ilibagiza estará presa a dizer aonde for do horror que vivenciou nos noventa dias em que esteve isolada do mundo no limite entre a vida e a morte; o personagem estará sempre cercado pelo que poderia ter acontecido se o rumo tomado pelas escolhas que fez no passado tivessem sido outras. Talvez uma forma de liberdade seja apenas uma sensação, um sentir-se alheio de passado, como se sentisse que nada tivesse acontecido “ou só as coisas que você escolheu, as lembranças, boas ou inofensivas, e nada do que você disse ou fez a uma pessoa tem consequência porque nunca mais precisará encontrá-la”.
Agora, o que todos, entretanto, esquecem é da inexistência dessa plenitude do ser livre: Cobain morreu, mas deixou uma leva de círculos em torno de seu nome presos ao questionamento constante em torno do pormenor para se fazer responder uma razão certa e objetiva da causa mortis; Ilibagiza estará presa a dizer aonde for do horror que vivenciou nos noventa dias em que esteve isolada do mundo no limite entre a vida e a morte; o personagem estará sempre cercado pelo que poderia ter acontecido se o rumo tomado pelas escolhas que fez no passado tivessem sido outras. Talvez uma forma de liberdade seja apenas uma sensação, um sentir-se alheio de passado, como se sentisse que nada tivesse acontecido “ou só as coisas que você escolheu, as lembranças, boas ou inofensivas, e nada do que você disse ou fez a uma pessoa tem consequência porque nunca mais precisará encontrá-la”.
Que a liberdade é um paroxismo é o que parece ser a tese em
torno da qual se desenvolve o romance de Laub. Como o narrador que se debruça
na descrição de uma faixa do Nevermind,
parece propor Laub – e aqui proponho uma paráfrase a um instante metaliterário
de A maçã envenenada – um ensaio fragmentário sobre o
ser-livre com ressonâncias da história e sentimentos sobre ela que uma
personagem vai compondo a modo de intuição sobre o que sabe não por si mas por
outras fontes; tudo suficientemente vago como se pudesse adquirir os sentidos à
escolha de cada leitor. Tudo isso, entretanto, poderia ser melhor explorado. No
entanto, a ideia é boa e a depender das escolhas determinadas pelo leitor, Laub
corre ainda o risco de ter posto à prova uma tentativa de revisão delicada
sobre um instante recente da vida de muitos que poderão se achar nas inquietações
aí experimentadas por esse narrador propositalmente inominado.
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