A favela em “Orfeu da Conceição”: poetização e eurocentrismo*

 Por Marina de Oliveira

Capa de uma das edições de Orfeu de Conceição. Publicado
inicialmente em 1954 na revista Anhembi, a peça fez sucesso no teatro
e ganhou duas adaptações para o cinema.




Embora alguns pesquisadores acreditem que Pedro Mico tenha inaugurado a temática da favela nos palcos brasileiros1, a primazia deu-se, de fato, com o musical Orfeu da Conceição, publicado em 1954, pela revista Anhembi. A peça de Vinicius de Moraes, composta por três atos, estreou em setembro de 1956, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, tendo Haroldo Costa, ator oriundo do TEP, Teatro Experimental do Negro, no papel de Orfeu. Antônio Carlos Jobim assinou as músicas e Oscar Niemeyer criou a cenografia do espetáculo. A noite de estreia também contou com o lançamento de uma edição de luxo do texto, com ilustrações de Carlos Scliar.

Subintitulada “Tragédia carioca em três atos”, Orfeu da Conceição inspira-se no mito grego de Orfeu, jovem tocador de lira que, diante do falecimento da amada Eurídice, decide buscá-la no reino dos mortos. Depois de encantar, com os acentos melódicos de sua lira, as Eríneas, deusas violentas, e Cérbero, o cão de várias cabeças que guarda o reino de Hades, Orfeu consegue entrar no Inferno em busca de sua adorada. O inexorável Rei das Sombras e sua esposa Perséfone se convencem do amor de Orfeu e decidem libertar a ninfa, mas com uma condição: o amante não deve olhar para trás, no intuito de confirmar se a jovem o está seguindo. No caminho de volta, entretanto, Orfeu, impaciente por ver Eurídice, volta-se para ela, perdendo-a para sempre.

O exímio tocador de lira mítico é transformado, na versão brasileira, num sedutor sambista do morro da década de 1950 do Rio de Janeiro. Negro, bonito e galanteador, ele mora em uma maloca, com os pais, Apolo e Clio. A primeira cena de encontro entre Orfeu e Eurídice é permeada de palavras poéticas, ficando latente a libido e o afeto genuínos que unem os dois enamorados. Orfeu, embriagado de paixão, quer conduzi-la para o seu quarto; embora Eurídice também o deseje, receia entregar-se sexualmente ao músico e pede que ele aguarde o momento do casamento, a ser realizado, em segredo, no dia seguinte. Quando a amada se despede momentaneamente para ver a mãe, o protagonista declama o conhecido monólogo apaixonado que, entre outros versos, contém: “Tu / És a hora, és o que dá sentido / E direção ao tempo, minha amiga / Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada! / A beleza da vida és tu amada” (MORAES, 1956, p. 33).

Seguindo a trajetória mítica, o plano de união conjugal dos enamorados é abortado por Aristeu, outro jovem do morro que está obcecado por Eurídice. Insuflado por Mira de Tal, ex amante de Orfeu, Aristeu espera que Eurídice saia da maloca de Orfeu, após a suposta consumação do ato sexual dos enamorados, ainda antes do casamento, e a executa com um punhal. O protagonista de Moraes, desesperado pela perda da amada, desce o morro em direção ao clube “Maiorais do inferno” e consegue entrar na festa depois de tocar uma canção para o leão-de-chácara que guarda a entrada da casa noturna. No interior do salão, ele toca seu violão e clama repetidamente por Eurídice. A cena apresenta uma profusão de imagens e sons: homens e mulheres embriagados, comandados pelo casal de rei momos Plutão e Proserpina. O par mefistotélico tenta compreender o que Orfeu deseja, mas acaba desistindo ao deduzir que o músico está excessivamente bêbado. O jovem canta e implora para rever a sua amada; outras mulheres, também embriagadas, afirmam que são Eurídice; Orfeu, transtornado, passa a enxergar Eurídice em cada uma delas, momento em que se evidencia o princípio de sua insanidade. Por fim, cansado de buscar a amada em meio à confusão do Carnaval, Orfeu desiste e parte, inconsolável.

No terceiro e último ato, Orfeu está de volta ao morro e tornou-se uma pessoa digna de pena pela comunidade, pois está sempre fora do ar, em devaneio. Mira de Tal e outras prostitutas, irritadas com a indiferença do tocador de viola, que está sempre a clamar por Eurídice, decidem atacá-lo com facas e navalhas. Ferido, o músico foge ensanguentado para o seu barraco, momento em que enxerga a Dama Negra, figura sobrenatural já avistada por ele em outras situações. O ser sobrenatural vem para buscá-lo e manifesta-se com a voz de Eurídice: “Aqui estou, meu Orfeu, Mais um segundo / E tu serás eternamente meu” (MORAES, 1956, p. 83). As prostitutas, como fúrias, alcançam o músico e o trucidam. A Dama Negra envolve o corpo de Orfeu com seu manto, enquanto a música do protagonista instaura-se na cena final da peça, límpida e pura.

Cena de Orfeu negro, a primeira adaptação do texto de Vinicius de Moraes para cinema veio pelas mãos de Marcel Camus em 1959. O filme recebeu a Palma de Ouro em Cannes no mesmo ano e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em no ano seguinte.

Em 1959, a peça ganhou uma versão para o cinema, Orfeu negro, traduzido, no Brasil, como Orfeu do Carnaval. Configurou-se como uma produção ítalo-franco-brasileira, com direção de Marcel Camus, tendo Breno Mello e Marpessa Dawn como protagonistas. A película ganhou a Palma de Ouro em Cannes no mesmo ano e o Oscar de melhor filme estrangeiro, em 19602.

Sábato Magaldi, em Moderna dramaturgia brasileira, faz uma análise comparativa entre o espetáculo e o filme, deixando claro sua preferência pelo último. Para o crítico, no espetáculo, “a história se sobrecarrega para o palco num diálogo pouco cênico e as evasões líricas não se resolvem em dramaticidade” (MAGALDI, 1998, p. 87-88). Depois de identificar algumas diferenças essenciais entre a abordagem cênica e a fílmica, Sábato deduz: “Orfeu da Conceição está irrealizado dramaticamente e Orfeu do Carnaval encontra uma linguagem na tela” (MAGALDI, 1998, p. 90). A partir das palavras de Magaldi sobre o espetáculo, é possível deduzir que a estrutura, talvez demasiadamente lírica do texto, tenha dificultado a transposição para a cena. O crítico chama ainda a atenção para o fato de o primeiro e o terceiro atos serem escritos em verso, enquanto o segundo encontra-se em prosa, enfatizando que nenhum argumento lógico justifica satisfatoriamente essa liberdade. Considerando esse fato uma desatenção para com o esqueleto da peça, Sábato conclui: “A peça apresenta cenas soltas de inegável beleza e lamentamos que o autor não tenha organizado melhor aestrutura dramática da história” (MAGALDI, 1998, p. 90).

No texto introdutório, “A propósito de Orfeu da Conceição”, Vinicius de Moraes enfatiza que a peça, em última instância, “é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo” (MORAES, 1956, p. 14). Ademais, em uma nota colocada na sequência da descrição das personagens, recomenda: “Todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isso em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos” (MORAES, 1956, p. 15).

De fato, na montagem de Orfeu de 1956, boa parte dos atores é negra, dado incomum para a época. Para se ter uma ideia, somente em 1945 o primeiro intérprete negro pisou no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, durante o espetáculo fundacional do Teatro Experimental do Negro (TEN), dirigido por Abdias do Nascimento. Apesar de a peça de Vinicius privilegiar a atuação negra, de modo semelhante à proposta do TEN, as demais produções da época tinham por hábito a exclusão do ator de origem africana.

A primeira rubrica de Orfeu da Conceição dá uma ideia da configuração espacial estabelecida para a representação da favela:
O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe. Platô de terra com casario ao fundo, junto ao barranco, defendido à esquerda, por pequena amurada de pedra, em semicírculo, da qual desce um lance de degraus (MORAES, 1956, p. 17).
Situado acima da cidade, o planalto de terra apresenta um agrupamento de malocas ao fundo, próximo ao barranco. À esquerda, uma parede de pedras, em semicírculo, protege as casas. Distantes e, embaixo, brilham as luzes da cidade. A descrição do ambiente deixa clara a separação entre morro e cidade, retratadas como duas instâncias distintas. Embora a favela geralmente caracterize-se por um espaço que se destaca pela opressão financeira vivida por seus moradores, em Orfeu da Conceição ela é retratada como um lugar, de certa forma, idílico. Ainda na primeira rubrica é possível perceber a atmosfera de encantamento proposta pelo dramaturgo:
Noite de lua, estática, perfeita. No barraco de Orfeu, ao centro, bruxuleiam lamparinas. Ao levantar-se o pano, a cena é deserta. Depois de prolongado silêncio, começa-se a ouvir, distante, o som de um violão plangendo uma valsa (MORAES, 1956, p. 17).
A expressão “bruxuleiam lamparinas” indica a ausência de luz elétrica nas casas do morro, já que as pequenas luminárias, movidas a óleo ou querosene, costumam oscilar frouxamente, propagando uma luminosidade diferente da elétrica. É curioso notar a forma poética como o dramaturgo retrata a realidade da favela; em outras palavras, ele poderia ter simplesmente escrito: “No barraco de Orfeu, ao centro, veem-se luzes emitidas por lamparinas a óleo”, mas utiliza “bruxuleiam lamparinas”, construção frasal que cria no imaginário do leitor a visão de que as luzes têm vida e tremulam para lá e para cá, como pequenas mariposas noturnas. Esse é um exemplo, entre vários outros, em que é possível identificar a poetização da favela.

Nesse sentido, deve-se destacar ainda que a peça é um musical, em que o protagonista é um exímio tocador de violão. A lua, Eurídice e o ambiente do morro configuram-se como os principais elementos de inspiração para o músico. Além disso, o fato de as personagens centrais serem releituras de figuras da mitologia grega potencializa a atmosfera embelezadora do texto.

No Dicionário da mitologia grega e romana de Pierre Grimal, Orfeu é retratado como um tocador de lira excepcional, cantor de melodias tão suaves que “até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direção e os homens mais rudes se acalmavam” (GRIMAL, 2005, p. 340). Na peça de Vinicius, de modo similar, Orfeu dialoga com a natureza através da música, como se pode verificar na seguinte passagem:
Dá uma série de acordes e glissandos à medida que se aproxima da amurada. Vindas ninguém sabe de onde, entram voando pombas brancas que logo se perdem na noite. Próximo, uivam cães longamente. Um gato que surge vem esfregar-se nas pernas do músico. Vozes de animais e trepidações de folhas, como ao vento, vencem por momento a melodia em pianíssimo que brota do violão mágico. Orfeu escuta, estático. Depois recomeça a tocar enquanto, por sua vez, cessam os sons da natureza (MORAES, 1956, p. 19).
A presença de pombas brancas, uivos de cães, um gato carinhoso e a trepidação de folhas ao vento, em evidente conversação com o som do instrumento musical, conferem a Orfeu um poder excepcional, já que ele atinge níveis profundos de comunicação com o meio ambiente. A música propagada pelo protagonista também age sobre os habitantes do morro, garantindo a tranquilidade do local. Isso fica evidente no terceiro ato, quando, diante da loucura de Orfeu e de sua recusa em tocar novamente, os moradores afirmam que a paz deixou de existir.

Cena de Orfeu. Filme de Cacá Diegues, a segunda releitura da peça de Vinicius de Moraes para o cinema, em 1999.

Apolo, pai de Orfeu, por seu turno, parece ter herdado de seu homônimo mítico, deus da música e da adivinhação, a ponderação. Embora não seja afeito ao trabalho e frequente o bar regularmente, ele foi o responsável em ensinar o filho a tocar, dando-lhe o melhor violão. O equilíbrio da personagem evidencia-se na passagem em que Clio, diante da loucura de Orfeu, tem uma espécie de surto. O marido, tentando controlar a situação, desabafa: “Por que é que nesse mundo não tem paz? Por que tanta paixão?” (MORAES, 1956, p. 69). O poder de adivinhação, todavia, presente na figura mítica, não se manifesta no Apolo brasileiro.

Clio, na mitologia, é uma das nove Musas irmãs, vinculadas ao primado da música no universo. Com vozes divinas, elas teriam cantado depois da vitória dos Olímpicos sobre os Titãs, para celebrar a instauração de uma nova ordem. Segundo o Dicionário de mitologia grega e romana, havia dois grupos principais de Musas: as da Trácia, vinculadas ao mito de Orfeu, e as da Beócia, em dependência mais direta de Apolo (GRIMAL, 2005, p. 320). Fica-se com a impressão de que Vinicius de Moraes escolheu esse nome justamente porque a personagem representa uma vinculação possível entre os mitos de Orfeu e Apolo. Além disso, a mãe de Orfeu, na versão de Vinicius, é comandada pela passionalidade; sua inconformidade diante da loucura do filho revela o seu caráter apaixonado, dado que cria um contraponto evidente com a ponderação do marido.

O Aristeu mítico, por sua vez, é filho de Apolo. Criador de abelhas, ele dominava também a arte da medicina e da adivinhação. Ainda segundo o dicionário de Grimal, o poeta Virgílio teria associado a lenda de Aristeu à de Eurídice, supondo que a jovem teria sido picada por uma serpente, no momento em que fugia do assédio sexual de Aristeu (cf. GRIMAL, 2005, p. 158). Na peça, a figura ganha um aspecto mais soturno, em que se evidencia não apenas o seu desejo por Eurídice, mas também a sua inveja de Orfeu.

A bela Eurídice, por fim, é a responsável por conduzir Orfeu até o Inferno, no intuito de trazê-la de volta. O resgate, consentido por Hades, teria dado certo, não fosse a ansiedade de Orfeu em saber se ela de fato o seguia em direção à luz. Ao olhar para trás e enxergá-la, o músico teria violado a condição imposta pelo Senhor das Sombras, o que o fez perder de vez a sua adorada.

Observa-se, dessa forma, que embora os seres míticos apareçam no drama brasileiro com outra roupagem – a da favela –, a atualização dessas figuras seculares confere uma respeitabilidade peculiar às personagens do drama e, por extensão, ao ambiente do morro. Dito de outro modo, não se trata da vida de João ou de Maria, mas da transfiguração de criaturas ancestrais, pertencentes ao imaginário coletivo.

Sabe-se que o extermínio de Eurídice, efetuado pelo vendedor de mel a partir do estímulo de Mira, modifica de modo definitivo a favela. Ademais, Orfeu, que até então se deslocava dentro dos limites do morro, é impulsionado para outro espaço, o clube “Maiorais do Inferno”, onde está acontecendo uma Terça-feira gorda de Carnaval:
Pares e indivíduos isolados dançam no salão sem música, entre sombras rubro-negras de refletores a insinuar a presença de fogo. (...) Como nas orgias gregas, os homens perseguem as damas, que aceitam e refugam, ao sabor do movimento. Bebe-se fartamente, com unção, na boca das garrafas. Num trono diabólico, ao fundo, sentam-se Plutão e Proserpina, com uma corte de mulheres à volta (MORAES, 1956, p. 51).
O metafórico Inferno de Orfeu da Conceição é comandado por um casal de rei e rainha momos, imensamente gordos. Plutão configura-se como um dos epítetos de Hades, o Rei dos Mortos, ao passo que Proserpina é a nomenclatura romana utilizada para designar Perséfone, a Rainha do Subterrâneo. Note-se que a única circunstância em que um ambiente interno é retratado, em Orfeu da Conceição, dá-se justamente nesse ato, em que as figuras ficcionais estão dentro do clube. O fato de a festa acontecer em um local fechado, todavia, não impede a sua vinculação com o Carnaval de rua. Essa questão é analisada por DaMatta, na obra Carnavais, malandros e heróis, em que o sociólogo afirma que o Carnaval de clube acaba reproduzindo a dinâmica do Carnaval de rua, tendo em vista que o último também tem suas regras de adesão. Embora pareçam dois tipos de carnavais radicalmente diversos,
ambas as formas contêm os elementos clássicos do desfile: no clube, com as pessoas “circulando” no salão; na rua, com as pessoas se engajando em grupos. Temos, assim, que existe uma verdadeira equivalência entre o espaço fechado do clube e o espaço também fechado de uma corporação (DAMATTA, 1980, p. 86).
A coerente conclusão do teórico deixa claro que, embora as personagens do segundo ato de Orfeu da Conceição estejam em um lugar fechado, elas estão agindo, durante a festa, de acordo com o parâmetro espacial da rua. Além disso, numa situação específica, num baile de Carnaval, onde qualquer fantasia é permitida. DaMatta, no mesmo livro, disserta ainda sobre a inversão existente no ritual carnavalesco brasileiro, em que é possível suspender ou inverter temporariamente a classificação de pessoas, coisas e grupos no espaço social. Dessa forma, a liberdade de passar-se por algo diferente do que se realmente é transformaria “a hierarquia quotidiana na igualdade mágica de um momento passageiro” (DAMATTA, 1980, p. 132). Não por acaso, Plutão delibera: “Aproveita, minha gente, que amanhã não tem mais. Hoje é o último dia” (MORAES, 1956, p. 52). Por serem retratadas em situação de transe temporário, nada se sabe acerca da intimidade ou da vida social dos foliões.

Por outro lado, o potencial de colocar as coisas fora de lugar confere ao Carnaval a frequente associação com a ilusão e a loucura. Por essa razão, Vinicius utiliza o estratagema da festa carnavalesca como possível disfarce para figuras pertencentes ao outro mundo. Isto é, o recurso do baile de Carnaval configura-se como mote para inserir as personagens míticas de Plutão e Proserpina, donos do Inferno, no contexto brasileiro. Essa estratégia do dramaturgo permite uma leitura ambígua para o segundo ato de Orfeu da Conceição, já que as personagens podem tanto vincular-se ao código da rua, em uma situação de baile carnavalesco, quanto ao do outro mundo, aceitando-se, nesse caso, a presença de um espaço sobrenatural.

Um dado importante em termos de configuração espacial é que o clube “Maiorais do Inferno” localiza-se na cidade, como a fala de Orfeu indica: “Não sou daqui. Sou do morro (...) Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração” (MORAES, 1956, p. 59). Mas por que razão o negro Orfeu teria ido procurar a sua amada na cidade, espécie de Inferno simbólico?

A resposta, que requer uma hermenêutica mais aprofundada, direciona para uma leitura em que o preconceito racial e de classe, ausente na peça numa primeira visada, pode ser entrevista. Note-se que o compositor, ao chegar no clube da cidade, é barrado por Cérbero, de modo similar ao Orfeu mítico quando tenta entrar no Inferno. O fato de o leão-de-chácara tentar impedir a sua permanência no recinto indica que Orfeu não é bem-vindo. A justificativa para tal rejeição é que o músico não pertence àquele espaço.

Pensando no “Maiorais do Inferno” como um local terreno, aflora-se a hierarquia espacial entre habitantes do morro e moradores da cidade. Nessa perspectiva, fica claro que certos locais do espaço urbano, segundo normas informais, não são apropriados para os favelados do morro. Veja-se que em nenhum momento Cérbero fala com o músico indagando-lhe se possui um convite para entrar no local. A simples mirada em direção ao protagonista é o suficiente para que o leão-de-chácara invista contra ele. Ainda segundo a rubrica, “só não o trucida porque Orfeu não para de tocar a sua música divina, que o perturba” (MORAES, 1956, p. 56).

Durante a estada do herói no baile, contudo, em nenhum momento ele consegue alguma pista sobre o paradeiro de Eurídice, o que reforça a leitura do clube como um lugar terreno, sem conotação sobrenatural. Embora algumas mulheres, embriagadas, digam: “Eu sou Eurídice” (MORAES, 1956, p. 59), fica claro que isso se deve à situação de Carnaval, em que cada um pode assumir o papel que quiser. Se a possibilidade do transcendente no “Maiorais do Inferno” é duvidosa, no morro ela aparece de modo bastante claro, através da Dama Negra, sem dúvida vinculada ao outro mundo. Em outras palavras, Orfeu busca na cidade o contato com o sobrenatural, em vão, pois ele só ocorre na favela, dado que enfatiza o caráter “mágico” conferido pelo autor àquele ambiente. Veja-se que quando Orfeu está próximo da morte, a Dama Negra surge e fala com a voz de Eurídice, dado que afirma a presença de um mundo diferente do humano.

Voltando à pergunta “Por que razão Orfeu foi atrás de sua amada na cidade?” uma resposta especulativa insinua-se. Note-se que Orfeu, depois da tentativa de encontrá-la na cidade, nega-se a tocar novamente o seu violão, dado que configura (a sua amada) como uma inspiração necessária para o músico. Orfeu, por outro lado, com suas melodias, garante a paz e a harmonia da favela, sendo o poeta do morro e, de modo mais figurado, a própria poesia em si. Nessa perspectiva, Eurídice e Orfeu podem ser lidos como duas alegorias, da inspiração e da poesia, respectivamente. Indo nesse caminho, infere-se que o herói, tendo perdido o seu impulso criador (Eurídice), tenta resgatá-lo na cidade, sem sucesso, tendo em vista que a possibilidade de voltar a ter, ou ao menos se aproximar do que foi perdido, não está na metrópole, mas na favela, ambiente propício para a poesia.

No terceiro ato, a ação retorna para o morro. Além da frente do barraco de Orfeu, outro plano é apresentado, o da “Tendinha”, local onde Mira trabalha:
Um pequeno bosque no alto do morro, de árvores esparsas, solitárias. Noite de lua cheia. Um barracão com uma taboleta: “Tendinha”. Ruído de conversas e gargalhadas de homens e mulheres no interior (MORAES, 1956, p. 77).
A zona de meretrício, de modo similar ao que acontece com a maloca de Orfeu, não é revelada em seu interior, ocorrendo a ação defronte ao imóvel. Dessa forma, o trucidamento de Orfeu pelas prostitutas inicia-se no vestíbulo da “Tendinha” e é finalizado no pátio da maloca da vítima. Pensando no deslocamento do herói, vê-se que ele percorre três espaços distintos. Num primeiro momento, ele está no morro e, ao avistar a Dama Negra, “uma gigantesca negra velha, esquálida” (MORAES, 1956, p. 40), a repele, afirmando ser mais poderoso que ela.

Numa espécie de disputa de poder, ele toca uma batida violenta, que resulta num som de macumba. A sua interlocutora o acompanha, dançando vertiginosamente; o embate termina com Orfeu exausto, interrompendo a música no exato momento em que um blackout tira a Dama Negra de cena.

Depois do assassinato de Eurídice, o compositor vai para a cidade, a fim de encontrá-la no que seriam os domínios do Inferno, sem sucesso. Somente de volta ao morro é que ele enxerga novamente a Dama Negra e esta lhe fala com a voz de Eurídice. O reencontro com a amada, contudo, só é possível através da intermediação da morte, que também vem para buscá-lo. O protagonista, que pensava em resgatar Eurídice, acaba, de modo irônico, com ela ficando no Reino dos Mortos. O reencontro entre “inspiração” e “poesia”, mesmo que em outro mundo, é o que permite que o som divino do violão de Orfeu volte a ser ouvido no morro, conforme revela o coro no final da peça.

O morro como um local propício para a criação poética em detrimento da aridez da cidade reforça-se também por uma questão estrutural: a opção do dramaturgo em retratar o ambiente da favela em versos e a metrópole em prosa. Embora o texto possa apresentar problemas estruturais, como aponta Sábato Magaldi, fica-se com a impressão que a opção em diversificar as falas entre prosa e verso não é um descuido, como pensou o crítico, mas uma escolha pensada, que remete à dicotomia espacial. Por essa razão, o primeiro e terceiro atos, acontecidos no ambiente da favela, são retratados em versos, ao passo que a cidade, local do clube “Maiorais do Inferno”, é desvelada em prosa.

Afora isso, outras questões evidenciam a idealização na representação da favela de Orfeu da Conceição a partir de uma visão europeizada. Chama a atenção a fala sofisticada desenvolvida pelas personagens, o que acentua o tom estilizado da favela. Nesse sentido, vê-se que, embora Vinicius tenha consagrado a obra ao negro brasileiro, ele é representado através do paradigma cultural europeu. Note-se que em nenhum momento Orfeu faz referência à sua cultura de origem. Tanto a sua fala quanto as suas ações, como o planejado casamento de véu e grinalda com Eurídice, o vinculam ao modelo branco, europeu e cristão.

Nessa direção, quando Orfeu toca furiosamente o violão, com batidas violentas, para que a Dama Negra dance e vá embora, instaura-se o ritmo da macumba. A prática religiosa, porém, é vista pelo prisma negativo, já que o som do instrumento de cordas, naquele momento, é definido como “macabro e demoníaco” (MORAES, 1956, p. 43). Destaca-se ainda que, durante todo o segundo ato, o suave som do violão do herói contrasta com o ritmo da percussão dos foliões. Enquanto os acordes de Orfeu remetem à calma e à ordem, as batucadas ficam associadas ao caos e à confusão. Esse aspecto é analisado no artigo “A lira e os Infernos da exclusão – Orfeu no Brasil”, de Victor Hugo Adler Pereira (UERJ), disponível na Internet. Nele, o pesquisador destaca:
A dicotomia observada, na peça de Vinicius de Moraes, entre os sons desagregadores, agressivos e primitivos da música mais próxima da origem africana e a harmonia e suavidade da música europeia apresenta afinidades com perspectivas bastante influentes na sua geração (PEREIRA, 2004).
Ao privilegiar a cultura ocidental em detrimento da africana, o compositor estaria seguindo uma tendência de sua geração, em que o pensamento oficial, sob a égide do Estado Novo, era “civilizar” a cultura popular brasileira. A construção de um herói negro europeizado, nesse sentido, vincula-se, sem sombra de dúvida, a essa ideologia de embranquecimento das manifestações artísticas do País. Além disso, para uma peça que pretende homenagear a raça negra, é estranho constatar o número de vezes em que a palavra “negro”, adjetivada, ganha conotação negativa no texto: “negro mundo” (MORAES, 1956,p. 22), “negra inveja” (MORAES, 1956, p. 38) ou “o negro mel do crime” (MORAES, 1956, p. 39).

Outro aspecto que chama a atenção, em Orfeu da Conceição, é a representação da mulher negra, vinculada a um paradigma machista, em que a violência de gênero surge como algo banal. Isso fica claro na passagem em que Mira de Tal, como o próprio nome da personagem sugere, apenas um objeto sexual, é agredida fisicamente pelo protagonista. Este, depois de esbofetear a amante rejeitada, segue cantando “Mulher Brasil”, como se estivesse num musical da Broadway. Aristeu, de modo semelhante, mata Eurídice e some da peça como se nada demais tivesse acontecido. Embora seja visível que a estrutura lírica e, em certos momentos, simbólica da peça, não se paute pelo aprofundamento da psicologia das personagens, é curioso que em nenhum momento Orfeu tenha procurado confrontar-se com o assassino de sua amada.

O extermínio de Orfeu pelas prostitutas, por outro lado, está longe de configurar-se como uma desforra do sexo feminino, parecendo mais um reforço do desequilíbrio e da pouca confiabilidade das mulheres, sempre associadas a algo perigoso. Não por acaso, os versos finais advertem: “Juntaram-se a Mulher, a Morte e a Lua / Para matar Orfeu (...) Porém as três não sabem de uma coisa: / Para matar Orfeu não basta a Morte” (MORAES, 1956, p. 84).

Em Orfeu da Conceição, o som do batuque que acompanha a Dama Negra é visto como algo nitidamente negativo pelo herói, conforme o já comentado. A música de percussão tocada no clube “Maiorais do Inferno”, de modo similar, ganha uma conotação primitiva e menos elevada quando comparada à melodia cristalina da viola de Orfeu. Resumindo, a batucada remete ao caos e a viola à harmonia, uma oposição que claramente valoriza a cultura europeia em detrimento da negra. Conclui-se, dessa forma, que embora a peça tematize a favela e os descendentes da etnia africana, ela não se preocupa em explorar uma poética negra. A título de esclarecimento, cumpre lembrar que Sortilégio, de Abdias do Nascimento, do mesmo período de Orfeu da Conceição, embora não tenha protagonistas desvalidos, pauta-se pelo estudo de uma linguagem vinculada à cultura negra. Por essa razão, o ritual da macumba é visto sob a perspectiva do sagrado, na medida em que auxilia o protagonista, negro, em seu processo de autodescoberta. Além disso, a peça apresenta em detalhes a cerimônia do candomblé, fazendo menção a vários orixás, através de uma linguagem repleta de expressões de origem africana.

Notas

1 Ligia Chiappini, na introdução de Pedro Mico (1957), atribui à peça de Callado o pioneirismo de retratar uma favela como cenário brasileiro; as datas, todavia, revelam que o ineditismo da proposta deve-se a Orfeu da Conceição, encenada um ano antes de Pedro Mico, em 1956.
2 Em 1999, Cacá Diegues refilmou a história, intitulada apenas como Orfeu, tendo o cantor Toni Garrido no papel-título.


Referências

CALLADO, Antonio. Pedro mico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005.
MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998.
MORAES, Vinicius de. Orfeu da Conceição. Rio de Janeiro: Dois amigos, 1956.
NASCIMENTO, Abdias do. Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

PEREIRA, Victor Hugo Adler. "A lira e os Infernos da exclusão – Orfeu no Brasil". Disponível aqui. Acesso em: 04 jun. 2012.

* Este texto foi publicado inicialmente na edição 2, volume 5 da revista Navegações, de Porto Alegre, jul.-dez.2012, p.143-148 e é um recorte da tese de doutorado Os espaços dos miseráveis no teatro brasileiro nas décadas de 1950 e 1960.

***

Marina de Oliveira Possui Graduação em Artes Cênicas (Bacharelado em Interpretação Teatral) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999); Mestrado e Doutorado na área de Letras, em Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010), com pesquisas acerca da dramaturgia brasileira. Atua nas áreas de história do teatro, dramaturgia e teatro na educação. É professora adjunta II do curso Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) , em que ocupou a função de coordenadora de outubro de 2010 a outubro de 2012. 

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