Os amantes passageiros, de Pedro Almodóvar

Todos os atores principais reunidos num clique. Os amantes passageiros, de Almodóvar é um retorno do diretor espanhol ao melhor dos seus trabalhos.


À primeira vista poderá parecer que deveremos estar diante de uma comédia pastelão; um filme com cara de produção barata regada a um humor escrachado. É bom ficarmos apenas com a segunda impressão. Não se pode zombar de quem tem o pleno domínio sobre aquilo que faz. E mesmo que se desvincule o nome de Pedro Almodóvar do filme, ainda assim sobrarão considerações eficazes para dizer que não está o telespectador perdendo noventa minutos de seu precioso tempo para ver uma coisa qualquer. É evidente que há momentos um tanto fracos da narrativa, como se parecesse estarmos diante de um diretor que quis esticar ao máximo uma cena para enfim alcançar o limite de tempo para um longa-metragem. O que, entretanto, não é bem o caso.

Também quem está adaptado às últimas produções do diretor espanhol, como o surreal A pele que habito ou trabalhos como Má educação, Fale com ela, terá sua surpresa, mas não poderá condenar o diretor, mesmo porque Almodóvar só é Almodóvar pelas primeiras produções em muito semelhantes a esse Os amantes passageiros. Todo esse despretenciosismo do diretor não é gratuito; quer ele que isso seja, propositalmente, uma narrativa leve, destituída do peso com que construiu suas últimas produções. Essa constatação é também de certo  modo guiada pela opinião de muitos que disseram está sim diante de um autêntico Almodóvar, muito melhor que o de A pele que habito, por exemplo. Cada caso é um caso, entretanto.

Os amantes passageiros é uma revisitação do Almodóvar de hoje ao Almodóvar de um dia. Logo, não poderá ser que um trabalho dessa natureza esteja condenado a um desacerto constante. O filme recupera o estilo da chanchada espanhola já desde a abertura ao transformar Pour Elise de Beethoven no balanço quente do ritmo portenho a ditar também o ritmo com que se oferece a abertura, a cena desencadeadora, de toda possível desgraça por vir. A primeira riqueza do filme dá assim logo sua cara: o filme é uma aposta aos contrastes. É da felicidade do casal vivido por Antonio Banderas e Penélope Cruz, ambos funcionários do aeroporto em que está de partida o voo de Espanha para México, que descobrem depois de um incidente com o transporte das malas de outro voo vizinho estarem a, possivelmente, esperar o filho há tanto desejado; é aí que se monta outro incidente, que será o responsável pela incapacidade do avião em pousar, colocando todos os passageiros numa situação entre vida e a morte.

Daí em diante, cada um terá como um seu instante de redenção; primeiro a recontarem em que pé andam suas vidas e o que têm feito para estarem na situação em que estão. Não chega a ser um mea-culpa barato, mas uma assunção dos erros e daquilo que guardam para os outros como verdade, mas que é de fato, apenas uma mentira, uma máscara, que o permite manter tudo à horda das aparências. Esse é o sentimento mais corriqueiro dos humanos: em grande parte, quando diante da morte, é que damos conta do quanto ainda falta a ser feito, do quanto estivemos errados, e como se pudéssemos estar a salvos da perda da vida se fizermos tudo, se deixarmos tudo às claras, iniciamos uma corrida contra o tempo muitas vezes nem um tanto satisfatória.

Uma das estratégias para tornar esse interregno entre a vida e a morte, ante o festival de revelações, é dada pela forte presença da cena gay, responsável, diga-se, pelo melhor do filme. Não é que estamos diante de caricaturas do gay; Almodóvar tem o respeito de zelar pela imagem do gênero e explora o melhor de sua própria natureza: não é mais nenhum segredo dado a conhecer apenas aos do meio GLS que grande parte dos gays tem um senso de humor naturalmente bem elaborado e a própria arte tem se utilizado disso para o bem ou para o mal. É que em algumas situações isso é utilizado como um estereótipo gratuito dado apenas ao caráter de rebaixamento do gênero em detrimento do riso fácil. Almodóvar se beneficia do estereótipo mas sem que ele ofusque o gênero. E já que tocamos nesse termo, há outros estereótipos diversos espalhados pelo filme, como a visão acerca dos latino-americanos, por exemplo, mas também aqui, nada de ofensas. Digamos, que o diretor está dentro dos limites do tal politicamente correto, embora não seja este o seu interesse direto, obviamente. Fato é que a estereotipia aí é utilizada como um método provocativo.

Três comissários gays, um piloto bissexual, outro em processo de descoberta. Suas histórias se misturam às das personagens até então desconhecidas entre si, mas que pelo teor do que vai sendo revelado, numa rapidez, tornam-se íntimas, a ponto de estarem vez ou outra encontrando ganchos que já os faziam próximos antes da tragédia anunciada. É um filme de coincidências, absurdas coincidências, ou do quanto estamos próximos uns dos outros, mas a correria estapafúrdia dos dias não nos permite perceber as teias das relações. E tudo chega ao ponto de, num determinado instante suspender-se para que assumam realmente a sua natureza instintiva, o sexo; os corpos assim unidos, inclusive o de uma vidente já meio coroa e ainda virgem pela atribuição de que seu dom esteja no fato de nunca ter feito sexo. Se formos novamente ao lugar do estereótipo eis aqui mais um deles e usado da melhor maneira possível de se causar o riso.

Se o sexo é aquilo que nos move, há espaço aqui para dizer da forma como Almodóvar caçoa da religião, a que sempre pela via do dogmatismo unilateralista surrupiou as formas de emancipação do corpo pelo prazer; o espírito zombeteiro, por exemplo, estará não apenas nos anos de desejo reprimido da vidente como na ocasião em que todos do núcleo narrativo conseguem seus minutos de prazer e apenas um dos comissários o mais religioso não; mesmo a virgem que não encontrando parceiro na classe executiva, onde se desenvolve toda a narrativa, vai para a classe econômica, consegue, e ele não; está entre a fantasia de ter um homem perfeito e de, com uma tragédia anunciada, ainda é mais importante "zelar pelo espírito".

O fato é que entre o escracho e o riso, Almodóvar escolhe o meio termo do primeiro e abusa do segundo. O resultado é um filme equilibrado, bem desenhado, e sem se perder no riso pelo riso, mas um riso crítico, capaz de tornar palatável determinadas situações menores da trama e suscitar outros debates mais caros e não apenas ser mero passatempo. Isso quer dizer que mais uma vez ele acertou. 

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