O homem revoltado, de Albert Camus
Por Rafael Kafka
O homem revoltado causou
polêmica. Pode-se dizer que ainda causa. Na época de seu lançamento foi a pá de
cal nas relações amigáveis entre Albert Camus e Jean-Paul Sartre. O primeiro,
herói da resistência assim como o autor de O
ser e o nada era visto pelos seus pares como alguém isolado do meio
político, preocupado demais com a liberdade individual e, pode-se dizer,
bastante pândego, ocupando-se mais em gozar a vida do que compreendê-la por
meio de sistemas filosóficos bem elaborados.
Devido a isso, as divergências com os existencialistas logo
passaram a surgir. O ponto principal era o apoio dado por nomes como Sartre,
Simone de Beauvoir, Merleau-Ponty ao movimento comunista que imperava na então poderosa União
Soviética. De herói da Resistência francesa Camus passou a ser visto como
conformado, alienado e outros termos os quais indicavam uma preocupação
exclusiva com o seu próprio ser.
Nem mesmo o rótulo de existencialista ele aceitava. Mesmo
suas obras tendo muito de parecido com outros textos de filósofos do existencialismo
ateu, Camus enquadrava-se no rol dos que se consideravam parte do
movimento. Ele aceitava tranquilamente o rótulo de filósofo da existência. As
suas obras são cheias de um sentimento caro ao existencialismo, como a estranheza perante a existência, sentido de modo pungente em O estrangeiro e que podemos encontrar de
modo igualmente intenso no romance sartreano A náusea. O absurdo ganha bastante força em seus textos, e fica
clara a grande influência de Kafka em seus livros.
Camus atacou em diversas frentes. Apesar da morte prematura,
teve tempo de ganhar um Prêmio Nobel e de escrever textos em diversos gêneros
como o teatro, o conto, o romance e o ensaio filosófico. Mesmo sem se
considerar um filósofo no sentido estrito do termo, ele conseguiu produzir dois
belíssimos textos nos quais podemos sentir a força de seu pensamento: O mito de Sísifo e O Homem Revoltado. Podemos considerar que Camus escreveu duas obras
que se complementam, e por isso mesmo esta resenha sendo sobre o segundo ensaio
citado acima, terei de falar um pouco de O mito de Sísifo. Pois é nesse livro que ele começa a falar do conceito de
homem revoltado.
Sísifo foi um homem condenado pelos deuses a carregar uma
pedra para o topo de um grande monte. Porém, sempre que estava próximo a
conseguir sua missão, a pedra caía e ele precisava reiniciar sua tarefa. De modo
bastante simbólico, tal mito descreve bem a existência humana para Camus: todo
dia temos 24 horas para vivermos e agirmos. Cada dia termina, começa um novo e
precisamos nos deparar com o absurdo de uma vida gratuita e repleta de coisas
bizarras como guerras e risco de morte iminente.
Para fugirmos do absurdo mundano, temos três opções: a
esperança, o suicídio e a revolta. A esperança é fortemente condenada por
Camus, pois afundamos nela e deixamos de viver e sentir a vida como ela é para
vivermos em devaneio. O suicídio também não é recomendado por ser visto como
uma forma de desperdício de vida, mas não é condenado com o velho moralismo de quem
critica tal postura baseado em preceitos religiosos. Resta, então, a revolta.
A revolta é engajamento consigo mesmo: devemos viver a
realidade como ela é, descrevendo o que sentimos, criando nossos projetos,
porém focando nossa atenção no presente, sem nos perdermos em esperanças, em
devaneios. Devemos viver a realidade de modo erótico, digamos assim,
agarrando-a em sua concretude, em sua carne atual.
De tal conceito emana um individualismo muito grande. E Camus
realmente nunca escondeu de ninguém a sua maior preocupação: o homem, o
indivíduo. Provavelmente movido por diversas críticas pesadas dos
existencialistas de carteirinha, resolveu criar um ensaio filosófico, repleto de
lirismo e de peso, para falar da revolta enquanto engajamento de si mesmo e da ameaça dos grandes
sistemas totalitários os quais tentavam matar no homem a sua humanidade.
Edição brasileira de O homem revoltado. O livro foi publicado em 1996 e tem tempo em que só é possível encontrá-lo nos sebos. |
O homem revoltado pode ser considerado então um livro em favor da liberdade humana. Nele
vemos Camus defendendo a dignidade do indivíduo. Não há justiça em sistemas
opressores que para se manterem no poder utilizam-se do processo de ceifar
vidas humanas para manterem o seu conceito de justiça social.
Já no começo, Camus descreve o que vem a ser o homem
revoltado. Utilizando-se um argumento essencialista, ele fala de uma natureza
humana a qual o revoltado buscaria defender a todo custo. O revoltado é um ser
que luta para alcançar aquilo que falta a ele para se tornar pleno dentro da
natureza humana. Contudo, a revolta em si não é desculpa para abusos.
Para provar isso, Camus cita uma série de revoltados que
marcaram época nas artes e na filosofia, passando de Sade aos surrealistas,
terminando por citar Rimbaud e Nietzsche. Todos cometeram revoltas ocas, sem
sentido, sem engajamento com o ser humano, preocupados apenas em satisfação de
desejos ou ideias confusas. Nesse momento, começamos a perceber, por meio de um
ataque feroz, a autoapologia de Camus: ele mostra que a revolta norteia os
limites humanos, mas que em nenhum momento tem-se o direito de romper com nossa
revolta a liberdade alheia.
Da arte, ele parte para filosofia política. Analisa
Mussolini, Hitler, Hegel, Marx: todos niilistas e queriam dar ao mundo a sua
ordem desejada, com sua revolta definir os rumos do ser humano. E por mais paradoxal
que soe, é a Marx que os ataques mais pesados são dirigidos.
O homem matou Deus. A justiça divina pregava uma vida para
depois da morte. Todos os abusos deveriam ser suportados nessa existência em
prol da vida eterna, do sossego e da paz. Na era racionalista, os homens
passaram a desconfiar disso e no século XIX filósofos renomados proclamaram que
Deus não era o suficiente: a felicidade humana deveria ser alcançada aqui mesmo
na Terra.
Surge então o capitalismo com sua revolução burguesa,
pregando a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Mas o que se vê nesse
sistema são seres sofrendo opressão, miséria, fome, etc. Marx então, seguindo
uma linha de pensadores estudiosos do capitalismo e de suas contradições,
resolve criar um sistema filosófico não apenas interpretador da realidade. Ele
quer mudança e na mudança o homem deve se engajar. Nasce o socialismo
científico.
Para tal sistema, os meios de produção devem ser
estatizados, a burguesia eliminada e somente assim, em uma sociedade sem
classes, sem ricos, nem pobres, o homem conseguirá ser feliz e pleno em sua
natureza de ser livre e racional. Para tanto, no entanto, não devemos agir como
os anarquistas: o Estado deve se manter ativo até o momento em que o povo,
autossuficiente, consiga se manter por suas pernas. O tempo necessário para que
o povo amadureça não é estipulado, mas sabemos que um ser escolhido pela
História, pelos acontecimentos, deve se manter acima de todos e cuidar dos
rumos do Estado socialista.
Por ser indeterminado, tal tempo acaba criando uma espécie
de paraíso terrestre. Se antes, o homem esperava pelo paraíso divino, agora
espera por um mundo justo, o qual ninguém sabe quando virá. E nesse meio-tempo
indefinido, expurgos, genocídios, limpeza e segregação racial, campos de trabalhos
forçados e de concentração são vistos na configuração de um sistema socialista
real como o visto na União Soviética. O revolucionário de outrora agora se
torna o ditador. A violência que era revolucionária (Black Blocks?) agora se
torna violência ditatorial. O que antes desafiava o status quo, agora o mantém. E a vida segue.
Tanto o capitalismo com sua opressão industrial quanto o
socialismo com sua opressão totalitária são ameaças à dignidade humana; ambos
são formas de eliminar o espírito criador do ser humano: são ferramentas de
violência psicológica e física as quais eliminam a humanidade do indivíduo
tornando-o tão somente uma engrenagem no sistema.
Por isso, segundo Camus, o socialismo odeia a arte. A arte
deve manter o socialismo em alta, só deve falar do socialismo. (Confesso ter
visto aqui uma crítica implícita ao livro O
que é literatura? escrito por Sartre, no qual ele defende que a arte
literária engajada deve falar sobre os problemas humanos para que haja a
obtenção da sociedade socialista.) A arte nesse contexto socialista é
desperdício de tempo, é puerilidade.
Para Camus, é na arte que o homem melhor expressa sua
revolta. Na arte literária, o homem sente a sua plenitude, cria o mundo de
acordo com seus olhos, torna-se um deus em seu pequeno mundo. A arte é perigosa
pois oferece ao homem revoltado uma escolha que vai além das ofertadas pelos
horizontes socialistas.
Para não dizer que estamos a criticar demais o sistema
marxista de pensamento, podemos dizer que a opressão capitalista torna a arte
algo puramente consumível. Músicas, filmes, novelas etc. consumidos para logo
depois serem esquecidos, sem terem nada de significativo que os mantenham
ativos no consciente coletivo de leitores e críticos. Uma pena que Camus não
tenha dialogado com um Walter Benjamim.
Fechando o livro, Camus dá uma solução. Socialismo,
capitalismo, não importa qual o sistema. O homem precisa ser respeitado. O
espírito criador precisa ser valorizado. A liberdade humana, a qual por poder
de interpretação deduzi ser a tal natureza humana (sendo portanto um jeito
diferente de colocar o mesmo conceito de condição humana já posto por Sartre),
deve ser respeitada custe o que custar. Acima de esquemas abstratos, a revolta
humana deve preservar a sua dignidade: se quero ser livre, devo respeitar a
liberdade o outro, seu poder de decisão. No momento em que começo a querer
impor minha visão, a definir meu ponto de vista como o único certo para o
bem-estar social, a não enxergar os danos que minha obsessão cega causa no meio social
do qual faço parte e do qual quero ser líder, começo a me tornar inimigo de
todos os homens.
Mesmo escrito há cinco décadas, em um contexto efervescente
e louco como o nosso, O homem revoltado é uma das obras mais atuais já lidas por
mim. Muitos a veem como uma tese de direita. Muitos participantes da esquerda
burra. Não que eu seja anti esquerdista. Pelo contrário. Apenas acho que em
cada setor da vida humana existem os néscios. E são esses néscios os quais
estão localizados dentro do pensamento de esquerda que não conseguem aceitar
críticas sobre seu modo de pensar.
São esses néscios os grandes inquisidores de nosso tempo e
que apedrejariam Camus, se pudessem, após a leitura do livro que aqui abordo.
Pois tais néscios são dominados apenas pela revolta apaixonada, e a revolta
nunca é boa o suficiente quando se volta para qualquer forma de violência, pois
como dito no ensaio camusiano: o revolucionário de hoje que se utiliza de violência, amanhã
será um grande ditador, sem nenhum objetivo exceto provar que está certo. Por meio da mesma violência
Comentários
A revolta extermina, um, dois ou três! Outros temerosos aderem a favor da revolta. Fica uma revolta sem revoltados contra a revolta. Vira unanimidade. Quando não temos mais que matar opositores a vida ou a revolta perde significado, ou seja perde o seu motivo de ser. Mas se a revolta foi por conta de injustiças praticadas ela se contradiz, pois matou aquele que fazia oposição por haver injustiça na revolta. Mortos por justiça, agora, por medo, não surgirão opositores e sim escravos silenciosos. Volta-se a estaca zero, até que uma grande maioria de revoltosos se insurja contra o grupo de revoltosos que está no poder! Podem ser mortos? Não, pois contratariaria todo o pensamento que os criou e, mesmo assim se matarem a revolução é um natimorto! Ou a dialética da carnificina. Mata-se 100 - há a revolta e chega-se a um consenso de 50! longe de só um homem morto o que já poria por terra todo um movimento que objetiva a liberdade, não plena, pois se assim o fosse seria absurda, mas, pelo menos aquela liberdade em que os grilhões passem longe!joacilbraz@gmail.com