o apocalipse dos trabalhadores, de valter hugo mãe
Por Pedro Fernandes
O último título do escritor português editado no Brasil, o terceiro
na leva dos romances já publicados, está para o lugar de um livro intermediário;
o nosso reino e o remorso de baltazar serapião estão em situações melhores se
fôssemos estabelecer um ranking de comparações – o remorso ainda é o melhor dos três. Mas aqui não há espaço para essas
listagens, ao menos não é o caso específico deste texto; a menção de uma lista
de colocações só vem ao caso para dizer que o
apocalipse dos trabalhadores é um romance intermediário. Nem por isso, perde-se do interesse de
ser um trabalho inventivo no que se refere ao trato com a linguagem.
Aliás, todos os romances de Valter Hugo Mãe se portam como experimentações
(e por estarmos diante de uma obra em formação, essa afirmação deve ser pesada
com cautela para os títulos até agora publicados). Lê-los é como estarmos diante
de alguém que tateia ainda uma voz própria: aquilo que já terão conquistado outros
escritores ou que terá dado forma a escritura de determinados autores; Valter
Hugo Mãe apresenta-nos ainda como uma voz ausente de propriedade que o distinga
dentre os do grande panteão. O bom é que autor tem todos os méritos para alcançar
isso. Que um escritor é um ser que nunca está pronto e morre quando começa a
nascer.
Mas, pode ser que não. Talvez isso seja apenas a impressão de
um leitor que primeiro corre em busca de encontrar aquele epíteto que possa definir
a escrita de romancista e depois de lê-lo de uma ponta a outra (a corrida) e ressente-se desse som comum. Talvez essa busca seja mesmo uma consciência de
que o escritor é aquele que não dispõe dessa nuance distintiva. Que compreende
cada história com uma voz muito própria como se fosse ela um elemento que
corroborasse no processo de realização (no sentido de tornar real) dos
acontecimentos desenhados pela narrativa. E essa afirmativa não é pensada gratuitamente.
Ela chega aqui à superfície do texto a partir de uma fala não do Hugo Mãe, mas
de uma escritora brasileira, Ana Miranda, que certa vez ao comentar sobre a disritmia
de seu gesto escritural disse ser isso algo proposital, produto de uma
necessidade de tornar o texto materialidade palpável ao leitor. Se é isso ou
aquilo que dizíamos acima há apenas uma forma de saber. E não é o escritor quem
vai dizer. É o tempo. À medida que sua obra for se consolidando é que
saberemos.
Ao contrário dos enredos de o nosso reino e o remorso de
baltazar serapião, o apocalipse dos
trabalhadores é dotado de um enredo simples: em cena, o narrador acompanha
a personagem de maria da graça, uma diarista, que divide sua profissão com a de
acompanhante em velórios. O termo diarista será a partir daqui tratado pela expressão
portuguesa sinônima (e não) mulher-a-dias e ao longo do texto os leitores entenderão
o porquê. O que é para ser sua profissão de horas vagas é carpideira, termo que
eximimo-nos de utilizar porque se distancia do sentido proposto em Portugal e
do sentido proposto aqui no Brasil: carpir para nós está para lamento, choro,
fazer lamúria; e embora, no português falado do outro lado do Atlântico seja
este também o sentido, o que vemos em todo o romance é que, em nenhuma ocasião,
essas ações são praticadas tanto pela maria da graça quanto pela amiga que lhe
arrasta para esses bicos. Em grande parte, as duas estão ali para compor população
aos funerais ou de vigília aos corpos velados.
maria da graça está o tempo todo diante da morte, então é muito
simpática a forma como esses velórios são tratados – responsáveis pelo riso solto
do leitor com determinadas situações, flertando o narrador com aquilo que
chamamos de por tragicômico, que em duas palavras podemos definir, tirar o riso
de uma situação trágica. E não é apenas pelos funerais dos quais participa que
a personagem está em contato com a morte. A morte deixa de ser um acontecimento
comum para ser uma espécie de sentimento que sobe e desce pela dorsal da
narrativa; já na abertura do romance, que pode ser lido como um momento
posterior ao desfecho da história, encontramo-nos com a inusitada cena da
personagem diante de um caricato são pedro. maria da graça está ali a exigir
uma justificativa muito precisa acerca de sua morte, por qual razão seu amante,
o senhor ferreira, havia lhe assassinado.
A situação é desfeita quando damos conta de que apenas mais
dos pesadelos que rodeia a personagem durante do romance. E é também simpática a
forma como o narrador faz essa construção, num misto de fantasia (leves
epifanias como pontos a marcar o tempo na narrativa) e realidade. São em ocasiões
como estas que o narrador melhor se coloca auferindo sua opinião, evidentemente
pensada pela personagem da maria da graça, sobre alguns temas um tanto
delicados. Essa infiltração do narrador é que constitui o melhor da narrativa,
porque aí se perscruta seu lugar nesse território sobre o qual ele propõe narrar:
a questão da não valorização do trabalho feminino, o papel e lugar da mulher na
sociedade, a relação patrão-empregado, a visão do estrangeiro sobre o sua
origem e seu espaço atual, a religião, o papel da arte na vida das pessoas, ora
atuando como elemento superficial ora como elemento de emancipação dos
sujeitos; e sobre temas mais existenciais, o amor, o ser, a liberdade, nosso
papel no mundo. Tudo é ardilosamente bem construído.
De fato, maria da graça, é uma mulher-a-dias. Ela é subordinada
ao tempo para garantir sua existência enquanto ser social, afinal, ninguém vive
mais, mesmo nos pequenos centros, como é o caso do romance que se passa numa
cidadezinha do interior de Portugal, Bragança, sem que se tenham uma fonte de
renda que seja a fim de fazer chegar em casa o que comer, vestir, beber, e já isso
será o suficiente, que não se vê em momento nenhum, salvo o do convite recebido
por uma amiga feita às bases das tapas e trambolhões num enterro, para ir ter
num fim de semana diferente noutras paragens afastadas do vilarejo onde vive.
A princípio maria da graça trabalha para o senhor ferreira,
um aposentado metido a entendedor de artes. É por ele que ela, no alto de sua ignorância,
é apresentada a nomes como proust, rainer maria rilke, mozart, bergman, goya...
É para ele que ela presta não apenas os serviços domésticos, mas de vez em
quando também os favores sexuais. Mesmo casada com um pescador que passa mais
tempo fora que em casa é com ele [ferreira] que maria da graça mais se deita. E
ela tem-lhe certa ojeriza por isso; as situações depois dos encontros, e as
conversas que tem com a amiga e vizinha quitéria estão sempre a indicar isso. Mas,
seja pelo que for (e mais tarde a própria personagem entenderá o porquê), ela não
consegue fazer com ele o que faz com o marido: ao jantar do pescador sempre
capricha nas doses de lixívia, uma espécie de detergente, para deixá-lo de saúde
fraca e não procurá-la sexualmente. O que a princípio é apenas uma estratégia
para preservar seu descanso da dupla jornada na casa do ferreira, depois se
torna uma obsessão, que tudo se torne numa tragédia, que o marido morra à míngua
e ela, enfim, se veja livre dele.
É necessário ressaltar que, mesmo submissa ao tempo,
duplamente, afinal pelos dias esvaem-se a vida e as forças no trabalho, o que fará
o corpo ocupar nesse romance uma dimensão maquínica (o “apocalipse” dado pelo
título), as mulheres, não apenas maria da graça, mas a amiga quitéria, têm uma condição
de liberdade e de libertadoras. Além de trabalharem para o provimento das
coisas para si e para o lar, elas têm uma independência sobre o corpo: da
graça, amante do senhor ferreira se envolverá, logo depois da morte do velho,
com um jovem russo; quitéria vive de colocar cama para jovenzinhos e encantados
pela jovialidade é ardilosa praticante de sexo oral. Posições estas que
evidentemente não são definidoras do que poderíamos dizer de uma liberdade da
mulher, mas que no caso específico assim se constitui porque é não é uma
condição imposta, mas decidida por elas próprias sem quaisquer culpa o receio;
e quanto isso lhe vem, como é o caso de maria da graça e seu envolvimento
sexual com mikhakolv, ela logo tem o interesse de sair fora, quebrando todas as
crenças do russo de que as mulheres portuguesas não passam de pretas porcas e
vadias.
O que faz menos sentido no romance é entrada em cena da
história da família de ucranianos, pais de andriy – com quem quitéria se
envolve sexualmente para depois evoluir para uma coisa mais consistente, um
relacionamento que levará enfim o rapaz a sentir-se menos exilado em terras
portuguesas. A história, ficamos a perceber depois, é até necessária como uma
espécie de desenho das raízes biográficas do ucraniano e os motivos que levaram
ir para Portugal, mas a altura em que ela é encaixada soa como um passo em
falso da narrativa; o modo como ela se desenvolve até é aprazível, mas há certa
ingenuidade quanto a elaboração do caráter de verossimilhança dos
acontecimentos. A impressão é que estamos diante de um enxague de uma clássica
narrativa russa.
Voltando ao status
de libertadoras ocupado pelo feminino, esse encontro entre quitéria e andriy é
um exemplo dos melhores a ser demonstrado. Compreendendo-se envolvida mais que
sexualmente pelo rapaz, e ele também na mesma situação, o avanço do
relacionamento para algo mais sério e elaborado, justificado pelo esforço
coletivo de juntar dinheiro para um retorno a Ucrânia a fim de saber dos pais
de andriy, é prova mais que suficiente da importância da figura feminina para o
crescimento da personagem e, consequentemente o andamento da própria narrativa.
Também maria da graça desenvolverá essa função ao fazer da descoberta de sua traição
da parte do marido ser apenas um acontecimento que não descambe para uma
intriga complexa, destituindo o lugar comum do homem, de ser o vingador quando deixado para trás por outro.
A sensação que ficamos com o desfecho trágico do romance –
final, aliás, muito bem elaborado, porque mesmo mostrado já no início do
romance e ser o tempo todo apresentado vez ou outra no desenvolvimento da trama,
consegue nos surpreender – é que, fora o deslize da história dos ucranianos, o apocalipse dos trabalhadores é muito
bem feito. Mãe se aperfeiçoa um tanto mais nessa complexa e ardilosa arte de narrar.
No caso aqui, o romance se mostra como um parto de um autêntico interventor de
realidades. Principalmente porque consegue alguns lapsos de ensaística para
reinterpretar determinadas corriqueirices, que os grandes romances nascem
desses instantes simples, sem malabarismos de ações. O segredo sempre passa
pela forma como esses instantes são capturados pelo escritor e transformados em
narrativa – e esse domínio, Valter Hugo tem ensaiado bem até aqui.
Ligações a este post:
Leia aqui resenha de o nosso reino - o primeiro romance de Valter Hugo Mãe
Leia aqui resenha de o remorso de baltazar serapião
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