Nada além de assédio na nova biografia de Salinger
Fotografia do documentário Salinger. The Washington Post |
A dizer a verdade, não há nada que guarde relação com a vida
e a obra de Salinger que não tenha sido repetido ao cansaço. O apanhador no campo de centeio, romance
que o fez instantaneamente famoso quando foi publicado em 1951, é um milagre em
prosa que captou a voz da angústia universal da juventude como jamais havia
sido feito antes por uma obra literária. O efeito, só levemente atenuado, se
prolonga num par de textos curtos e noutro punhado de contos inigualáveis. A voz vulnerável,
imensamente cativadora e de uma autenticidade irrepetível do protagonista,
Holden Caulfield, se fixou em volta do coração de milhões de leitores de todas
as idades. Quantos milhões exatamente? Só nos Estados Unidos, 60, ao que se
somam mais de 250 mil a cada ano. Se nos guiarmos pelo critério das cifras, as dimensões
do mito estão mais que justificadas.
A outra volta do enigma está, provavelmente, nos silêncios
do escritor, na base de seu desprezo pelo mundo e seus modos. Como é sabido,
sua obsessão por manter-se à margem da fama e do êxito que se construiu sobre
si foi um esforço absolutamente inútil que ontem recebeu outro golpe com a publicação
nos Estados de uma esperadíssima biografia cujos autores, Shane Salerno e David
Shields, empregaram quase uma década de pesquisas e mais de R$ 3 milhões.
Preso em sua casa-fortaleza de Cornish, New Hampshire,
durante os 45 anos anteriores a sua morte, J. D. Salinger se negou a publicar
uma só linha embora se suspeitasse que não havia deixado de escrever um só dia.
Alguns capítulos de sua infrutuosa luta contra a notoriedade: em 1986 fez seus
advogados abortarem legalmente a intenção de Ian Hamilton em publicar uma
biografia que utilizava material não autorizado. Em 1998, um golpe baixo,
proporcionado por sua filha Margaret, com quem há algum tempo não se falava: a publicação
de O guardião dos sonhos, memórias
oportunistas que elaboravam um retrato extremamente negativo do escritor.
Mathew Salinger, irmão de Margaret, denunciou a bruta manobra numa carta à
imprensa, mas o dano já estava feito. Um ano depois, em 1999, Paul Alexander
publicou uma biografia que não tinha nada de censurável, embora não fizesse
grandes contribuições sobre a figura do escritor. Tampouco jogava novas luzes
sobre o enigma as memórias publicadas em 2000, de Joyce Maynard, quem ainda
adolescente havia mantido uma relação sentimental com o autor. Salinger morreu
em janeiro de 2010. Coincidentemente ao primeiro aniversário de sua morte, Kenneth
Slawkenski publicou uma biografia tão delirantemente hagiográfica que o mistério
ainda permanecia intacto. Tal estado de coisas se supunha que estava destinado
a chegar ao seu fim com a aparição anunciada desde há algum tempo de Salinger, título tanto da nova biografia
ora publicada como de um documentário sobre a figura do escritor (ver links ao fim do texto).
O lançamento que veio rodeado de uma série de especulações
midiáticas e um horda de grandes segredos que parecia um imitação da própria conduta
do escritor em vida tem seus defeitos e já saberemos. Os responsáveis pelo lançamento de Salinger decretaram o “sequestro” tanto do texto, ao que
teoricamente ninguém poderia ter acesso até o fechamento oficial da publicação,
como do filme, cuja estreia oficial terá lugar no dia 6 (na segunda-feira
anterior, 02/09, foi feita uma sessão restrita durante o Festival de Cinema de
Telluride, no Colorado). O diretor do filme é Shane Salerno, conhecido por
trabalhos como codiretor de Selvagens,
de Oliver Stone. Salerno é também, junto com David Shields o responsável,
conforme já dissemos, pela biografia.
O livro inclui mais de 200 entrevistas realizadas ao longo de nove anos com
testemunhas da vida de Salinger e 175
fotografias. Tanto num caso como no outro, parte do material é composto de reciclagens
de livros e artigos já publicados. Assim mesmo, os autores fizeram um
rastreamento pelos diários de Salinger acrescentando mais uma grande variedade de
documentos públicos e privados, assim como algumas cartas já dadas por
perdidas e uma série de fotografias inéditas.
A estrutura do livro, de 600 páginas, é feita com base no
interesse mostrado pelo próprio Salinger durante os anos de reclusão e sua aproximação
com os textos da sabedoria védica. E quanto às tão esperadas revelações, a de maior
grandeza, foi dada ao conhecimento do público, recentemente pela imprensa
estadunidense, é da aparição das obras inéditas de Salinger (veja o link 3 do final do texto) o efêmero casamento de Salinger com
Sylvia Welter e sua a espionagem militar. Quanto aos inéditos, os autores da biografia afirmam que o escritor deixou instruções sobre como
publicar a obra, obedecendo uma distribuíção ao longo período de cinco anos a
começar em 2015. Mathew Salinger, o filho e um dos responsáveis pelo espólio do pai e que não se prestou a colaborar com a obra
publicada, tem dado uma versão diferente dos fatos.
J. D. Salinger (à direita) com um amigo, durante a Segunda Guerra Mundial, e seu cachorro de estima |
Uma revelação das mais sensacionalistas é a de que o escritor só tinha
um testículo e por isso, insinuam os autores, a preferência dele por mulheres mais jovens, embora na hora da verdade... raramente consumava o ato sexual. O problema
é que a afirmação não está provada de maneira incontestável, mas se baseia em rumores e especulações. Salinger
tampouco se mostra tampouco com respeito na hora de dar conta de um dos mitos
salingerianos mais repetidos: que a prosa do autor produz efeitos inusitados,
como a necessidade de matar, ao recorrer aos assassinos de John Lennon e da
atriz Rebecca Shaeffer, que confessaram ter atuado motivados pela leitura de O apanhador no campo de centeio.
Outro exemplo dos procedimentos dos autores: durante a II
Guerra Mundial, Salinger casou-se com Sylvia Weller. Pouco depois de chegar com
ela a Nova York, o escritor, cujo pai era judeu, descobriu que ela havia
colaborado com a Gestapo, e lhe fez anular o casamento. Esta alegação se
sustenta também mais pelas especulações que por provas conclusivas.
As primeiras reações ao livro distam muito de entusiastas. O
livro, aliás, tem sido recebido como um grande balde de água fria. Michiko
Katutani, do New York Times, que
figura entre uma das pessoas pesquisadas para o livro, considera que se trata
de um trabalho pouco rigoroso. Jen Chaney, do Washington Post, diz que a montagem lhe parece um golpe baixo
contra a memória de Salinger. No mesmo sentido, a opinião do romancista Louis Bayard
coincide com a de Katutani: é um livro que se pauta na falta de rigor; e sublinha a pressa com que o livro foi
publicado. As reações ao documentário têm sido mais favoráveis, talvez porque
seja mais interessante ver como se expressam Gore Vidal ou Tom Wolfe que ler
uma transcrição de suas declarações, aspecto que se acentua quando as
entrevistas vão a nomes como John Cussack ou Martin Sheen.
Ainda acerca dos inéditos - tanto o livro quanto o documentário - apresentam também os títulos a serem publicados entre 2015 e 2020: The last and best of the Peter Pan, redigido em 1962, trata-se de um conto cujo protagonista é Holden Caulfield, protagonista de O apanhador no campo de centeio; A World War II love story, livro escrito tendo por base o casamento relâmpago de Salinger com Sylvia, a colaboradora nazi; A counterintelligense agent's diary, baseado nos interrogatórios que o escritor realizou com prisioneiros durante os últimos meses da Segunda Guerra Mundial; A religious manual, sobre a relação do autor com a Vendanta; e The complete chronicle of the Glass famaily, uma antologia de cinco contos sobre a personagem Seymour Glass.
Pesando as irregularidades, Salinger é um livro de inegável interesse a que não faltam méritos.
O feito de que os autores não fizeram uma síntese, optando por bem oferecer o
material bruto sem julgá-lo, que se presta a leituras de distintas interpretações, é um deles. Os
mais exigentes se lamentaram do caráter excessivamente especulativo do livro. Os
caçadores de anedotas, ao contrário, poderão passar muito bem ao mergulhar no
texto.
Ligações a esta post:
>>> Desde cedo já acompanhávamos as especulações sobre o lançamento dessa biografia e do documentário: 1. Os mistérios de Salinger por um triz; 2. Salinger como ninguém nunca viu; 3. Cinco inéditos de Salinger a serem publicados a partir de 2015.
texto escrito a partir da versão livre de "Asedio a la fortaleza de Salinger", de Eduardo Lago.
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