Livro de haicais, de Kerouac e áudios do escritor
Depois de colocar no mercado títulos como Visões de Cody, On the Road, Cidade pequena,
cidade grande, a decisão mais acertada da L&PM Editores foi investir
numa séria edição do Livro de Haicais,
de Jack Kerouac. É uma edição para qualquer leitor de poesia – seja ele um
admirador da Beat Generation ou não; que esse conjunto de textos é parte
significativa da bibliografia de Kerouac, demonstração sincera da pluralidade
inventiva dada aos grandes nomes da literatura.
Kerouac entrou em contato com a forma oriental de fazer poesia
desde quando de seu interesse pelo budismo sob influência do poeta zen Gary
Snyder, ainda no começo da década de 1950, ano em que também esteve no Japão. A viagem
terá sido, tal como aquela de Ginsberg à Índia, uma das experiências mais profícuas para
a literatura de Kerouac. Basta dizer que, desde a ida ao Oriente, o escritor produziu
mais de mil entradas para cadernetas, além
da grande quantidade de notas que redigiu para livros como Os vagabundos iluminados e outra leva de
versos espalhada em cartas e no seu diário pessoal. De modo que os haicais constituem uma parte
significativa de sua produção literária.
Pleno de imagens vivas, e carregadas da forma reduzida ou
por que não dizer ao limite que a forma exige, o trabalho de Kerouac com o
haicai terá sido também um espaço para o burilar inconsciente do ritmo melódico
alcançado sete mais tarde com o romance que lhe consagrou em definitivo, On the Road. E se tornará para o escritor um exercício que acompanhará para o
resto de sua vida num trabalho também de aperfeiçoamento da forma oriental.
É bem possível que o haicai tenha lhe servido duplamente – como
busca de sua voz literária e como maneira de contato direto com a palavra, movimento
necessário a todo aquele que tem pela materialidade linguística sua obsessão
pessoal. Tanto que, a forma oriental será levada por ele a outro estágio, ganha
um estilo próprio que apelidou de pop,
um haicai americanizado descrito como um poema breve com três linhas.
A compilação feita para a edição brasileira pela
especialista Regina Weinreich reúne, da vasta produção, cerca de quinhentos
textos divididos em seis seções: “Livro de Haicais”, “Pops do Darma”, “1956: Pops
da desolação”, “1957: Haicais de estrada”, “1958 – 1959: Hacais da Geração Beat”
e “Haicais de Northport”. Todas as seções traduzidas por Claudio Willer, nome
que dispensa apresentações quando o tema no Brasil gira em torno desse grupo de
garotos estadunidenses que um dia cansados daquele modus vivendi decidiram pelo próprio pulso sacolejar
todo marasmo em que há muito a literatura do seu país estava metida.
Livro de Haicais
contém os poemas que o próprio Kerouac selecionou para publicação, mas amplia
essa seleção, ao encontrar uma série de textos recolhidos dos inúmeros cadernos nos quais estão quase tudo que o escritor escreveu. Isto é, tardou-nos
chegar, mas ganhamos duplamente, porque estão revelados aí não apenas um lado
menos conhecido de Kerouac como também um lado inédito seu em boa parte do
mundo. E se ainda nos for permitido aumentar o número de vantagens dessa seleção,
a editora novamente cumpre outro acerto que o é de apresentar os poemas em
dupla língua, que longe de desmerecer o trabalho do tradutor, coloca o leitor de
frente com a autenticidade da poesia.
Para Claudio Willer, a obra “contribui para a percepção da relação
de Kerouac com a poesia japonesa – não só o haicai, mas o senryu e otanka curto. Mostrou
onde obedeceu a convenções desses gêneros, se afastou delas, ou comentou e
parodiou clássicos do gênero como Issa, Buson e Bashô.” E amplia ainda, para o
tradutor, a leitura de obras como Os vagabundos iluminados e Anjos
da desolação.¹
Não apenas do ponto de vista formal, o escritor reinventa o gênero
oriental, mas do ponto de vista temático: “Haicai é poesia do objeto, registro
do enxergar. Sentimentos, emoções, o que pertence à esfera do sujeito, está
implícito, subentendido” – lembra Claudio. “Mas Kerouac se expôs, mostrou-se, em vários deles. Uma das
qualidades (a meu ver), a ironia, já presente em On the Road , mas que se acentuou com o tempo, marcando a obra de
despedida, Vanity of Dulouz de 1967:
morria, mas sem perder o senso de humor. Aqui também, quanto mais avança em seu
“inverno” a desolada fase terminal da vida, tanto mais irônicos, ao mesmo que melancólicos,
são os haicais.” – conclui.
Além das influências observadas por Claudio Willer, não custa
lembrar com José Lira, um dos primeiros a atentar para a obra poética de
Kerouac, quem observa também essas influências e ainda vai mais adiante: “Quem popularizou
o haicai nos Estados Unidos e, por tabela, em outros países foi de fato
Kerouac. Todas as gerações de haicaístas norte-americanos que se seguiram à explosão
orientalista de The Dharma Bums [Os
vagabundos iluminados] devem algo a Kerouac. A primeira revista dedicada ao
haicai, American Haiku, surgiu em
1963 (de uma sequência de mais de sete títulos que vieram em seguida, até
1978), quando as preleções de Japhy Rider já haviam sido convenientemente
absorvidas e discutidas.” Rider é uma das personagens do livro de Kerouac; no
livro, Rider é um haicaísta e zen-busta que juntamente com o escritor Ray
Smith, viajam para o Japão, onde vão estudar as filosofias orientais, e durante
a viagem, ele aproveita para passar a Smith alguns tópicos da cultura oriental
sintetizados na arte do zen e do haicai.
Por falar em José Lira, foi ele quem primeiro
trabalhou por uma popularização do haicai de Kerouac no Brasil: ainda em 2009,
por ocasião dos 40 anos da morte do escritor estadunidense, ele organizou uma edição
com 16 páginas e 50 haicais já pinçados da edição Book of Haikus. Os haicais foram editados em papel reciclado em
formato de fanzine pela Editora Coqueiro, de Recife, Pernambuco, e receberam o
título de Nuvens de Iowa – haicais/poemas
de Jack Kerouac.²
Agora, vale também ouvir o próprio Kerouac lendo seus
haicais. Em 1959, o escritor entrou em estúdio com Al Cohn e Zoot Sims (imagem acima) para a gravação
de um disco dos três, uma mista de jazz e poesia chamado Blues and Haikus. O número de abertura do disco é dado com uma peça
de 10 minutos chamada “Haicais americanos” com recitação expressiva de uma série
de poemas pela voz próprio Kerouac pontuada pelo saxofone de Cohn e Sims. Basta acessar o vídeo a seguir:
Ligações a esta post:
>>> Notas sobre Beat Generation, aqui.
Notas:
1 As falas de Claudio Willer foram pinçadas de seu blog pessoal aqui.
2 A de José Lira, do texto do autor “As viagens haicaístas de Jack Kerouac”, publicado na Revista Graphos, vol. 11, n. 2. João Pessoa.
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