Coral, de Sophia de Mello Breyner Andresen
Por Pedro Belo Clara
Lançado ao público pela
primeira vez em 1950, Coral foi o terceiro livro de poesia de uma das mais
talentosas mulheres que Portugal já conheceu. De facto, se nos focarmos no
campo das letras lusitanas, o nome de Sophia surgirá com o epíteto de "principal
referência". Tanto assim é que José Saramago, não em raras ocasiões, sugeriu o
nome desta autora como séria candidata a um Nobel que, contudo, nunca viria a lhe
ser outorgado. Seja como for, entre aqueles que a viram nasceram para o mundo e
para as letras, a qualidade, inovação e talento que lhe são inerentes jamais se
apresentam como factores passíveis de dúvida ou de questionamento.
A obra em causa, apesar
de constituir um testemunho das primeiras aventuras poéticas de Sophia,
surpreende pela notável maturidade que apresenta e por, desde logo, apresentar,
num traço bem definido, as traves mestras de todo o trabalho poético da autora.
Contudo, sublinhe-se o seguinte facto: a edição de que vos falo é a que pela autora
foi tida como "definitiva", uma vez que Coral, ao longo das suas três edições
(1950, 1979 e 1980), foi sofrendo significativos reparos que apenas a
engrandeceram. Somente em Novembro de 2003, pela conceituada editora Caminho, é
que conheceu a sua forma mais depurada e, arriscaria a dizê-lo, perfeita.
Num primeiro vislumbre
do trabalho, sobressairá logo o contraste entre a estrutura que a obra
apresenta, bem definida e quase formal, e a liberdade de escolha que recaiu
sobre a construção das poesias, ora de verso livre, com e sem pontuação, ora
com rima e ritmo a preceito (embora com menor frequência). Daqui se extrairá,
assim, o expoente máximo da liberdade criativa: o formal e o informal, o
clássico e o moderno – perfeitamente harmoniosos e em sadia convivência.
Formou-se então um projecto não apenas muitíssimo bem conseguido, mas
igualmente transcendente; uma centelha poética que se eleva e que brilha,
invicta, para além de todos os obstáculos possíveis, para além de todas as
restrições imaginárias.
É, portanto, a partir
dessa base construída com mestria e fluidez que se permitem florir os demais
motivos que adornam o trabalho em questão. Que, desde logo, parece eclodir de
uma busca íntima e profunda, sobejamente importante (senão mesmo crucial): a busca
pelo puro, pelo pleno, pelo perfeito. Uma sede de alvura, um quase desejo de
imutabilidade, de eterno. Não só na poesia como na vida e no mundo em geral. É
uma busca, senão uma intenção, marcadamente universal. Este ponto irá colocar a
poesia de Sophia, especialmente aquela que este livro contém, em sintonia com a
de Eugénio de Andrade, o poeta do amor, da alegria e da melancolia (já neste
mesmo espaço, semanas atrás, referido e publicado, e sobre ele pode ler aqui). Ou não tivessem
incorporado, ambos, a mesma geração de autores que, durante os anos 50 e 60 do
século passado, viria a marcar, de forma inovadora e, como tal, positiva, a
poesia contemporânea portuguesa. Apesar de disporem deste ponto em comum,
importa referir que tal é somente uma raiz que os poetas partilhavam… Pois os
ramos e os frutos dessa mesma árvore eram bem distintos e, por si próprios,
donos de uma forma e de um sabor bem peculiar. Mesmo assim, o «desejo de lisura
e de branco» (“Que poema, de entre todos os poemas”) irá acompanhar,
determinantemente, o trabalho de Sophia, surgindo até, posteriormente, em
formas que não as que neste livro são adivinhadas.
Outro aspecto marcante
é a passagem do tempo, ou a sua impermanência, e a inevitabilidade da morte.
Neste caso em concreto, como o leitor por certo já supôs, muitos seriam os
poetas (e não só) que teriam aqui um ponto em comum com os seus trabalhos. Não
fosse essa uma questão extra-literária, mas marcadamente humana, e tal por
certo não se verificaria. Contudo, existe em Sophia uma certa resignação sobre essa
evidência, apesar de todas as marcas que a natural passagem do tempo deixa nos
corpos e nas almas, mas contra a qual, e muito cruamente afirmo, ninguém poderá
reclamar vitória. Ao invés de cultivar uma declarada revolta contra o sucedido,
aceita-o quando compreende que todo o possível combate é tolo e desprovido de
probabilidades favoráveis àquele que contende ("Porque eu trazia rios de
frescura / E claros horizontes de pureza / Mas tudo se perdeu ante a secura /
De combater em vão" - “Poema perdido”). Compreende-se, portanto, que a
transmutação do padrão de entendimento não se faz sem o sentir do natural
sofrimento que a passagem do rio da vida tão inevitavelmente concede ("Cada dia
é mais evidente que partimos / Sem nenhum possível regresso no que fomos" - “Cada
dia é mais evidente que partimos”). Existe a dor, existe a marca; mas a
passagem é bem sucedida.
Coral na reedição da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen pela Assírio & Alvim a sair ainda em 2013. |
Na temática temporal, é
impossível explorar Sophia e não abordar ou, em mínima hipótese, não encontrar
vestígio de uma das suas mais importantes características. Não apenas o passar
do tempo e a certeza da morte material (que, por vezes, parece ganhar um outro
sentido, uma outra elevação), mas igualmente a memória da sua infância como uma
época dourada, um tempo amado que é constantemente evocado em suspiros que não
mais cessam. É, no fundo, "o fresco duma idade" que a poetisa reconhece como
«morta», mas que «regressa» no confronto com elementos que a levam a recordar o
outrora (“Longe e nítidos caminham os caminhos”). A memória bem que poderá ser,
assim, a solução derradeira, ainda que não definitiva, perante a morte e o
esquecimento que esta sempre traz em suas asas. Neste capítulo em particular,
Sophia aproxima-se de sobremaneira do perfil de Pessoa, também ele, o ortónimo,
um saudosista nos temas sobre a infância perdida.
Além dos demais,
encontramos, através de uma simples análise, outros elementos que confirmam
Sophia como a grandiosa poetisa que é (utilizo o verbo na sua forma presente
pois, como numa outra ocasião tive oportunidade de referir, os poetas, a bem da
verdade, nunca morrem). Em primeira instância, a sua perfeita descrição do
momento, impulsionada pelo tom sóbrio e solene que impõem à mesma. Tudo isto,
convém não ocultar, traçado em linhas claras e precisas, quase que impessoais.
Eis a figura do poeta como um observador, um constante perseguidor do real que
o envolve. O magnífico poema “Praia” é um óptimo exemplo dessa característica,
com os seus "pinheiros que gemem", as "pedras que ardem", os "deuses
fantásticos do mar", os "pássaros selvagens" e as "ondas que marram" de
encontro à luz do dia.
Apesar de todo esse
retrato, sempre cumprido de forma magistral e deveras envolvente, é notório o
mote de certos poemas que confirma a desilusão sobre o mundo e a sua natural
condição. Neste palco tão corrupto, instável e sujo, totalmente indigno das
maiores bênçãos da existência (como o amor), existe a antítese do desejo de
Sophia por aquela pureza antes referida. O poema sem título prévio “Terror de
te amar num sítio tão frágil como o mundo” elucida-nos sobre tal pensamento.
Não se julgue, contudo, que o desânimo irá imperar. Futuros livros reconfirmarão
a esperança de Sophia num mundo melhor, bem como a expressa luta, definida e
convicta, por um amanhã mais luminoso e, claro está, puro.
Para terminar, sobejam
os derradeiros aspectos que pela autora foram abordados e apresentados ao seu
melhor estilo: claro e conciso. Ainda que a poesia de Sophia esteja longe de
ser apelidada de “fácil”, pois o valor da metáfora é imenso, assim como o dos
cenários por diversas vezes retratados, os mesmos que sempre deslocam o
imaginário do leitor para o âmago do poema que se lê. Uma experiência de
sentidos, portanto. Mas, como dizia, são ainda identificáveis, em Coral, as
referências mitológicas que fazem de Sophia uma adepta do classicismo de
inclinação grega (veja-se, por exemplo, o poema “Penélope”, onde o eu-poético
se revê e funde na famosa personagem da Odisseia de Homero), os retratos de
sombras, abandonos e receios tipicamente humanos que, em noites de silêncio,
pareciam sobressaltar a autora ("(…) Cravam no luar as suas garras / E a
respiração do terror desce / Das suas asas pesadas." - “Os pássaros”) e a
perfeita fusão do “eu” nos cenários que canta e descreve, como sendo não uma
parte estranha aos mesmos, mas um mero componente de tamanhas maravilhas
(“Chamei por mim quando cantava o mar”).
Curioso é ainda notar
uma natural atracção pela escultura e suas formas, onde o nu surge como uma outra
consequência da ambicionada pureza. Poderá ser uma conquista idónea, mas ao
mesmo tempo será um estado primitivo e néscio. Além disso, as estátuas choram
por se verem desprovidas de vida, ainda que sejam as donas da eternidade
("Respiram unicamente o seu segredo / O seu segredo secreto para sempre / E
duas fontes correm dos seus olhos fechados." - “Nos últimos terraços dos
espaços”). Mais curioso se torna o caso quando se comprova o referido interesse
através do ensaio que publicaria anos depois deste livro, em 1975 (O nu na
antiguidade clássica).
Com uma obra que se
estende desde a poesia ao conto, passando pelo teatro e pelo ensaio (de entre
eles, um sobre a poesia da brasileira Cecília Meireles), Sophia de Mello
Breyner Andresen, que sempre primou pela peculiaridade de assinar com o seu
nome completo, destaca-se pela sóbria consciência do seu papel no mundo e na
missão que todos nós possuímos e devemos cumprir. Sem atingir níveis esotéricos
ou espiritistas, destaca-se pela personalidade que a compõe: livre, justa e
interventiva. Foi, afinal, a mulher que recusou a poesia como “a arte pela
arte”, considerando-a antes uma forma de influenciar a vida e o destino de quem
a ler. Quase que recuperando, portanto, o iluminado pensamento de
Saint-Exupéry: "essa educação em vista de um poema".
Neste livro impregnado
de praia e de aromas de Verão, sobejam, numa interpretação bastante pessoal,
purezas de mar, o berço de toda a vida. Há um silêncio e uma espera; o amor e a
morte; um renascimento. Nas entrelinhas, edificam-se os poemas. É um dos
trabalhos que parece recuperar as paisagens que moldaram a infância da autora
no Porto, as mesmas que em 1958 inspirariam o conto infantil “A menina do mar”.
Ainda assim, são nele patentes as explorações que o “eu” empreende por si
mesmo, não obstante o facto de o "interior" e o "exterior" se confundirem em
algum ponto distante.
Para todos os
conhecedores e admiradores do trabalho de Sophia, Coral será, portanto, um
óptimo complemento; para quem ainda não conhece o coração poético da autora,
encontrará na obra, certamente, um motivo impulsionador de novos apetites
literários. O importante é abrir bem os braços da alma e embarcar, se o apelo
for sentido, no convite que a sua poesia nos faz.
Nascida em 1919, Sophia
formou-se em Filologia Clássica e editou o seu primeiro livro em 1944. Casada
com o famoso jornalista Francisco Sousa Tavares, foi mãe de cinco filhos, entre
eles um proeminente comentador político (e escritor) português. Desempenhou
funções de deputada na Assembleia Constituinte após a revolução de Abril de
1974, traduziu múltiplos autores estrangeiros e nacionais e foi distinguida com
diversos prémios literários, mas nunca com o Nobel que Saramago tanto lhe
auspiciou. Faleceria em Julho de 2004, com uma posição de merecido destaque
perfeitamente conquistada. O suficiente, pelo menos, para perdurar além da
morte.
Inventei a
dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens esperando
E ninguém me podia entender.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral.
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