Atribuições polêmicas em torno de Shakespeare

Fac-símile de uma edição de 1615 de A tragédia espanhola. A afirmação recente
de que partes do texto teriam sido escritas por Shakespeare colocaram a comunidade
de pesquisadores na obra do dramaturgo inglês em debate: de um lado, julgam a parte pelo todo,
isto é, a obra é, sim, do autor de Hamlet; de outro, não, não há provas suficientes que atestem isso.


Durante quase dois séculos, acadêmicos têm debatido se umas 325 linhas da edição de 1602 da obra de Thomas Kyd, A tragédia espanhola, foram, na verdade, escritas por Shakespeare. No ano passado, o pesquisador Brian Vickers utilizou análises computadorizadas para argumentar que as denominadas passagens “Voos adicionais” eram do dramaturgo inglês, constatação tida para alguns como um o triunfo mais recente do uso da alta tecnologia de exploração digital em arquivos da era isabelina. Mas agora, um professor da Universidade do Texas diz que encontrou aquilo que é mais condizente com a prova definitiva e se utilizando de um método mais antigo: a análise da confusa caligrafia de Shakespeare.

Num breve artigo de quatro páginas publicado muito recentemente no periódico Notes and Queries, Douglas Bruster sustém que várias marcas idiossincráticas de “Voos adicionais” – inclusive algumas linhas que têm impressionado alguns céticos como claramente escritas pelo autor de Hamlet – podem se explicar como más interpretações de imprensa quanto à letra manuscrita de Shakespeare. “O que temos aqui não é má escrita, mas má caligrafia”, assinala Bruster.

Reclamar a autoria de Shakespeare pode ser algo perigoso. Em 1996, Donald Foster, um pioneiro em análise de textos baseado em recursos da informática, provocou titulares de primeiro plano com sua afirmação de que Shakespeare era o autor de um obscuro poema isabelino chamado “A funeral elegy” (“Elegia fúnebre”, em tradução livre) para se retratar silenciosamente de seu argumento seis anos mais tarde, depois de que as análises de Vickers e outros vincularam o texto a um autor diferente.

Desta vez, os editores de algumas publicações acadêmicas de grande prestígio apostam que os argumentos metodicamente cautelosos de Bruster, apoiados sobre a base do trabalho prévio de Vickers e outros, vai fazer com que as atribuições descobertas sejam mantidas. “Não temos nenhuma prova absoluta, mas isto é o mais próximo a que se pode chegar”, disse Eric Rasmussen, professor da Universidade de Nevada, em Reno, e editor, junto com Jonathan Bate, da edição completa de Shakespeare pela Royal Shakespeare Company.

“Creio que agora podemos dizer com certa autoridade que, sim, isto é Shakespeare”, Disse Rasmussen. “Tem suas pegadas digitais por todas as partes.” Rasmussen e Bate já estão incluindo A tragédia espanhola na nova edição das obras teatrais de Shakespeare em colaboração autoral com a Royal Shakespeare Company, e será já publicada no próximo mês de novembro. Bruster planeja incorporar “Voos adicionais” em sua nova edição de Riverside Shakespeare (renomeada agora como Bankside Shakespeare), a sair em 2016.

Se o mundo mais antigo dos shakespearianos os aceita, os “Voos adicionais” se converteriam no primeiro texto novo, e amplamente reconhecido, acrescentado ao cânone, desde que os acréscimos de Shakespeare para Eduardo III – outra peça teatral que alguns atribuem a Kyd – começaram a aparecer  nas edições acadêmicas em meados da década de 1990.

De modo nenhum a aceitação está assegurada. Há três anos, alguns entendidos se mostraram igualmente céticos quando Arden Shakespeare publicou em sua prestigiosa série Double falsehood, obra de teatro do século XVIII cuja conexão com um drama perdido de Shakespeare se debateu largamente.

Tiffany Stern, professor de teatro do período moderno na Universidade de Oxford e assessor editorial de Arden Shakespare, elogiou o rigor empírico do ensaio de Bruster, mas disse que algumas atribuições novas estavam menos impulsionadas por provas concretas que pelo desejo das editoras em oferecer “mais Shakespeare” que seus competidores.

“As argumentações relacionadas com A tragédia espanhola são melhores que as referidas pela maioria” das supostas colaborações de Shakespeare, disse Stern. “Mas creio que estamos enlouquecendo um pouco com as atribuições a Shakespeare e estamos pondo nessa categoria um monte de coisas que talvez não devesse está ali.” O teatro isabelino tinha um intenso espírito de colaboração, com dramaturgos que frequentemente revitalizavam peças antigas ou trabalhavam com outros autores do gênero para inventar uma nova, à maneira dos atuais diretores de Hollywood. Os “Voos adicionais” de 1602 de A tragédia espanhola, introduzidos mais de uma década depois de que Kyd ter escrito o texto original, atualizou essa sanguenta obra de vingança com um pouco de realismo psicológico, que estava em moda na época. (Não se saber se Kyd, que morreu em 1594, chegou a conhecer, alguma vez, Shakespeare).

A ideia de que Shakespeare possa ter escrito “Voos adicionais” – que incluem uma cena hamletiana em que um pai louco de tristeza discorre sobre a morte de seu filho – foi mencionada pela primeira vez em 1833 por Samuel Taylor Coleridge. Mas essa constatação permaneceu como algo quase insignificante até bem depois de meados do século XX, quando os pesquisadores começaram a utilizar sofisticados programas de computação para detectar padrões linguísticos sutis que pareciam vincular as passagens a outros trabalhos de Shakespare.

Bruster disse que ele mesmo não acreditou até que leio o artigo de Vickers de 2012, que apresentava abundantes provas históricas e circunstancias juntamente com padrões linguísticos descobertos por programas desenhados para descobrir plágios de estudantes. Então, “tive que reconsiderar minha posição por completo”, disse. “Os argumentos de Vickers, baseados na histografia literária, eram muito fortes diretamente.” A Bruster não o persuadiu apenas os paralelos linguísticos, que ele qualifica como meramente “sugestivos”. De modo que se orientou para os aspectos mais literários das fontes: a própria escrita de Shakespeare.

Os acadêmicos já se referiram extensamente sobre as características da letra manuscrita de Shakespeare – que sobrevive em três páginas densamente escritas e conservadas na British Library e amplamente atribuídas ao dramaturgo – para compreender questões pouco claras das primeiras vezes impressas de suas peças. (Na versão de 1604 de Hamlet, por exemplo, a mãe da personagem nome da peça, Gertrude, se chama “Gertrad”, provavelmente um reflexo, segundo diz Rasmussen, da tendência de Shakespeare em fechar seus “u” e omitir os finais das palavras.) Em seu ensaio, Bruster identifica 24 padrões gerais de ortografia – que incluem tempos passados abreviados (como “blest” [consagrado ou bendito] em lugar de “blessed”) e consoantes intermediárias simplificadas (como “sorow” [pena, dor, pesar] em vez de “sorrow”) – que aparecem, ambas, nos trechos de texto agora atribuído ao dramaturgo, do qual não sobrevivem manuscritos que se conhecem nem na mostra de escrita shakespeariana da British Library. Também cita nove corruptelas textuais (como “creuie” [rachadura, fenda] em lugar de “creuic”, modernizado logo como “crevice”), que ele crê que pode explicar como erros de leitura da letra de Shakespeare.

Estas irregularidades, consideradas individualmente, não são necessariamente individuais de Shakespeare. Mas Bruster argumenta que tomadas em conjunto sugerem poderosamente que as matrizes para imprensa dos “Voos adicionais” foram compostas a partir de páginas escritas, em sentido mais literal da palavra, por Shakespeare. “Eu vou ao DNA das palavras mesmas de Shakespeare, ao modo como dava forma essas palavras com sua pluma sobre a página”, diz.

O erro de interpretação de um tipógrafo, sustém Bruster, também pode explicar alguma trama incorreta gramaticalmente de “Voos adicionais”. Durante uma fala comovedora, o pai apenado, Hierônimo, medita acerca da natureza do amor de um pai por seu filho. A edição de 1602 o mostra assim: “O que mais está fixamente? Dever alimentá-lo,/ Ensiná-lo para que ande, e digo, o mesmo./ Por que não poderia um homem amar do mesmo modo um bezerro?” Mas Bruster levanta que esse “digo, o mesmo” (I, or yeat em inglês), provavelmente seja um erro de leitura de “Ier”, abreviatura que indicará que essa linha a disse Hierônimo, nome na época de Shakespeare se escrevia às vezes Ierônimo. A passagem, afirma Bruster, deveria ser lida assim (com ortografia moderna): “O que mais está num filho? Dever alimentá-lo, ensinar-lhe a andar, e a falar./ Mas, porque não poderia um homem amar do mesmo modo um bezerro?”

Bruster lembra ainda do momento em que muitos acadêmicos pensavam que a passagem daquela edição estava escrita de maneira muito pobre para ser de Shakespeare. “Mas uma vez que alguém se dá conta de que a responsabilidade do erro de leitura é a letra de Shakespeare, deixa de ser um fragmento ruim”, diz Bruster. “É uma passagem regionalista, na verdade.” Encontrar algumas linhas de Shakespeare implantadas em obras de teatro de outro autor pode não trazer consigo o estremecimento de anunciar o descobrimento de um poema integralmente de Shakespeare antes desconhecido. Mas o ensaio de Bruster reflete interesse acadêmico atual em Shakespeare como dramaturgo que frequentemente colaborava com outros, inclusive, como havia sustentado controversamente Vickers, em obras que cremos saídas de sua própria pena. “Shakespeare não era um gênio solitário que passava por cima dos demais”, disse Vickers. “Era um trabalhador de teatro. Se a companhia necessitava de uma nova obra, ele se juntava com alguém mais e faziam.”

Texto escrito a partir de matéria editada em El Clarín.

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