Atribuições polêmicas em torno de Shakespeare
Durante quase dois séculos, acadêmicos têm debatido se umas
325 linhas da edição de 1602 da obra de Thomas Kyd, A tragédia espanhola, foram, na verdade, escritas por Shakespeare. No
ano passado, o pesquisador Brian Vickers utilizou análises computadorizadas para
argumentar que as denominadas passagens “Voos adicionais” eram do dramaturgo inglês, constatação
tida para alguns como um o triunfo mais recente do uso da alta tecnologia de exploração
digital em arquivos da era isabelina. Mas agora, um professor da Universidade
do Texas diz que encontrou aquilo que é mais condizente com a prova definitiva e se
utilizando de um método mais antigo: a análise da confusa caligrafia de
Shakespeare.
Num breve artigo de quatro páginas publicado muito recentemente no periódico Notes and
Queries, Douglas Bruster sustém que várias marcas idiossincráticas de “Voos
adicionais” – inclusive algumas linhas que têm impressionado alguns céticos
como claramente escritas pelo autor de Hamlet
– podem se explicar como más interpretações de imprensa quanto à letra
manuscrita de Shakespeare. “O que temos aqui não é má escrita, mas má
caligrafia”, assinala Bruster.
Reclamar a autoria de Shakespeare pode ser algo perigoso. Em
1996, Donald Foster, um pioneiro em análise de textos baseado em recursos da
informática, provocou titulares de primeiro plano com sua afirmação de que
Shakespeare era o autor de um obscuro poema isabelino chamado “A funeral elegy”
(“Elegia fúnebre”, em tradução livre) para se retratar silenciosamente de seu
argumento seis anos mais tarde, depois de que as análises de Vickers e outros
vincularam o texto a um autor diferente.
Desta vez, os editores de algumas publicações acadêmicas de
grande prestígio apostam que os argumentos metodicamente cautelosos de Bruster,
apoiados sobre a base do trabalho prévio de Vickers e outros, vai fazer com que
as atribuições descobertas sejam mantidas. “Não temos nenhuma prova absoluta,
mas isto é o mais próximo a que se pode chegar”, disse Eric Rasmussen,
professor da Universidade de Nevada, em Reno, e editor, junto com Jonathan
Bate, da edição completa de Shakespeare pela Royal Shakespeare Company.
“Creio que agora podemos dizer com certa autoridade que, sim,
isto é Shakespeare”, Disse Rasmussen. “Tem suas pegadas digitais por todas as
partes.” Rasmussen e Bate já estão incluindo A tragédia espanhola na nova edição das obras teatrais de
Shakespeare em colaboração autoral com a Royal Shakespeare Company, e será já
publicada no próximo mês de novembro. Bruster planeja incorporar “Voos
adicionais” em sua nova edição de Riverside
Shakespeare (renomeada agora como Bankside
Shakespeare), a sair em 2016.
Se o mundo mais antigo dos shakespearianos os aceita, os “Voos
adicionais” se converteriam no primeiro texto novo, e amplamente reconhecido, acrescentado ao cânone, desde que os acréscimos de Shakespeare para Eduardo
III – outra peça teatral que alguns atribuem a Kyd – começaram a
aparecer nas edições acadêmicas em
meados da década de 1990.
De modo nenhum a aceitação está assegurada. Há três anos,
alguns entendidos se mostraram igualmente céticos quando Arden Shakespeare
publicou em sua prestigiosa série Double
falsehood, obra de teatro do século XVIII cuja conexão com um drama perdido
de Shakespeare se debateu largamente.
Tiffany Stern, professor de teatro do período moderno na
Universidade de Oxford e assessor editorial de Arden Shakespare, elogiou o
rigor empírico do ensaio de Bruster, mas disse que algumas atribuições novas
estavam menos impulsionadas por provas concretas que pelo desejo das editoras
em oferecer “mais Shakespeare” que seus competidores.
“As argumentações relacionadas com A tragédia espanhola são melhores que as referidas pela maioria”
das supostas colaborações de Shakespeare, disse Stern. “Mas creio que estamos
enlouquecendo um pouco com as atribuições a Shakespeare e estamos pondo nessa
categoria um monte de coisas que talvez não devesse está ali.” O teatro
isabelino tinha um intenso espírito de colaboração, com dramaturgos que
frequentemente revitalizavam peças antigas ou trabalhavam com outros autores do
gênero para inventar uma nova, à maneira dos atuais diretores de Hollywood. Os “Voos
adicionais” de 1602 de A tragédia
espanhola, introduzidos mais de uma década depois de que Kyd ter escrito o
texto original, atualizou essa sanguenta obra de vingança com um pouco de
realismo psicológico, que estava em moda na época. (Não se saber se Kyd, que
morreu em 1594, chegou a conhecer, alguma vez, Shakespeare).
A ideia de que Shakespeare possa ter escrito “Voos
adicionais” – que incluem uma cena hamletiana em que um pai louco de tristeza
discorre sobre a morte de seu filho – foi mencionada pela primeira vez em 1833
por Samuel Taylor Coleridge. Mas essa constatação permaneceu como algo quase
insignificante até bem depois de meados do século XX, quando os pesquisadores começaram
a utilizar sofisticados programas de computação para detectar padrões linguísticos
sutis que pareciam vincular as passagens a outros trabalhos de Shakespare.
Bruster disse que ele mesmo não acreditou até que leio o artigo
de Vickers de 2012, que apresentava abundantes provas históricas e
circunstancias juntamente com padrões linguísticos descobertos por programas
desenhados para descobrir plágios de estudantes. Então, “tive que reconsiderar
minha posição por completo”, disse. “Os argumentos de Vickers, baseados na
histografia literária, eram muito fortes diretamente.” A Bruster não o
persuadiu apenas os paralelos linguísticos, que ele qualifica como meramente “sugestivos”.
De modo que se orientou para os aspectos mais literários das fontes: a própria
escrita de Shakespeare.
Os acadêmicos já se referiram extensamente sobre as características
da letra manuscrita de Shakespeare – que sobrevive em três páginas densamente
escritas e conservadas na British Library e amplamente atribuídas ao dramaturgo
– para compreender questões pouco claras das primeiras vezes impressas de suas
peças. (Na versão de 1604 de Hamlet,
por exemplo, a mãe da personagem nome da peça, Gertrude, se chama “Gertrad”,
provavelmente um reflexo, segundo diz Rasmussen, da tendência de Shakespeare em
fechar seus “u” e omitir os finais das palavras.) Em seu ensaio, Bruster
identifica 24 padrões gerais de ortografia – que incluem tempos passados
abreviados (como “blest” [consagrado ou bendito] em lugar de “blessed”) e
consoantes intermediárias simplificadas (como “sorow” [pena, dor, pesar] em vez
de “sorrow”) – que aparecem, ambas, nos trechos de texto agora atribuído ao
dramaturgo, do qual não sobrevivem manuscritos que se conhecem nem na mostra de
escrita shakespeariana da British Library. Também cita nove corruptelas
textuais (como “creuie” [rachadura, fenda] em lugar de “creuic”, modernizado
logo como “crevice”), que ele crê que pode explicar como erros de leitura da
letra de Shakespeare.
Estas irregularidades, consideradas individualmente, não são
necessariamente individuais de Shakespeare. Mas Bruster argumenta que tomadas
em conjunto sugerem poderosamente que as matrizes para imprensa dos “Voos
adicionais” foram compostas a partir de páginas escritas, em sentido mais
literal da palavra, por Shakespeare. “Eu vou ao DNA das palavras mesmas de
Shakespeare, ao modo como dava forma essas palavras com sua pluma sobre a
página”, diz.
O erro de interpretação de um tipógrafo, sustém Bruster, também
pode explicar alguma trama incorreta gramaticalmente de “Voos adicionais”.
Durante uma fala comovedora, o pai apenado, Hierônimo, medita acerca da natureza
do amor de um pai por seu filho. A edição de 1602 o mostra assim: “O que mais está
fixamente? Dever alimentá-lo,/ Ensiná-lo para que ande, e digo, o mesmo./ Por
que não poderia um homem amar do mesmo modo um bezerro?” Mas Bruster levanta
que esse “digo, o mesmo” (I, or yeat em inglês), provavelmente seja um erro de
leitura de “Ier”, abreviatura que indicará que essa linha a disse Hierônimo,
nome na época de Shakespeare se escrevia às vezes Ierônimo. A passagem, afirma
Bruster, deveria ser lida assim (com ortografia moderna): “O que mais está num
filho? Dever alimentá-lo, ensinar-lhe a andar, e a falar./ Mas, porque não poderia
um homem amar do mesmo modo um bezerro?”
Bruster lembra ainda do momento em que muitos acadêmicos
pensavam que a passagem daquela edição estava escrita de maneira muito pobre
para ser de Shakespeare. “Mas uma vez que alguém se dá conta de que a
responsabilidade do erro de leitura é a letra de Shakespeare, deixa de ser um
fragmento ruim”, diz Bruster. “É uma passagem regionalista, na verdade.”
Encontrar algumas linhas de Shakespeare implantadas em obras de teatro de outro
autor pode não trazer consigo o estremecimento de anunciar o descobrimento de
um poema integralmente de Shakespeare antes desconhecido. Mas o ensaio de
Bruster reflete interesse acadêmico atual em Shakespeare como dramaturgo que
frequentemente colaborava com outros, inclusive, como havia sustentado
controversamente Vickers, em obras que cremos saídas de sua própria pena. “Shakespeare
não era um gênio solitário que passava por cima dos demais”, disse Vickers. “Era
um trabalhador de teatro. Se a companhia necessitava de uma nova obra, ele se
juntava com alguém mais e faziam.”
Texto escrito a partir de matéria editada em El Clarín.
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