Aparição, Vergílio Ferreira
Por Pedro Belo Clara
“Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro” – eis a
forma crua, simples e directa com que o preâmbulo desta magnífica obra se
inicia, dando o mote à mesma. Convém referir que, a par de Manhã Submersa (1953), Aparição
é das mais notáveis e famosas obras do existencialista Vergílio Ferreira, um
autor que debruçou o seu grandioso talento maioritariamente sobre a ficção e o
ensaio. A prova dessa justa fama encontra-se nas mais de sessenta edições (!)
que a obra regista, desde que em 1994 a Bertrand Editora comprou os direitos da
mesma. A título de curiosidade, diga-se que o livro foi lançado aos prelos em
1959.
Falecido no ano de 1996, aos oitenta anos de
idade, Vergílio foi dos vultos maiores do existencialismo que em Portugal se conheceu.
Por um lado, poder-se-á considerar o autor como um discípulo de Sartre; mas, por
outro, torna-se igualmente válido designá-lo de “embaixador português do
existencialismo”. Resta apenas dizer que os parâmetros dessa corrente
filosófica (e literária) encontram-se impressos, de forma mais clara e
profunda, na obra que aqui trago para análise.
Logo no preâmbulo da mesma, como no início deste
texto subtilmente sugeri, é possível compreender os motivos que guiarão o
desenvolvimento da história apresentada. Afinal, ela não passa de uma grande e
abrangente analepse, o que revela, desde já, o carácter circular que a obra nos
apresenta. Ou seja: recordações à parte, ela terminará no exacto espaço em que
começa – a «sala vazia» onde o narrador (que assume, como veremos, um duplo
papel) «relembra». Entre esses períodos, lançar-se-ão os diversos temas
propostos a reflexão: a própria vida e a humana condição; o milagre do ser; a
inevitabilidade da morte; o mistério do tempo. E é aqui que os pressupostos do existencialismo
se embutirão. Senão, vejamos: ao privilegiar a meditação nos temas, o autor
opta por renegar a acção; o severo conceito da morte como uma estação de
paragem obrigatória deduz a crueza da vida e, como tal, a inexistência de Deus;
a aleatoriedade que parece reger os acontecimentos da existência humana supõe a
fragilidade do Homem perante um impiedoso destino.
Para além destas “problemáticas do self”, à medida que os capítulos se vão
consumindo assiste-se ainda à natural construção do percurso do “eu”,
culminando no seu respectivo encontro – a inevitável e tão ansiada “aparição”. Por
isso, o facto da obra ser redigida de forma circular conferir-lhe-á uma certa
aura de sacralidade. Uma vez que tudo se encerrará no local onde se iniciou,
testemunhamos uma espécie de viagem que, por fim, é transcendida, onde nenhum
caminho fica por percorrer ou palavra por dizer. Reevocando levemente os
valores pagãos que a essa forma geométrica eram normalmente associados, como a
Perfeição e o Sagrado, o autor tentará imprimir uma sensação de paz e de
aceitação finais.
No entanto, para podermos encarar a obra de uma
forma mais translúcida e, por isso, perceptível, é importante que nos
debrucemos sobre a sua peculiar e extremamente bem concebida estrutura. Desde
logo, as personagens essenciais ao conto surgem divididas em dois grupos
deveras distintos: os “eleitos” e os “não eleitos”. Embora no romance tal
epíteto não lhes seja dado, o mesmo é facilmente entendido. Os primeiros são,
obviamente, aqueles que reflectem. Não apenas por disporem de tal capacidade,
claro, mas por se decidirem a exercê-la. Em oposição, o segundo grupo
compreende aqueles que o não fazem, aceitando a realidade da vida tal como ela
é (recordo aqui, a título de exemplo, a disciplinada ataraxia de Ricardo Reis).
Neste momento, é prontamente anunciada a crucial importância que o autor
atribui ao pensamento e aos reveladores efeitos do mesmo (as virtudes do
filosofar, se o caro leitor assim preferir). Tanto que categoriza,
indirectamente, esse grupo de personagens “iluminados”. São eles: Alberto,
Sofia, Ana, Carolino, Tomás, Álvaro e Cristina. Na outra margem da concepção,
demoram-se Alfredo, Chico e Evaristo. Por esta simples anunciação há um outro
aspecto que desde logo sobressai: o universo feminino é claramente
privilegiado. Bastará ver que todas as personagem femininas de relevo se
encontram na primeira categoria. Isto porque Vergílio Ferreira o liga, neste
trabalho, à valência depuradora que as mulheres possuem de se saberem conduzir
até à verdade de todas as coisas, até à sua íntima essência. Simbolicamente,
surge ligado à noite, o que, como consequência inevitável, o liga à morte. Ao
invés, o universo masculino, tolo e torpe, apresenta-se sob evidências falsas e
enganadoras, invariavelmente ligado, como oposto que é, à luz do sol. Será,
então, justo afirmar que, dadas as evidentes ligações, a morte é igualmente a
reveladora da verdade e a vida, tão solar e efémera, é a ignóbil ilusão que
atormenta o Homem? Dou o mote à reflexão…
Assim como, nesta complexa estrutura
conscientemente pensada, a acção do romance se divide, sendo obviamente
principal (na cidade de alentejana de Évora, Portugal) e secundária (na
aldeia), também o seu tempo se encontra repartido. As intenções filosóficas são
claras. O tempo da história, portanto, reflecte-se na cidade de Évora, onde a
personagem Alberto, metaforicamente, realiza a procura e o conhecimento do seu
“eu”, terminando no acontecimento que determinará a morte de Sofia. O tempo da
escrita equivale a um ano e iguala-se ao tempo anteriormente referido, sendo
uma espécie de reaparição pela forma como relembra e revive os sucedidos da
estadia naquela cidade e o porquê da partida. Já mais diluído surge o tempo
histórico, onde apenas se refere a época das vindimas após a IIª Guerra Mundial
e a prisão de Machado, acusado de simpatizar com ideias comunistas (tempo da
ditadura de Salazar). É, por isso, óbvia a intenção de Vergílio: criar um
“tempo mítico” em detrimento do material, valorizando a época da descoberta
interior. Compreende-se ainda o tempo do discurso (a analepse que antes referi)
e o tempo psicológico, o grande beneficiado desta intencional construção – ou
não fosse esse o tempo que descreve todos os passos da busca interior que pauta
a obra, a aparição do “eu” perante si próprio.
Mas não é somente o tempo da obra que merece
destaque e uma análise mais atenta e, como tal, detalhada. O espaço da mesma é
também revelador das intenções do filosófico autor, ainda que se divida apenas
em dois. Assim, deparamo-nos, primeiramente, com a aldeia, a montanha e o
casarão. Eis o espaço da memória, da origem e da própria escrita, aquele que
parece transparecer estabilidade e placidez, o lugar da final reconciliação
consigo próprio e da consequente aceitação dos sucedidos. Já o Alentejo, a
planície e a cidade de Évora (que sem dúvida alguma merece uma atenta visita
turística, in loco – fica feito o
convite) é o local onde a busca do “eu” se desenrola, o palco de angústias e
desesperos. É igualmente nele que Alberto, o bom professor, narrador e
personagem principal desta contida odisseia, adquire a sua consciencialização,
não só do seu reencontro, como do amor impossível por Sofia. Ainda que
distintos, ambos os lugares da obra primam pela sua brancura, uma claro símbolo
da pureza (e consequente desejo de sua conquista).
O texto já assume uma dimensão considerável para
os propósitos desta coluna, mas compreenderá o estimado leitor que a obra em
questão, tão simples e ao mesmo tempo complexa (notável virtude…), merece toda
a atenção que se lhe puder dispensar. Pois em cada linha se oculta uma intenção
perfeitamente definida que apenas irá conduzir o leitor pelas principais
meditações que a Aparição tem para
oferecer. É, assim, justo que se reserve um instante para a sua compreensão.
Por isso, optei por revelar a estrutura que antes analisei, de forma a clarear
intenções, ideias e pressupostos que auxiliarão na formação do principal
pensamento deste valoroso trabalho. Contudo, não poderei terminar sem que a
relação entre personagens seja devidamente abordada, o suficiente, apenas, para
o leitor compreender as tramas e os simbolismos com que se impregnam.
A mais desconcertante, intensa e, ao mesmo tempo,
reveladora, é a de Alberto Soares (o narrador e personagem principal, como
atrás descrevi) e Sofia. Este, é um ser inconstante que, como já foi por certo
compreendido, procura um válido percurso de vida (buscando-se a si mesmo ao
longo de tal trilho). E estabelece uma forte e, em certas ocasiões, algo
disfuncional relação com Sofia, bela e sedutora, uma adepta da “vida vivida nos
limites”. Como tal, a convivência entre os dois pauta-se por constantes jogos
de sedução – ora impulsionadores do afastamento, ora fomentadores de intensas
provocações. A relação, curiosamente, atinge o seu clímax com Carolino, uma
espécie de discípulo, se não mesmo duplo, de Alberto. Que ultraje maior poderá
existir? Não só o professor se apaixona por alguém que apenas parece
interessado em brincar com seus sentimentos, como, para cúmulo, o objecto da sua
paixão se envolve com uma pálida sombra daquilo que, em verdade, ele é! Física
e intelectualmente, Alberto e Sofia atraem-se e estimulam-se. Mas a relação
parece desde cedo condenada ao afastamento. Não só pelo trágico destino de
Sofia, mas essencialmente pelo imenso abismo existente entre o carácter destas
duas personagens: Alberto busca a plenitude da vida e Sofia vive-a em perigosos
limites.
De forma mais esbatida, mas igualmente digna de
nota, surge a relação do professor com Ana. A princípio, floresce uma enorme
cumplicidade entre ambos, rapidamente terminada pela brusca agressividade que
ocultamente medrará entre eles. Contudo, Ana alcança a paz e a serenidade, os
desejos mais íntimos de Alberto, com a adopção dos filhos de Bailote. Seja
ainda referida Cristina, o símbolo da pureza e da angelicalidade. É retratada
como um ser perfeito, um autêntico exemplo a seguir, seja por inspiração ou por
ensinamento indirecto. Os seus dotes musicais traduzem a sua sensível
percepção, isto é, a sua inata virtude da revelação, apesar de, como tudo o que
na vida material é puro e perfeito, lhe estar reservado um destino igualmente
trágico. Por fim, a mãe de Alberto… A personagem mais simples de entender e de
caracterizar, pois não passa de uma simples presença vazia. Contudo, note-se
que é a própria ausência que muito nos irá dizer sobre a sua índole. Neste
caso, o “nada” que é diz “tudo”.
Aparição é, como se conclui, uma obra de leitura simples mas de complexa
compreensão. Pela sua estrutura, pela sua intenção e pela meditação que
pretende, subtilmente, instigar. É, com todo o louvor, uma obra filosófica que
ombreia, por exemplo, com o melhor que Camus produziu. Desde o seu inicial
desejo de “justificar a vida em face da inverosimilhança da morte” até à
derradeira aceitação de que “a vida do homem é cada instante”, explana-se todo
um percurso interno que pode muito bem ser um percurso comum ao mais comum dos
mortais. Apesar de tudo, adquire essa cativante proximidade com os leitores ao
debruçar-se sobre factos da vida e as consequências dos mesmos. As grandes
obras, na verdade, conseguem alcançar esse virtuoso patamar. E, como antes se
enunciou, a mesma não termina com suspensões, dúvidas multiplicadas ou
fantasmas por sepultar; mas com placidez, resignação, conforto e… uma
estranhamente harmoniosa paz. Pois o eterno, afinal, subsiste no momento; e é o
momento aquilo que o Homem, efémero como ele, dispõe. Apenas. Que isso lhe baste.
“Não procures a noite por não suportares o dia.
Leva para o sol a tua aparição e serás um homem”
Vergílio Ferreira, Aparição.
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